O grande sacana
Terceiro filho de uma generosa prole de onze, cansei de ver nos remotos natais da minha infância minha saudosa mãe debruçada numa máquina Singer dando vida e graça a metros de tecido. Daquele atelier improvisado, saíam peças que preenchiam boa parte dos nossos limitados sonhos de consumo.
Naquela época, Papai Noel era uma figura misteriosa que despertava expectativas ambivalentes. Se ele existia, certamente ou nos esnobava ou então não gostava de transitar por Bebedouro, onde tudo, a bem da verdade, conspirava contra a sua ida. A partir do bonde ronceiro, transporte prevalente, sabidamente inadequado ao ofício do bom velhinho, onde velocidade e presteza nas entregas são a alma do negócio. Além disso, que presentes poderiam agradar àqueles barulhentos papa-sururus?
Ainda não fazia parte da tradição familiar iluminar árvores que talvez pudessem, de longe, atrair a atenção do famoso viajante. Pragmático, após a missa do galo e da indefectível ceia natalina, meu pai recolhia os sapatos que, antes de pegar no sono, tímida e sorrateiramente arriscava-me a colocar sob as janelas. Ao despertar, senti, recorrentes vezes, as punhaladas da decepção. De tanto fazer forfait, terminei por duvidar da existência de Papai Noel.
Deixei para trás infância e eventuais mágoas natalinas. Cresci e tornei-me funcionário público. Como todo o funcionalismo, amarguei quase doze anos de congelamento salarial. Os dois mandatos de FHC pareciam mais o Papai Noel da minha infância. O sociólogo de gabinete não estava nem aí para as nossas necessidades. Até que um dia, sem dúvida por conta do embalo da campanha eleitoral pela reeleição, Lula garantiu que daria um basta nessa sina humilhante. Ele prometeu e cumpriu, “resgatando” a dignidade dos funcionários públicos. E foi assim que meu salário foi acrescido de 150 reais.
Apesar de Lula e FHC, nos últimos anos tenho revisto crenças adormecidas. Avô de Caio e Maria Clara, confesso ter voltado a acreditar em Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau, Pinóquio, Pequeno Polegar e até nos sete anões do congresso.
Nos últimos dias, foi justamente o legislativo brasileiro quem cutucou nas minhas convicções. De fato, a gana dos nobres deputados e senadores (tremendos caras-de-pau) em se autoconcederem aumento salarial de 90% – ou um pouco menos – confirmam o que sempre suspeitei e nunca tive coragem de falar: Papai Noel existe, transita em Brasília e é um grande sacana.
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