EXMO. SR. PRESIDENTE DA ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS, DR. CARLOS BARROS MÉRO
AUTORIDADES QUE COMPÕEM A MESA DIRETORA
EMINENTE ACAD. PROF. DR. RICARDO NOGUEIRA, RESP. PELA MINHA RECEPÇÃO
FAMILIARES
MINHAS SENHORAS, MEUS SENHORES
Diz a Mitologia que o arquiteto Dédalo, o criador do labirinto onde morava o monstro Minotauro, caiu em desgraça e foi encarcerado pelo rei Minos, que o mandou vigiar com canino rigor, inibindo qualquer tentativa de fuga, pelo mar ou pela terra. Espírito inventivo, nosso herói construiria dois pares de asas: um para si e outro para o filho, Ícaro. Dentre as instruções que o pai transmitiu, constava a de manter uma altura de voo que não fosse tão baixa a ponto de sofrer a influência da umidade terrestre, nem demasiadamente alta, evitando a proximidade excessiva do sol, cujo calor certamente derreteria a cera, uma das matérias que davam sustentação à parafernália. O resto da história todos sabem: o jovem Ícaro empolgou-se com o poder que as asas lhe concederam. Imprudente, desobedeceu às recomendações paternas e o sol cumpriu o seu papel no desfecho fatal.
Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos,
Agora que oficialmente atravessei os umbrais desse silogeu, graças à imensa generosidade dos senhores, espero podermos voar juntos, tão alto quanto nossas asas puderem nos levar. Diferentemente das mitológicas de Dédalo e Ícaro, a cera de nossas asas são refratárias às intempéries, posto serem feitas de sonhos. Na realidade, foi com essas asas que um dia pretendi alçar vôo, sair da segurança que a planície costuma oferecer e poder aqui estar a altear-me nessa companhia ilustre, abrigado nessa Casa que transpira cultura e história. Muito obrigado pela confiança.
Alguém já disse que as vitórias têm muitos pais. As derrotas seriam órfãs. Minha caminhada até esse momento glorioso não foge a esses comentários. Recebi apoios e estímulos importantíssimos, sem os quais não teria perseverado, sequer teria ousado vir assinar uma ficha de inscrição como candidato.
Fora dos muros da vestal Casa de Demócrito, tive o estímulo indispensável e o apoio irrestrito da minha família, particularmente da Nadja, minha querida companheira de jornada há mais de 40 anos. Tânia Pedrosa, Félix e Cau Oiticica, Breno Lopes de Mendonça, Carlos Mendonça, Renira Lisboa Lima e o grupo do Latim aos Sábados, Edinaldo Holanda, Geraldo Majella E Sérgio Mendonça foram conselheiros incansáveis e solidários. Sou-lhes devedor, meus caros amigos.
Não quero ser injusto com os egrégios acadêmicos, sou grato a todos, mas não posso deixar de destacar a querida amiga Vera Romariz, os amigos e companheiros de outras academias, como José Medeiros, Carlito Lima, meu querido mestre Aloysio Galvão, Milton Henio, Luiz Nogueira, Lysette Lyra, Enaura Quixabeira, Antonio Sapucaia e Ricardo Nogueira.
A escolha de um médico escritor para uma Academia Literária não chega a ser uma novidade ou uma excrescência gramatical, uma aberração jurídica, uma anomalia congênita. Penso que o meu ingresso não deva ser visto como mais um a engrossar a “Bancada Hipocrática” da agremiação, por sinal das mais fecundas. Numa rápida olhada no retrovisor da história, já podemos vislumbrar médicos acadêmicos que não só participaram da vida sistêmica da instituição, mas foram vitais na sua construção.
Manoel Moreira Lima, um dos fundadores, era médico. Desempenhou papel decisivo na arquitetura inicial, tendo sido escolhido pelos seus pares para presidir a Casa. Não chegou a assumir. Creonte, o sinistro barqueiro, antecipou-se.
A relação de médicos acadêmicos que já tomaram assento nesse sodalício não é tão modesta: Jorge de Lima, Reinaldo Gama, Theo Brandão, José Pimentel Amorim, Ezequias da Rocha, Abelardo Duarte, José Maria de Melo, Gilberto de Macedo, IB Gatto Falcão... Hoje, os médicos acadêmicos têm uma representatividade em torno de quinze por cento.
Ednor Bittencourt, meu estimado ex-professor de Clínica Médica foi um caso particular. Cronista e memorialista, eleito para preencher uma vaga com expressiva votação, nunca assumiu. Temendo igual destino, apressei-me em tomar posse.
Para compensar, no plano nacional, ficou para a história a posse de Guimarães Rosa, também médico, para a Academia Brasileira de Letras. Eleito, o autor de Grande Sertão – Veredas passaria quatro anos relutando em assumir a cadeira. Místico, supersticioso, uma vidente previra sua morte, relacionando-a a uma grande solenidade. Finalmente convencido de que tudo aquilo não passava de bobagens de sua cabeça, resolveu descaracterizar o presságio. Três dias depois seria fulminado por um enfarte.
Certamente nenhum de nós aqui está por ser bom médico, grande causídico, religioso piedoso, caridoso, probo juiz, dedicado professor, meticuloso engenheiro, patriótico militar, abnegado funcionário público, mãe ou avó extremosa, humanitário, solidário e outros adjetivos que eventualmente possam ser aplicados. O nosso traço comum é a atividade literária. É o cultivo das letras e das artes. A busca pela perfeição estética.
Embora tenha publicado alguns contos, minha principal atividade como escritor é na produção de textos em forma de crônicas. Gênero especificamente dirigido para publicação em jornais ou revistas, nada proíbe que seja lido em rádios ou veiculado pela televisão. Com a multiplicação das mídias há quem o utilize nas redes sociais, ferramenta em rápida expansão.
Também não existe nenhum óbice que impeça o cronista de perenizar o seu trabalho, transferindo para livros aqueles textos que, fatalmente, teriam como destino os embrulhos dos mercados ou outros indizíveis. Nem todos têm a minha sorte de ter um tio fantástico como o Breno Mendonça, que coleciona em pasta todos os meus artigos.
Tido como um gênero híbrido, jornalismo/literatura, o fato é que essa atividade floresceu e ganhou adeptos ilustres e status: de José de Alencar, Machado de Assis a Rubem Braga, passando por Drummond, Vinicius, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, Fernando Verissímo, Cony, Sebastião Nery, dentre tantos de igual envergadura.
As crônicas – muitas vezes denominadas “opiniões” – são consumidas, como já se disse, entre a mordida do pão e o gole de café, nas barbearias, nos pontos de ônibus, nos expedientes das repartições públicas, na antessala do chefe, nas salas de espera de dentistas, massagistas, cabeleireiros, médicos e advogados. A boa crônica pode ter tom intimista, como se o autor estivesse conversando com o leitor sentado no meio-fio da calçada ou tomando um cafezinho na padaria da esquina. É aconselhável ter senso de humor, ironia, autoironia, falsa modéstia e, por que não? boa dose de sarcasmo.
É um texto leve, palatável, sem deixar de ser crítico. Muitas vezes é a notícia depurada, o detalhe não percebido, o fato refletido. Não se exige rigor estatístico; enfadonhos percentuais; vira TCC. Nós cronistas, liricamente denominados de “poetas do cotidiano”, sobretudo os não profissionais, debatemo-nos com diversos aspectos: rígido espaço pré-estabelecido e prazo de entrega, além, é claro, da boa qualidade do texto e da insuperável boa vontade do editor-chefe.
Mesmo num país onde se lê pouco, é imensurável a amplitude da crônica. Já recebi pessoas no meu consultório, vindas de muito longe, movidas pelo desejo de me conhecer, atraídas pelas crônicas. Vivemos num espaço geográfico muito pequeno, de encontros muitas vezes indesejados e nem sempre o que escrevemos agrada a todos. Nas andanças urbanas – e até no interior, onde presto serviços neurocirúrgicos, deparo-me com leitores. Alguns elogiam. Outros, mais gentis, insinuam, por exemplo, que eu peguei pesado com o meu doce ex-presidente. Há os que simplesmente torcem o nariz. Alguma unanimidade é conquistada quando falo de reminiscências: nostalgia da infância em Bebedouro, dos pais, dos irmãos, dos amigos, dos professores, dos banhos no Né Fragoso, do Clube 29 de junho, dos rachas no Sete Lobão, do Colégio Diocesano, dos velhos ônibus que quebravam, das enlameadas ruas de barro, dos pequenos rebanhos de gado que circulavam diariamente, emporcalhando as ruas. Ainda assim há quem diga que faço drama.
Agora, meus amigos, quando eu escrevo que o SUS está matando hospitais e médicos de fome, que a qualidade da prestação de serviços é uma fantasia, que a boa educação pública é proselitismo escocês; quando comento descalabros administrativos, esquemas de corrupção que transformam modestos legisladores e funcionários públicos em poderosos capitalistas, potentados marajás, florescentes latifundiários, eu me transformo num abominável reacionário, num detestável pequeno burguês, integrante da insensível elite da medicina.
Deus me livre dizer que nossas casas legislativas são valhacoutos de aproveitadores. Só faltam dizer que estou a serviço dos grandes conglomerados financeiros, que sou lacaio do imperialismo americano, agente do FBI. A coisa é tão perturbadora que há até quem se sinta ofendido porque eu insinuo que médicos e professores talvez não sejam contemplados com salários tão justos..
O lado bom é que a gente marca a presença, além da profissão principal, mostra a cara, participa da vida da comunidade, embora nada mude ao redor. O melhor de tudo é quando se é reconhecido com tendo algum talento literário e consegue eleger-se para esta Academia.
É nesse momento que nos damos conta de que somos um elo que voltou a recompor essa corrente, dolorosamente incompleta desde a partida de D. Fernando Iório Rodrigues, meu pranteado antecessor. Não o substituo, apenas o sucedo.
A imortalidade nas Academias tem várias moradas. Uma delas é justamente essa tradição de se rememorar os antigos e recentes ocupantes da cadeira, todas as vezes em que um novo membro toma assento. Nesses sodalícios ninguém é esquecido. Daí talvez a decantada imortalidade. Nesse aspecto, não tomamos posse da cadeira, pois ela não nos pertence. Prefiro, revivendo o omnia transit, o “tudo passa”, considerar-me um guardião, tarefa que procurarei honrar com um empenho até maior do que aquele despendido para conquistá-la.
Presidente Carlos Barros Méro, caros Acadêmicos, minhas senhoras, meus senhores,
Cristalização de um sonho coletivo, fundada em 01/11/1919, a Academia Alagoana de Letras acaba de completar noventa e dois anos. Inicialmente sem pouso fixo, foi há relativamente pouco tempo – no início dos anos 70 - que teve sua sede fixada neste solar histórico, centenário, cercado por monumentos lucarínicos, sob a atenta observação de Deodoro. O prédio teve desde sempre missões nobilitantes. Com efeito, embora de forma preponderante tenha sido uma escola - era o Grupo Escolar Pedro II - já prestou serviços à Justiça e foi até um hospital infantil durante um período de epidemia.
Como queria dizer, nessas nove décadas, a cadeira de número 15 teve poucos ocupantes, apenas dois. O lado bom dessa baixa rotatividade, digamos assim, se a tradição for mantida, é que sinaliza ao empossado uma longevidade ao menos octagenária. Não é ainda a ideal, mas já está acima da média de vida dos brasileiros, que hoje oscila em torno dos 73-74 anos.
Não estou aqui para falar de mim mesmo, missão espinhosa destinada ao meu querido amigo e colega médico e professor Ricardo Nogueira.
Não sei se as coisas já estão escritas há dez mil anos, como dizia Raul Seixas. Mas o fato é que ser sócio da Academia Alagoana de Letras não é um desejo acalentado por décadas a fio. Até meados dos últimos anos 90 não pretendia escrever com a regularidade com que tenho feito no último decênio. Ontem, como hoje, meu tempo se divide entre a família, as cirurgias, consultório e plantões. Aposentei-me da Universidade depois de 34 anos. Não tive brechas para otium cum dignitate, de Cícero. Logo o tempo foi preenchido por outros compromissos.
No princípio, era um escritor solitário, intuitivo, buscando caminhos e formas, quase bissexto que, quando conseguia publicar, recebia escassos telefonemas de amigos e parentes. Costumava enviar meus textos para Ana Gama e Vera Romariz, sem que uma claramente soubesse da outra. Duas grandes amigas, professoras, que corrigiam e ofereciam sugestões. Certamente condescendentes, liam a prosa com as lentes do coração. Tenho saudade disso. Havia uma certeza de antissepsia gramatical.
Abro um parêntese para dizer que não é tarefa fácil ser cronista e ocupar um espaço privilegiado num jornal como a Gazeta de Alagoas. Algumas pessoas foram importantes nessa conquista: Antonio Moreira, o saudoso José Bernardes Neto, Euclides Melo, Enio Lins e Carlos Mendonça. Sem a vitrine da Gazeta seria pouco provável estarmos aqui comemorando essa vitória.
Eis que na aurora do novo milênio, passaria a conviver formalmente com intelectuais de estirpe, através da Sobrames, Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores, sob o comando desse agitador cultural chamado José Medeiros. Foi uma experiência nova, frutuosa, como diria meu ex-professor de português, Grangeiros Neto. No meio da intelectualidade, que não só abriga médicos, vi-me enriquecido culturalmente. Doravante, não tinha como escapar ao destino de escritor. Até por amor próprio. Por tudo, é inquestionável a importância da Sobrames.
Um dia vi nos jornais que a AAL, sob a orientação do Prof. Aloysio Galvão, estava proporcionando um curso de latim para principiantes. Aluno “dos mais atrasados” (expressão que o doutor Ib repetia à guisa de autodepreciação), passaria a, semanalmente, conviver com gente do nível da Professora Renira Lima, do Cláudio Vieira e da Vânia Papini, além, é claro, do próprio Professor Aloysio. Na verdade, com essas pessoas, bebo de fonte límpida muitos saberes.
A entrada na Academia Alagoana de Medicina foi outro passo importante como médico e até certo ponto como escritor. Espécie de coroamento da vida médica, tive meus horizontes alargados ao participar de debates com colegas mais velhos e também com os mais novos.
O início tardio de atividade literária, não significa necessariamente que tudo começou do zero há exatos 14 anos, com a publicação do texto “Enterro de sonhos”, falando sobre o vestibular, um tema que foi e me é ainda muito caro. Sem presunções, acho que construí um alicerce com certa solidez desde que comecei a ler.
Meu curso primário foi feito em seis anos. Repeti o segundo e o quarto anos por falta de idade, embora aplicadíssimo. Doutor Zé Lopes, meu saudoso pai, não admitia nota menor que 10. Consolidei os parcos conhecimentos bíblicos nessa época, lendo as histórias “sagradas” que iam desde a criação do mundo até a morte e ressurreição do Filho. Por conta disso, não tenho o hábito de fazer consultas ao dissertar sobre temas bíblicos.
Na minha casa em Bebedouro, não havia desperdícios. Fui uma criança de poucos brinquedos: um velocípede que passou do Robson, meu irmão mais velho. Aos onze anos, uma bicicleta. Esporádicas couraças. Em compensação, livros sobretudo para adultos. Um ou outro para criança. Lia-se bastante na minha casa. Meu pai, médico e professor, transmitiu-nos esse hábito, seguramente adquirido nos cinco anos de internato no Colégio Diocesano. Minha mãe, do mesmo modo, tinha na bagagem a vivência de nove anos de confinamento no Asilo Bom Conselho
Li Monteiro Lobato um pouco mais velho, talvez por isso minha aguçada curiosidade pela mitologia. Os Miseráveis, nós o traçamos com 10 -11 anos. E foram passando os Eça, os Machado, os Amado, os Alencar, os Stendhal, os Cronin, os Lawrence, os Axel Munthe, os Lewis, os Nobokov, os Fitzgerald, os Hemingway, os Veríssimo, os Dostoievsky, os Adalberon Lins, os Graciliano, os José Lins... Não sei se fui mais ou menos feliz por isso. Pelo menos serviu-me para receber elogios dos professores de português e para ter minhas dissertações expostas no quadro de avisos da sala de aula, aos oito anos de idade.
Volto no tempo e me vejo adolescente folheando O Cruzeiro, do Grupo do Chateubriand, debruçado nas crônicas de David Nasser (“Falta Alguém em Nuremberg”), nas Vana Verba de Austregésilo de Athaide e na última página ocupada por Raquel de Queiroz. O próprio Chatô despertava minha curiosidade, sobretudo depois que ele ficou tetraplégico e que suas crônicas eram ditadas a uma secretária. Li muito Nelson Rodrigues. Fui leitor cativo de A vida como ela é, de À Sombra das Chuteiras Imortais e de Meu Personagem da Semana. Na Província, lia as colunas do Genésio Carvalho, do Arnoldo Jambo, do Paulo Silveira, Donizetti Calheiros...
Escrever pode ser muito interessante. O meu primeiro artigo (ou crônica argumentativa), despertou a atenção de um leitor especial: ninguém menos que Ib Gatto Falcão. Ele aproveitou o tema e teceu vários comentários naquele seu conhecido estilo. A partir daí engatamos uma sadia amizade. Passei a receber convites para vir à Academia Alagoana de Letras. Numa dessas reuniões, reencontrei D. Fernando Iório. Foi quando ele me disse que gostava do meu texto e intuía que eu iria longe.
Numa tarde de 2003, fui surpreendido por doutor IB para fazer a orelha do seu livro “Ao Sabor dos Ventos e Tempestades”. Quase não acreditei! O homem era simplesmente o presidente da Academia, vivia no Olimpo da cultura, cercado de divindades por todos os lados e ir atrás de um catador de sururu de Bebedouro... Isso mesmo eu lhe disse. Ele riu, mas deu um ultimato : “Você tem 48 horas para me entregar o texto. Não atrase.” Dias depois, enchi-me de coragem e pedi-lhe para prefaciar um livro de crônicas. Esse livro, que seria o primeiro, permanece inédito.
D. FERNANDO IÓRIO RODRIGUES
O último ocupante desta cadeira foi o Bispo Emérito de Palmeira dos Índios, D. Fernando Iório, que foi, repito, despido de qualquer vaidade, um dos meus últimos confessores. Tendo se ordenado apenas um ano antes, o então jovem Padre Fernando, como era conhecido em Bebedouro, foi missionado a cuidar das fracas carnes e dos espíritos vacilantes do bairro onde nasci e me criei. Tinha eu seis anos de idade e já estudava num tradicional educandário católico, o Colégio Diocesano.
Família católica praticante, meus pais não dispensavam nossa participação ativa na Igreja. Ainda hoje lembro os sermões do Padre Fernando, já naquela época um orador sacro de grandes recursos, voz abaritonada, erudito, onde pinceladas dos grandes filósofos e pensadores, católicos ou não, adornavam as brilhantes e convincentes homilías.
Nosso confessor, homem de Deus por excelência, predestinado, era um grande empreendedor. Pesquisei um pouco sua vida e pude constatar a santa inquietação desse sacerdote. Não fora ele um religioso, teria sido um ousado empresário, uma locomotiva de grandes ações.
Nasceu em 23/06/1929 na casa de número 111 da Ladeira do Brito. É o filho primogênito de Miguel Iório e Júlia Rodrigues. Viveu 81 anos. Recebeu desde cedo uma educação religiosa ligada ao catolicismo. Na sua biografia constam três atributos indispensáveis a um clérigo: responsável, estudioso e piedoso.
O fato é que Dom Fernando revolucionou o catolicismo no velho bairro que àquela altura navegava meio devagar sob o comando do antigo pároco, aliás, o agente do meu batismo, o Padre Belarmino. Um homem bom, estimado, mas sem saúde suficiente para apascentar as ovelhas, sobretudo as desgarradas. Padre Iório foi mais que um evangelizador. Além de edificar vários templos, multiplicando-se, numa quase ubiqüidade, voltou-se também para o cultural, o folclórico, impulsionando e revigorando as tradicionais festas religiosas e os folguedos, que eram basicamente realizados na praça em frente à matriz de Santo Antonio. O pastoril de Bebedouro voltou a ter fama. Nesse aspecto, lembraria o lendário Bonifácio Silveira, sem o Carnaval, é claro.
Apostando na educação como agente de mobilidade social, fundaria o Ginásio Santo Antonio, um verdadeiro gol de placa. Voltou-se para o social promovendo, cuidando das crianças e dando dignidade à velhice desamparada. Criaria uma casa destinada a receber idosos, ainda hoje cumprindo plenamente seu papel.
Na verdade, caros acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, passaria a noite inteira, aqui, de bom grado, falando sobre essa grande figura que foi D. Fernando Iório. Embora esteja buscando a síntese, não posso omitir certas coisas. O medo de pecar é muito grande, máxime por não ter mais o meu confessor para interceder junto ao Pai, por mais um perdão. Tenho certeza de que a seleta assistência também pensa assim.
Consagrado bispo, “um Príncipe da Igreja”, como bem disse, em memorável saudação, o ínclito Doutor IB Gatto Falcão, Bebedouro perdeu uma referência. Dom Iório era um homem de invejável cultura, uma liderança no bairro. Em Palmeira dos Índios, onde foi exercer o episcopado, voltaria a imprimir sua marca registrada. Das tantas obras, religiosas ou não, destaco a criação de um curso superior na cidade. A crônica obsessão pelo ensino o acompanhou durante toda a vida. Professor universitário, catedrático de Português, Livre-Docente, ao longo do tempo publicou mais de duas dezenas de livros, inclusive estudos sobre as obras de Cipriano Jucá, primeiro ocupante desta cadeira e de Sabino Romariz, o Patrono.
Dentre tantos títulos, era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, da Associação Alagoana de Imprensa e fundador da Academia de Letras de Palmeira dos Índios. Era latinista e helenista. Poeta, compositor, contista, exerceu funções de radialista, jornalista e era cronista da Gazeta de Alagoas. Era um torcedor – não sei se caberia dizer isso acerca de um bispo – um torcedor fanático do glorioso Centro Sportivo Alagoano. Quero deixar registrado também o grande craque de futebol que era D. Fernando, uma lenda nos famosos rachas do Seminário.
Por último, ao falecer na Santa Casa de Misericórdia, em 20 de março de 2010, D. Fernando Iório Rodrigues era presidente dessa Casa, substituindo a figura gigantesca de Doutor IB Gatto Falcão. Foi mais um golpe terrível para a cultura do Estado.
A bem da verdade, a AAL sempre foi muito criteriosa na escolha dos seus presidentes, não sendo por acaso a presença do escritor Carlos Barros Mero no comando dessa cerimônia.
CIPRIANO JUCÁ
O primeiro ocupante desta cadeira foi também fundador da Academia. Cipriano Jucá da Silva nasceu em Maceió, no início de 1886. Morreu em São Paulo, aos 80 anos. Estudando seus dados, cheguei à conclusão de que era um homem prático, telúrico, apesar de grande poeta. Foi prefeito interino de Maceió, jornalista, professor, farmacêutico. Filho de Romualdo da Silva e Maria Gabriela Jatobá Jucá. Um tio pelo lado materno, Franco Jatobá, era poeta e é patrono da cadeira de número 28 dessa Academia, hoje ocupada pela eminente escritora e poeta Solange Lages Chalita. Cipriano freqüentou a escola primária, o famoso Colégio 15 de Março, do Professor Agnelo Barbosa, e o Liceu Alagoano, onde prestou exames preparatórios.
Formou-se em Farmacologia na Faculdade de Medicina da Bahia. Ao regressar a Alagoas, foi diretor do Gabinete de Identificação e Estatística Criminal, bem como diretor geral do Departamento de Municipalidades. Além de prefeito interino de Maceió de 9 de Agosto a 11 de Setembro de 1935, ocupou vários cargos públicos inclusive de diretor da Saúde Pública. Aposentou-se como diretor geral da Recebedoria Central, o que seria a Secretaria da Fazenda de hoje.
Foi professor da Escola de Comércio, Perseverança e Auxílio, atual Escola Técnica de Comércio de Alagoas. Também ensinou no Instituto Silveira Leite e no Seminário Arquiepiscopal de Maceió. A opção por Sabino Romariz como patrono da cadeira, deve-se a ele. Pertenceu ainda à AAI.
Depois de morar vários anos no Rio, transferiu-se para São Paulo, onde foi secretário de governo na cidade de São Vicente. Participou da criação do Clube dos Estados e terminou recebendo título de cidadão paulistano.
Dentre as principais obras estão: Os Quarenta, Asas de Cera, Alma Lírica do Brasil; Hino a Deodoro,. Em colaboração com o poeta Menezes Júnior, escreveu Oásis; Tinha como pseudônimo Ícaro.
Colaborou no: Diário das Alagoas, O Gutenberg, 16 de Setembro, Jornal de Alagoas, A Gazeta de Alagoas, O Semeador e revistas Exedra e Federação; e, no Rio de Janeiro em A Noite, Vanguarda e O Mesquitense.
Um fato curioso marcou a biografia de Cipriano Jucá: em 1940, teve o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio. Foi advertido de que viveria em torno de um mês. Segundo o seu neto, o poeta Jucá Santos, seu avô tomou uma decisão radical: vendeu tudo que tinha em Maceió e foi para o Rio de Janeiro cumprir um velho sonho, que era conhecer a Cidade Maravilhosa. Queria viver seus últimos dias por lá. Cerca de doze anos depois, como não morresse, foi para São Paulo, onde viveu mais dezesseis anos, segundo o seu neto.
Ao morrer de forma súbita e inopinada, tomando um copo de leite numa padaria vizinha à Igreja de Santa Efigênia, em São Paulo, coincidentemente, teria sido amparado por dois poetas, que por ali eventualmente passavam. O brigadeiro Faria Lima, então prefeito da cidade, decretou luto oficial de três dias, pela morte do amigo.
Foi aluno de Sabino Romariz, em Penedo, quando se tornaram grandes amigos. Como detalhe genealógico, um dos netos, Jucá Santos é um consagrado poeta e presidente da Academia Maceioense de Letras, figura conhecidíssima e muito estimada aqui em Maceió. Cipriano tem outra neta, Glaucia, que é também poetisa e membro da Academia de Letras de Nova Iguaçu.
Um dos livros mais conhecidos de Cipriano Jucá é justamente Os Quarenta, que é um ensaio em forma de poesia, sobre os quarenta membros da Academia Alagoana de Letras. O livro traz caricaturas dos acadêmicos feitas por um dos seus membros o Desembargador Carlos de Gusmão.
Cipriano Jucá teve quatro filhos: Maria Dirce, Glauco, Corália e Claudio Jucá. Consta ter começado a organizar um ensaio mais complexo sobre a vida de Sabino Romariz. Num célebre depoimento, Cipriano Jucá registrou a genialidade do amigo. Há um detalhe interessante: ele foi uma das primeiras pessoas, segundo o historiador Valmir Calheiros, a sugerir a criação de um dia dedicado às mães, isso em 1921.
SABINO ROMARIZ
O poeta penedense é o patrono da cadeira 15 da Academia Alagoana de Letras. Num ensaio sobre Sabino Romariz, a neta, Vera Romariz diz textualmente: “Falar sobre Sabino Romariz, um avô paterno que não conheci, é um duplo desafio: afetivo e intelectual.” Não tiro as razões de Vera. Imagine, querida amiga, o quanto de dificuldades para este modesto bebedourense, sem dispor do equipamento lingüístico e da semiologia dos poetas, discorrer sobre o seu avô ilustre.
Nessas horas apelo para os meus truques de cronista, que segundo definição de Otto Lara Resende é aquele sujeito que conhece as primeiras quinze linhas de qualquer assunto. Nas minhas leituras sobre o seu avô, Vera, cujo genoma foi-lhe transmitido, e é o responsável por essa sua veia poética tão aguçada, descobri que ele era um polêmico, um grande boêmio, que desafiou as estruturas conservadoras de uma cidade interiorana que ainda suspirava pelo imperador. E que ainda hoje se discutem as influências das escolas sobre o seu modus de poemar: Simbolista? Parnasiano? Romancista? Não obstante os percalços, o seu avô é considerado um gênio da poesia. Admirador do português Guerra Junqueiro, célebre por suas poesias quilométricas.
Junqueiro lembra-me “A Lágrima”, poema tamanho-família que um dia fui compelido a decorar para declamá-lo numa sessão do Grêmio Ronald de Carvalho, do Colégio Diocesano de Maceió. “E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.”
Polêmico quanto à escola poética e ao modus vivendi, parece haver unanimidade entre os estudiosos da obra de Sabino Romariz: um grande repentista e uma rara inteligência.
Nosso patrono nasceu em Penedo, no dia 25 de Março de 1873. Viveu apenas 40 anos. Era filho de poeta. Logo cedo, perdeu os pais, João Almeida Romariz e dona Maria de Assunção Romariz, sendo criado pelos avós maternos, capitão Sabino Alves Feitosa e dona Senhorinha Feitosa. Cursou o básico da época em Penedo e foi para Olinda, onde concluiu o Curso de Humanidades.
Entrou para o Seminário de Olinda e a apenas um ano da ordenação, desistiu da vida religiosa. Os anos de estudo e vida monástica foram decisivos na consolidação de conhecimentos bíblicos. Certamente a decisão de abandonar o Seminário tenha sido tão intensamente frustrante para seus pais de criação, que, em represália cortaram-lhe a mesada.
Os biógrafos inclinam-se a relacionar o despertar da vida boêmia do poeta à sua sensibilidade exacerbada ferida, pela radicalidade avoenga. É uma possibilidade. Na verdade, a história de muitos poetas, artistas e escritores confunde-se com essa postura de desafio, de liberalidade comportamental versus produção intelectual, como se a boemia funcionasse como perene e imprescindível fonte de inspiração. Sabino Romariz não conseguiu fugir desse figurino.
Durante algum tempo, Romariz circula entre Olinda, Maceió, Paraíba (naquela época não existia João Pessoa), Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Foi justamente nesse período, entre a saída do seminário e o seu retorno a Penedo, em 1903, cerca de 10 anos, portanto, que o poeta compôs suas obras mais elogiadas. Sua obra prima, no entanto, data de 1911, dois anos antes de sua morte. O tema religioso é recorrente: Cristo, Madalena, Judas e Jó.
Tudo leva a crer que o avô da Vera Romariz mantinha-se de suas aulas em Colégios. Ao contrário de Cipriano, mais centrado, nunca teve emprego fixo. Ensinava línguas: Latim, Francês, Inglês, certamente Português e também Desenho. São competências que ninguém nasce com elas. Fica, portanto, evidente que ele tinha sido muito aplicado, pelo menos enquanto estudante secundarista e também no Seminário.
Mas o poeta retorna à sua querida Penedo, em 1903, com apenas trinta anos. É mistério insondável o seu regresso. Por que teria voltado a sua terra e renunciado a uma perspectiva de sucesso na “Corte”, como ainda era conhecido o Rio de janeiro?
Em Penedo, casa-se com Aspásia, a bela loura de olhos verdes, segundo descreve Vera Romariz, e com ela tem dois filhos: José e João. A partir daí não se sabe mais muita coisa sobre sua vida pessoal, a não ser pelo que transparece em seus poemas.
Os estudiosos não cansam de registrar: parte das suas criações está parcialmente perdida. Obstáculos inerentes ao contexto ambiental à parte – como dificuldades financeiras, limitações tecnológicas e outros fatores - atribui-se a lacuna ao próprio Sabino, pelo seu pouco senso prático da vida. Não teria tido preocupações ou mesmo condições de juntar e organizar todo o seu arsenal lírico.
Foi na sua própria cidade onde publicou mais frequentemente utilizando gráficas e as páginas de jornais locais, principalmente no “O Alagoano”, O Lutador e O Nacional. Uma das suas obras, Toque D´Alva, de 1911, provavelmente a que representa o zênite de sua força criadora, foi editada em Lisboa.
Nas suas andanças pelo sudeste consta ter convivido com Olavo Bilac, Carvalho Neto e Guimarães Passos. Teria estreado na imprensa carioca com o poema A Mansinha. Entre 1901 e 1902 publicaria Solidôneos, uma coletânea de trinta poemas. Um dos poucos trabalhos editados fora de Penedo.
Não existe a menor dúvida de que Sabino Romariz foi um expoente em sua época e que teve o reconhecimento de renomados intelectuais, além das fronteiras de sua cidade natal. Com muita propriedade, autores alagoanos já o visitaram diversas vezes: Romeu de Avelar, Heliônia Ceres, D. Fernando Iório, Cipriano Jucá e a própria neta, Vera Romariz, dentre outros. Para José Mendonça, em trabalho de 1924, Sabino foi o “luminar” da literatura penedense, e acrescentava: “Foi poeta no menor gesto: tudo nele era ritmo.” Em seu apologético Terra das Alagoas, de 1922, Adalberto Marroquim assim o tratou: “Teve fulgurações de gênio”. Cipriano Jucá, um admirador incondicional, discípulo e amigo fiel, não deixou por menos: “Sabino era o maior repentista do Brasil”, e justificava: “Ele fazia versos ditando-os quando lhe davam o assunto, sem contrair um músculo da face, sem demorar um segundo à cata de rima”. Outro penedense ilustre, Ernani Mero, pai do nosso eminente presidente Carlos Mero, definiu Sabino com “um gênio da poesia”.
Em 1992, o presidente da Fundação Casa de Penedo, sob o argumento de que uma figura como Sabino Romariz não poderia estar esquecida, em louvável e oportuna iniciativa, publicou Poesias Escolhidas, com seleção e prefácio do professor brasiliense Cassiano Nunes – outro a fazer um belo estudo sobre a obra do nosso patrono. É um opúsculo que os amantes da poesia não devem deixar de possuir.
Presidente Carlos Barros Mero, acadêmico Ricardo Bezerra Nogueira, cujo discurso recipiendário encheu de júbilo esse sexagenário coração, minhas senhoras, meus senhores, esse é um momento dos mais especiais em minha vida.
Retrocedo à infância, à pré-adolescência e me vejo dizendo aos meus boquiabertos pais que queria ser médico ou irmão marista. Naturalmente, a causa da admiração corria por conta do paroxismo de religiosidade, nunca dantes tão exacerbado. Felizmente, Deus, na sua imensa sabedoria e misericórdia, não permitiu que eu passasse mais de um mês no Juvenato de Apipucos.
Estou muito orgulhoso por mim mesmo, pela minha família, pela Nadja, pelos Duda e Bruna, pelos meus netinhos Caio e Maria Clara. Acho que eles também estão muito orgulhosos pela “imortalidade” do velho chefe da casa. Reafirmo minha gratidão aos que se empenharam nessa conquista.
Agradeço a presença de todos, convidados especiais, autoridades, familiares, irmãos, cunhados, tios, sobrinhos, amigos, clientes, meus colegas do LAS, meus amigos da Sobrames, amigos de infância, meus colegas médicos, colegas da Academia de Medicina, companheiros de trabalho, que vieram nos prestigiar, honrar-nos com suas excelsas presenças.
Contudo, a noite está longe de estar completa. Sinto imensa falta da presença dos meus pais José e Rosinha, dos meus irmãos Robson, Rosélia e Rosa, mas nada comparado à inexcedível dolorosa ausência física dos meus filhos Lavínea e Roninho.
Muito Obrigado.
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