sábado, 31 de dezembro de 2011

CORRIDA DE JEGUES
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Nos últimos anos da década de 70 do passado século, Bebedouro reviveria uma das suas tradições: a corrida de jegues. Tendo como organizador um entusiasta dos folguedos populares – o bebedourense Mauro Guedes Farias (ex-pastor dos pastoris do Padre Fernando Iório), o evento despertaria a curiosidade de parte da imprensa.
Na realidade, a idéia não era original. O lendário Bonifácio Silveira, festeiro incorrigível, já no início do século 20 introduzira esse certame, como integrante dos festejos natalinos. A grande virtude de Guedes foi a de retirá-la do fundo do baú, conseguindo, durante algum tempo, revigorar essa singular recreação.
Coetâneo, amigo de infância, depois meu aluno na Escola de Ciências Médicas, não sei se exclusivamente às custas dos jegues, o fato é que Mauro elegeu-se vereador por duas ou três vezes. Período de certa prodigalidade para o bairro, que ainda contava com João Freitas Neto, outro amigo de infância, e Braga Neto. Não posso deixar de registrar: mesmo com essa bancada “da pesada”, nosso querido berço não conseguiu sair do atraso em que ainda hoje se encontra mergulhado.
Nascido para as durezas do trabalho, animal desprovido do physique du rôle para atingir grande velocidade, atarracado –quando comparado ao porte dos eqüinos, pernas curtas, a fama de aliado do homem compete com proverbial atributo anatômico. É claro que, não obstante a capacidade laborativa, é covardia alinhar o jegue para uma corrida com o cavalo. A não ser com os mancos, os capengas.
Mas esse papo de jegues campeões tem um motivo. Essa semana, noticiou-se o salto sensacional que o Brasil deu sobre ninguém menos que a Inglaterra. Coisa extraordinária! Nessa corrida, é o sexto colocado! Graças a esses oito anos de governo, nosso PIB finalmente superou um país que um dia dele fomos reféns econômicos. Já deixamos no chinelo a Itália e a Espanha; Portugal nem se fala... Em breve daremos uma goleada na França. É mero detalhe o fato dessa gente estar vivendo um período complicado. São os cavalos mancos levando poeira do jegue.
Mas, se o bom Deus quiser, o nosso socialismo petista/comunista/peemedebista vai dar na cara dos insuportáveis americanos, abomináveis capitalistas, que desaprenderam a construir uma nação. IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é papo burguês.
Sim. Porque uma grande nação é feita de grandes líderes: Lula, Dilma, Orlando, Lupi Dirceu, Erenice, dentre outros de igual tutano. E de jegues.

domingo, 18 de dezembro de 2011

MOMENTOS DE MUITA EMOÇÃO (JOSÉ MEDEIROS)

Momentos de muita emoção
» JOSÉ MEDEIROS - médico e ex-secretário de Educação e de Saúde.Dirigi algumas palavras ao cronista e escritor Ronald Mendonça, por ocasião de sua posse na Academia Alagoana de Letras. Assim falei: este momento simbólico e emocional lembra um fato passado, ocorrido no ano de 2000. O dr. Milton Hênio, incumbiu-me de reorganizar a Sobrames (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, Regional Alagoas), entidade que esteve desativada durante alguns anos. Coordenei reuniões preparatórias, pois, naquele momento, estavam reunidos fundadores, oriundos do início de suas atividades, em 1977. E ao lado desses, uma nova geração de médicos, que amam as letras, as artes e a literatura. Convidei o dr. Ronald Mendonça, um dos ícones contemporâneos no trato de textos literários, para participar da Sobrames. Relutou em aceitar o convite. Os colegas me pediram para insistir, e assim o fiz. Na última reunião antes da posse, para surpresa geral, adentra na sala, onde estávamos reunidos, o dr. Ronald, ainda de jaleco do consultório. Sem prévia combinação os companheiros aplaudiram o recém-chegado de pé. Ronald tornou-se cronista festejado. Gosto da expressão: “A crônica é antes de tudo, literatura, que analisa e reflete fatos do cotidiano, como gotas de chuva num dia quente. Reflexão e crítica que fazem pensar”. Perguntaram a Rubem Braga, um dos mais famosos cronistas brasileiros, o que era a crônica. Ele riu e respondeu: Olha, se não é aguda, é crônica.Suas crônicas Ronald agradam pela abordagem dos temas, originalidade de criação literária e ajustamento dos escritos ao chão diário das pessoas que diariamente o pisam. No relevo do que escreve busca uma fácil comunicação com o público sem deixar de lado a preocupação com as águas profundas das realidades humanas. Um mestre de literatura repetia que “a palavra escrita é o corpo e a palavra falada é a alma”; ambas absolutamente necessárias à comunicação e à vida. Reflito o poema: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã. / No entanto lutamos/ Mal rompe a manhã”. A Academia Alagoana de Letras, cenáculo iluminado, onde se abrigam a inteligência e a criatividade dos alagoanos, o espírito e a sensibilidade refletida de nossa gente, recebeu naquela noite memorável, o escritor Ronald Cabral de Mendonça.

SUPERANDO OS LIMITES

Vítimas do próprio desenvolvimento, cilada que a ontogênese e sobretudo a filogênese nos armou, não temos o olfato felino que permite identificar alimentos e fêmeas no cio a quilômetros. Não voamos por moto próprio. Ao perdermos as brânquias, tornamo-nos incapazes de respirar submersos. Nossas visão e audição, Deus do céu!, são um nada se comparadas às dos grandes caçadores que dão conta de suas presas a incríveis distâncias.
Nem tudo está perdido. A inteligência humana superou vários obstáculos. No sonho, flutuamos. Nossa inviabilidade aquática foi contornada com as máscaras, os torpedos e os submarinos. A magnificação através de potentes lentes, permitiu-nos distinguir partículas de dimensões impensáveis e enxergar a milhares de quilômetros de distância. Até mesmo o que já não existe é reconhecido nas profundezas do firmamento. Hoje, “partículas de Deus”, em algum lugar do horizonte, surgem como uma real possibilidade de identificação.
Voamos ao infinito. Nunca as asas de Dédalo e Ícaro nos pareceram tão mitológicas. Mais que isso. Pacientemente ou sofregamente, mistérios e leis da natureza foram se desnudando. Criamos estações espaciais. Em tempos de crise do decadente capitalismo, passeios promocionais às fímbrias das galáxias estão disponibilizadas pela merreca de cem mil dólares.
Trocamos os grunhidos pela linguagem oral. A escrita evoluiu das garatujas rupestres à manual e eletrônica. Nas primitivas fantasias, ao “primeiro medo, Deus se fez”. Imaginamos um Paraíso Terrestre e uma Torre de Babel. Fomos reconstruindo nossa identidade, parte dela fruto de nossas elucubrações. Estabelecemos códigos e regras.
Expandimo-nos espiritualmente nas poesias e prosas, inventando instrumentos musicais, cantando, compondo, primeiro reproduzindo os sons naturais, depois, a natureza passaria a nos imitar. Dançamos de olho nos trigais batidos pelo vento, inspirados nas coreografias das aves e peixes, sob impacto de suaves ou estridentes sons emanados de canoras aves. As telas e as esculturas são testemunhas da nossa obsessão pela forma perfeita.
Exemplo de contribuições à humanidade (desde os bons temos do Mensalão), o governo brasileiro supera-se e dá mais um show de criatividade. Alvo da arrogante mídia hegemônica, o ministro Fernando Pimentel, de codinome Oscar, reserva moral do partido, busca no Além explicar um milhão de reais recebidos por conta de imperdíveis conferências espíritas, pagas pelo patronato de Minas.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Mais uma página sangrenta macula nossa história: o assassinato, há uma semana, do médico e professor da Ufal Luiz Ferreira. Figura muito estimada, quer me parecer oportuno que os órgãos aos quais Ferreira era ligado (CRM, Sindicato dos Médicos, Ufal) bem que poderiam sair do habitual monocordismo retórico para cobrar uma resposta mais rápida das autoridades.
Não há perplexidades. Os crimes passaram à condição de banalidades desde que a generalizada sensação de impunidade nos foi conferida pela classe política. A última lição nos foi dada pela Câmara dos Deputados, com a absolvição da deputada Jaqueline Roriz. Flagrada recebendo propina, os nobres colegas a inocentaram, sob a argumentação de que na oportunidade ela não era deputada. Com o mandato vigorando, a parlamentar nunca será julgada pela justiça comum. Por tudo isso, o cidadão comum se julga credor de alguma patifaria. Se os senhores deputados (e ex), ministros, presidentes & filhos, governadores, senadores, prefeitos, secretários de Estado, diretores de órgãos e até contínuos de repartições públicas têm o direito de meter a mão no bolo, por que não o degas?
Nem tudo é desgraça. Aqui mesmo nas Alagoas, o escritor Carlito Lima prova que se pode sonhar. Com efeito, na 2ª Flimar (Festa Literária de Marechal Deodoro), que ora acontece, nosso Velho Capita pôs em ebulição nosso mundo cultural. Na histórica Marechal, Carlito teve a feliz iniciativa de homenagear pessoalmente o grande Ledo Ivo, sem qualquer dúvida o literato alagoano mais ilustre. Membro da Academia Brasileira e da Academia Alagoana de Letras (AAL), dotado de febril e plural criatividade intelectual, nosso egrégio conterrâneo está sendo alvo de carinhosas manifestações. Arnon de Mello também é outro alagoano que tem sido objeto de estudo e conferências. Na homenagem, um aspecto singular: Carlos Mendonça e Milton Ênio, incumbidos da missão, conviveram com o eminente político e empresário. Admiradores do homenageado, seus depoimentos são carregados de particular emotividade.
Dois Jorges alagoanos mereceram a atenção do organizador da 2ª Flimar: Jorge de Lima e Jorge Cooper. Lima tem sido mais constantemente visitado. Por sinal, parte do seu acervo está em exposição na Casa Jorge de Lima, na Praça Sinimbu, atual sede da AAL. Ao mirar em Jorge Cooper, convocando seu filho, médico e poeta Charles Cooper, Carlito Lima resgata uma personalidade meio esquecida, não obstante importante da nossa poesia.

RIEN DE RIEN

Instantes é um dos textos mais conhecidos de Jorge Luís Borges, o pranteado escritor argentino. É uma reflexão poética sobre o passado de um cidadão que lutara a vida toda contra o fantasma de conviver nas trevas da cegueira, tragédia pessoal que marcou sua existência. Aos 85 anos, revelando algum arrependimento, Borges observa que poderia ter tomado mais sorvetes, que não devia ter levado a vida tão a sério e lamenta não ter sido mais tolo do que foi. Se lhe fosse permitido retornar, trataria de cometer mais erros, de ser menos certinho e mais feliz... Naquele instante, reconhecia, era um pouco tarde para pôr em prática as coisas que deixara de fazer.João Cabral de Melo Neto, também teve seu momento de Madalena ao pressentir o “bafo da magra” a rondá-lo. Com efeito, o autor de Morte e Vida Severina, faria comovente desabafo lamentando o distanciamento de sua religião, das suas ave-marias, orações ensinadas pela mãe e que, por insegurança, modismo ou mero desafio, as renegara. Conta-se que, nos estertores, teria pedido para ouvir uma salve-rainha. Antes de partir, queria ficar de bem com a mãe do Céu.Diferentemente de Sinatra, que em My Way proclama, do seu jeito, seu mea culpa, ao interpretar Je ne regrette rien, a outonal Edith Piaff, apesar de todas as agruras pessoais, concupiscências e revertérios, não obstante fases de glória e glamour, solta a potente voz de contralto e em altos brados desautoriza qualquer arrependimento.Desfrutando as delícias de doce refúgio em um balneário paulista, quem também não quer ouvir falar em penitência é o terrorista italiano Cesare Battisti, hoje um imaculado cidadão brasileiro. Capa da IstoÉ dessa semana, é o tal cara que na Itália integrava facção criminosa. Trânsfuga internacional, seu país o aguarda para cumprir prisão perpétua por assassinatos. Para boa parte dos italianos, CB não passa de um bandido comum.Todos sabem que os grandes psicopatas não têm arrependimentos. Fascinados pela autoria de crimes com requintes perversos, muitas vezes, em juízo, são compelidos a exprimir essa “fraqueza”, apenas para driblar condenações menos suaves. Remorsos uma ova! Battisti dispensa-se dessa farsa pequeno-burguesa. Por cima da carne seca, ídolo gauchiste, tem em Lula e Tarso Genro fiéis escudeiros. Aliás, Genro, ao hostilizar o governo italiano tachando-o de decadente, sofre de amnésia seletiva, que o impede de lembrar que ordenha um governo em incontrolável declínio moral.

UMA ARMADILHA PARA OS ALAGOANOS

Pensei que jamais veria a extinção do tradicional vestibular como preferencial porta de entrada aos cursos superiores. Eis que, de súbito, despretensioso plano de avaliação das escolas de nível médio, o Enem, passa a servir como único parâmetro para o acesso à tão sonhada faculdade.
Aposentado da Ufal, com a autopercepção de um barionix num tabuleiro de xadrez, com netos de 8 e 10 anos, a essa altura deveria apenas cuidar dos meus pacientes e comprar figurinhas para os netinhos.
Calejado pelo acompanhamento de vestibulares de amigos e parentes ao longo de anos, o tema me é caro. Vivenciei aprovações dos meus filhos, daquela que seria minha esposa, dos meus irmãos e até da minha mãe, para só falar das glórias.
Esta semana, a Academia Alagoana de Medicina promoveu uma sessão sobre o assunto, tendo como explanadores a reitora Ana Dayse e o diretor da Copeve, Almeida Lima, ambos da Ufal. Os velhos questionamentos retornaram.
A propósito, em 1977, comentei em artigo mudanças nas datas do vestibular da Escola de Ciências Médicas, que, a bem da verdade, atravessava calamitosa crise financeira. A divergência de datas teria como finalidade atrair inscrições pagas e com isso engrossar o raquítico orçamento. Com tais facilidades e com o nosso capenga ensino médio sem tutano para competir até com o de Sergipe, a ECMAL transformar-se-ia no paraíso dos “estrangeiros”.
Algo mudou deste então. O segundo grau procurou se adaptar às exigências dos vestibulares e o índice de aprovação bombou. Na contramão, tradicionais colégios de Maceió sentiram na carne o obsoletismo pedagógico. Certamente levará algum tempo para uma readequação aos preceitos do Enem. Nesse aspecto, soa precipitada a sofreguidão da Ufal em aceitar o Enem “pleno”.
Com a decadência do ensino público, a impor cartilhas partidarizadas e a estimular a cultura do “nóis se ferra”, além da criação do imoral e anticonstitucional sistema de cotas, são levianas certas críticas ao sistema privado de educação, como a propaganda, na busca de alunos. Pior é o governo: na insaciável caça de votos, com verbas públicas alardeia o que não faz.
O fato é que, hoje, quem se debruçar sobre o enigmático e volátil sistema de inscrição (Sisu), após receber a confirmação dos pontos do Enem, vai constatar a enrascada em que se meteu. Com a universalidade da concorrência, dificilmente teremos alagoanos incluídos nos cursos de maior apelo: medicina, odonto, direito, engenharia, dentre outros.

DESTINO

Era o feriado de Todos os Santos de 1919 quando um grupo de intelectuais alagoanos reuniu-se em torno da ideia de criar uma agremiação destinada ao cultivo das letras. Trinta e cinco amantes da literatura deram o ar da graça naquela tarde, tendo como palco o recém-construído Teatro Deodoro, joia do arquiteto Lucarini e orgulho da administração dos Malta, oligarquia que deu as cartas no amanhecer do passado século vinte.
Falava dos presentes e dos representados: dentre tantos, cito Moreira e Silva que respondia por ele e pelo próprio governador-intelectual Fernandes Lima. Jaime de Altavilla, Lima Júnior, Cipriano Jucá, Guedes de Miranda, o primo Fernando Mendonça, Demócrito Gracindo, Jorge de Lima, Joaquim Diégues, Diégues Júnior, Arthur Acioly, Barreto Cardoso, tudo isso sob as bênçãos do clero: Cônego Machado e Pe. Júlio, todos imortais fundadores.
Orador de grandes recursos, o advogado Guedes de Miranda selaria o encontro com frase lapidar: “A força de uma Nação reside mais no fulgor de suas letras que na possança de seus exércitos”. Curiosamente, embora não tenha sido seu primeiro presidente, nem estivesse presente na reunião de fundação, a AAL ficaria conhecida como a “Casa de Gracindo”.
Nos anos setenta, o sodalício receberia um presente de Lamenha Filho, “o governador que amava as letras”, segundo a poética definição do lendário Ib Gatto Falcão. Com efeito, o antigo Grupo Pedro II passaria a ser sua sede. Belo destino para um lugar que já servira de hospital e notabilizara-se pela excelência do ensino público, em saudosas épocas.
E, no entanto, tudo se move, seguindo a erudição do médico Luiz Nogueira, no seu discurso de posse na AAL, citando Galileu Galilei. Hoje, a Casa de Gracindo ocupa a antiga residência do poeta Jorge de Lima. Desfigurado escombro, somente a obstinação de um dr. Ib conseguiria resgatá-la do obscurantismo do anonimato e de impiedosa demolição a que estava predestinada.
Quis o destino que um despretensioso cronista semanal, médico por profissão e tímido diletante das letras, fosse o escolhido para ocupar a vaga do iluminado d. Fernando Iório, seu ex-confessor. Nesse santuário de cultura e saber, o velho bebedourense, filho do doutor José e de dona Rosinha, já se sentiria recompensado em apenas concorrer.
Nos sonhos mais insanos, jamais ousou inserir ombrear-se a um ícone como Aloysio Galvão, mestre querido, em nome do qual homenageia os amigos que juntos sofreram e vibraram.

A RÃZINHA

Voltou a circular pela rede de computadores a história da rãzinha cozida. Relembro: uma rãzinha é colocada numa panela de água fria e nada tranquilamente. Um fogo maroto é aceso e esquenta o fundo da panela. Num dado momento, a temperatura atinge um nível tão gostoso que o pequeno batráquio parece se sentir ainda melhor.
Nos seus devaneios, ora viaja para o exterior com o salário do Bolsa Família, ora nada em sua piscina na casa construída no programa Minha Casa, Minha Vida. Seus filhos – que estudaram nas excelentes escolas públicas – estão com as vagas garantidas pelo sistema de cotas. Pouco importa se o exame vestibular trocou de etiqueta.
O experimento continua. A rãzinha, agora sob uma temperatura mais elevada, é tomada por desconhecida lassidão. Estaria doente? Os sonhos da classe média em ascensão não mais povoavam inteiramente sua mente. O corpo está mais quente do que o habitual. Evidentemente, está com febre. Vivendo nos mangues, certamente foi picada pelo mosquito da dengue...Passado o primeiro momento de pânico, volta a animar-se. Por que o desespero se o seu país, além da excelência do ensino público, conta com o melhor sistema de saúde do planeta, aquele que o presidente classificou de “quase perfeito”? Faria os exames necessários. Se precisasse de internamento, tiraria de letra. Menos nos hospitais privados, desses gananciosos capitalistas, eternamente insatisfeitos com os valores pagos pelo Sistema.
Graças a Deus, existia o inigualável sistema de saúde pública. Até o tomógrafo da Unidade de Emergência de Arapiraca (parado há meses) voltaria a funcionar, só para atendê-la.
Sentiu-se recompensada pelos pesados impostos que vinha pagando ao longo de anos. Finalmente, estava vivendo num país que valorizava a moral, a ética, a eficiência. Um país de Sarneys, Dirceus e Malufes. Falava por ela, cercada por cientistas ilustres a observá-la. Por um momento (seria alucinação?), teve a impressão de que uma senhora a olhava com doce olhar e a chamava de “companheira”.
Já não nadava. A temperatura estava intolerável. O estranho era que ninguém parecia se incomodar. Era assim que estava sendo tratada? Iria à imprensa. Mas a que imprensa? À hegemônica, capitalista, rancorosa, golpista, conservadora? Não, essa não mais existe. Agora, só a oficial, a do PT e amigos. Aquela que se preocupou tanto em estudar e apontar as crises cíclicas do capitalismo, que esqueceu que o muro era de barro. Pensou nisso, mas já era tarde.

O BOM BURGUÊS E OS MAUS COMUNISTAS

O dramaturgo Dias Gomes teria levado para o túmulo infinita mágoa: a de nunca ter sido preso por subversão durante a ditadura militar. “Não me conformo com essa ingratidão... Depois de tudo que fiz, bem que eu merecia uns diazinhos de cana”, teria repetido em mais de uma entrevista.
Nascido e radicado em Murici, o diletante marxista Mozart Verçosa Damasceno, não padeceu da mesma melancolia do autor de Roque Santeiro. Com efeito, tendo como pano de fundo a biografia do velho militante, sob o título Mozart Damasceno, o bom burguês, o historiador Geraldo Majella recupera parte da trajetória do PCB em Alagoas.
Pesquisador perfeccionista, Majella traça perfis de velhos camaradas ao mesmo tempo em que situa o partido no contexto histórico, trazendo importantes subsídios para a compreensão desses movimentos que, a bem da verdade, pretendiam instalar ditaduras à semelhança da soviética e, menos remotamente, das chinesa e cubana.
O fato é que Geraldo de Majella escreveu um livro que não permite interrupções na leitura. Há uma narrativa, diria, eletrizante de fatos marcantes da vida pública alagoana, ainda muito vivos, com personagens nomeados, alguns folclóricos, outros nem tanto. Por si só, o biografado é um figuraço.Como foi dito, tinha especial orgulho por ter sido preso nos dias seguintes ao golpe de 1964, sobretudo pela convivência com personagens carimbadas do esquerdismo alagoano. Lendo os depoimentos que Majella registrou é que a gente compreende a tristeza de Dias Gomes.Ex-aluno do extinto Colégio Batista Alagoano, Damasceno teria se “convertido” ao comunismo graças à leitura do O Poder Soviético, opúsculo escrito pelo Decano da Cantuária, Hewlett Johnson. O detalhe é que o anglicano descreveu um fantasioso cenário paradisíaco da Rússia dos anos 30 do século passado, uma época de brutal repressão.Em 1984, estava convicto da inexorável expansão do socialismo no continente europeu. Poucos anos depois, se vivo estivesse, certamente teria profunda decepção ao assistir à queda do Muro e à ruína do império soviético.
Falecido precocemente em 1987, bem antes da farra conhecida por “bolsa ditadura”, tal sua têmpera, não consigo enxergar o Bom Burguês numa fila do INSS recebendo indenizações pelos 17 dias de detenção.Nada se compararia, contudo, presenciar o atual clímax de degradação do PC do B, um dos últimos bastiões a arrotar alguma moralidade na política. Nesse aspecto, a natureza foi-lhe generosa.

BATOM NAS VIRILHAS

Mosteiro beneditino do PC do B, a troca de nomes no Ministério do Esporte nada ou pouco representa para a população. Notícias de mau uso do dinheiro público, como outras tantas do gênero, já se banalizaram. Orlando sai de campo, entra Aldo Rebelo, espécie de flor de lis do partido.
Para os defensores do imaculado ministro, ele não passaria de uma indefesa vítima de falsas acusações de um bandido, um desqualificado moral. Não há provas. Tirante os rastros de batom nas virilhas, falta a foto no leito. Sua fritura estaria ligada à abominável intolerância racial, discriminado por brancos de olhos azuis. O próprio Silva bradando inocência, num penúltimo e comovente rasgo de coragem cívica, criaria uma comissão para "aprofundar as investigações". Sua fala final, getuliana, foi apoteótica: “Saio para preservar a minha honra”.
Iludem-se, contudo, os que pensam em desemprego, rua da amargura e outros que tais. Pelo seu desempenho, não tenho dúvidas de sua participação como protagonista da novela das 10, contracenando com Paola e Camila.
É incontestável a presença sombria de poderosos setores alinhados com a imprensa golpista, a tal hegemônica, que, inconformada, não para de infernizar a vida dessa plêiade de patriotas, à frente Sarney, Maluf, Zé Dirceu, íntegros até onde a lei faculta. É um orgulho ter toda essa gente ilibada comandando os nossos destinos.
Todos sabem que PT e PC do B nunca negociaram com os desprezíveis capitalistas, corja de burgueses decadentes. O.S. é tão inocente quanto Santa Tereza D’Ávila. Nunca houve desvios de coisa nenhuma. As ONGS do PC do B são de uma seriedade dominicana. O mal neste País esconde-se nas redações desses jornais fascistas que ficam inventando histórias para denegrir a honra dos homens de bem. Uma coisa me parece certa: Dona Dilma demitiu o Orlandão precipitadamente.
Oásis de políticos e gestores acima de qualquer suspeita, em Alagoas, o caso do falido Banco PanAmericano tem enredo dos mais curiosos. Detentor dos papéis de milionária dívida oriunda do governo Lessa/Abílio, quando teria deixado de honrar empréstimos consignados dos funcionários, ao ser quitada por Téo Vilela, uma “taxa de retorno” teria sobrevivido para irrigar a campanha da reeleição.
Mas nunca a ironia atingiria tão formidável paroxismo como no rombo do Tribunal de Contas de Alagoas. Pois é, nada menos que cem milhões são desviados das barbas dessa independente e diligente Corte sem que ninguém se desse conta.

O LAICO, O SACRO E O GROTESCO

Embora menos veementes, sempre houve pressões em relação aos denominados dias santos de vozes oriundas de denominações religiosas não católicas – um tanto enciumadas – e de fontes mais politizadas, que viam nesses privilégios indevida presença do clero nas coisas do Estado. Empresários também chiavam, por razões óbvias. No início do período militar saiu o decreto fulminando vários desses “dias santos”. Na condição de secundarista do Colégio Diocesano/Marista, curti várias dessas datas, inclusive o célebre 6 de junho, consagrado ao fundador da Ordem, o piedoso Pe. Marcelino Champagnat. O ano começa com o Dia da Confraternização Universal. Antes, seguia-se o feriado de 6 de janeiro, dedicado aos reis magos. O Carnaval incluía a malandragem até as cinzas, na quarta-feira. Graças a Deus, Semana Santa (encolhida) e Corpus Christi seriam preservados com todo o esplendor semiológico. São Pedro resistiria com outra nomenclatura, homenagem a Floriano Peixoto. São João caiu.A Assunção de Maria, a 15 de agosto, não escapou aos militares. Felizmente, para nós, o mês encerra-se com o feriado de 27, dia de N. Sra. dos Prazeres. Em setembro, somos contemplados com dois feriadões: o Dia da Independência e o 16, data da emancipação de Alagoas.N. Senhora Aparecida é comemorada em 12 de outubro, menos pelo fervor pio, mas sobretudo por ser o Dia da Criança. O décimo mês abriga a data que homenageia milhares de brasileiros, a vilipendiada categoria dos funcionários públicos. No meu tempo de criança, novembro era pródigo: dias 1 e 2 (Todos os Santos e Finados) e o 15, Proclamação da República. Rebaixado o Todos os Santos, as autoridades resolveram substituí-lo pelo dia 20, criando o Dia da Consciência Negra.Dezembro, de tantas saudades, do Natal e da véspera de Ano Novo, inicia-se com homenagens à N. Sra. da Conceição, padroeira do Reino de Portugal, e dia consagrado à Iemanjá, rainha das águas.Dessa miscigenação, não poderia ignorar a irônica e condescendente onipresença de imagens e gravuras equestres de São Jorge, nos vestíbulos de bordéis, com sua poderosa lança dominando o dragão, a todos abençoando.Nesse mesmo viés, divulgou-se uma foto da modelo Carol Abranches, uma das amiguinhas do astro Neymar, em diabólica pose exibindo formidáveis glúteos, justo num painel com a imagem de um dos meus santos preferidos, o milagroso Santo Antônio. Um escárnio.

MEDIOCRIDADE E EXCELÊNCIA

Os defensores de cotas para ingresso nas universidades dizem que a lei corrige um erro histórico de discriminação de 500 anos, nos quais negros, índios, mamelucos e egressos das escolas públicas não tiveram acesso ao ensino superior.
A propósito, dias desses, fui instado a responder se alguma vez, nos 34 anos de ensino, consegui distinguir na sala de aula aquele que havia sido beneficiário da cota. De fato, nunca tive essa percepção, mas jamais desperdicei meu tempo com tais minudências. Até os que vinham de faculdades estrangeiras chinfrins, que, de súbito e oblíquos, aterrissavam, nunca fiz-lhes distinção.
Tudo é relativo. Narro fatos com a Escola de Ciências Médicas, que, aliás, são de farto saber: anos atrás, o bizu corria solto no vestibular daquela unidade. Sabia-se até quem eram os agraciados. Daquelas turmas, muitos se superaram e são conceituados, nada lembrando a mácula do pecado original. Ou seja, para ser um bom profissional, o vestibular pouco representa.
O lado chato dessas histórias de garotos e garotas que passam com o auxílio de bizus ou sob a unção de cotas é a usurpação.É o desprezo pelo mérito. No instante da avaliação, por meio do instrumento legal (vestibular, Enem), havia pessoas mais competentes, que certamente estudaram e mereciam a aprovação. Imaginem quantos futuros bons médicos, engenheiros e advogados, desgostosos com a injustiça, desviaram-se de seus objetivos? Quem pode dizer que ali não se abrigavam grandes talentos, novos Carlos Chagas, réplicas de Oppenheimer?
Admito estar algo contaminado pelo “furor gozandi” de parte do corpo docente da Famed, a Faculdade de Medicina da Ufal. É justo o orgulho: a instituição teria conseguido o conceito máximo no Enade.Enade é a sigla de Exame Nacional de Desempenho de Estudantes. Polêmica ferramenta, é uma prova de 40 questões versando sobre as matérias lecionadas no curso. Historicamente boicotada, no ano de 2010, os alunos de Medicina da Ufal resolveram encará-la com mais responsabilidade. Até pelo detalhe de não poderem faltar, sob pena de não colar grau.O entusiasmo é maior por conta das baixas pontuações em edições anteriores.
Curso em discutíveis mudanças na grade curricular, alguém mais açodado pode achar que com 3-4 anos já era possível se progredir da mediocridade para a excelência. Calminha aí com o andor, companheiro! Não vamos dar uma de Lula (nunca antes...). Na verdade, independentemente de Enade, a Famed sempre foi avaliada como uma boa escola

O DRAGÃO SUBMISSO

Nos anos 60 do século 20, um parente – fumante compulsivo e contumaz frequentador de rodas de dominó e cachaça – apareceu rouquenho. A despeito das limitações tecnológicas da época, finalmente descobriu-se um câncer na laringe. Em São Paulo, o famoso Jorge Fairbanks, do HC, amputou-lhe boa parte do órgão e garantiu-lhe uma sobrevivência de cerca de duas décadas. Lembro de sua figura franzina, voz perto do inaudível, com um véu ao pescoço a proteger-lhe a redentora traqueostomia. Se a Souza Cruz perdeu um consumidor, a bomba de sena e a lapadinha comemoraram o retorno glorioso de um dos seus grandes astros. Desde então, muita água passaria sob a ponte. Hoje, dependendo do estágio da doença, protocolos de tratamento já dispensam o bisturi do cirurgião, as grandes mutilações, optando por modelos mais conservadores, não obstante, muitas vezes devastadores em relação ao estado geral do portador.Como um macabro e inopinado desígnio, tendo como pano de fundo a hereditariedade e outros “fatores de risco”, a estatística mostraria sua fria face para o nosso ex-presidente. Íntimo da caninha e do tabaco – segundo dizem – alçado à condição de semideus pelo povão e puxa-sacos em geral, a doença tem despertado comentários dispares. Isolados os radicais, que exigem que Lula vá para o inferno do HGE Osvaldo Brandão, o câncer ex-presidencial sugere algumas reflexões. Há que se dizer que a população leva de 2 a 4 meses para iniciar um tratamento de câncer. Pelo SUS, químio, radioterapia e a própria cirurgia são verdadeiras roletas russas. Certos Planos de Saúde são igualmente desgraçados. A regra é clara: todos os setores devem ter preços justos, menos os serviços médicos. É por isso que a magra sinistra deita e rola. Apologista inflamado do sistema de saúde, a quem denominou (brincando?) do mais perfeito do mundo, Lula e bajuladores até que poderiam se desculpar e admitir que toda aquela fala não passava de proselitismo etílico. Mas como? Se é por essas e outras que se está mantendo no poder o que existe de mais puro e belo, e inocente como a flor, da política brasileira.Em meio a comoventes explosões de otimismo, uma aura a mais irisa a figura de Inácio: a de herói de corpo fechado, um São Jorge de bordel, com sua certeira lança no gogó do terrível dragão do câncer, tornado dócil, humilde e submisso diante de indômita coragem, de ilibada moral. Síntese de Teseu, Ulisses e Hércules, nenhum bicho cabeludo lho prevalecerá.

CULPADOS E INOCENTES

Não foram os elevados princípios, as nobres intenções, que norteiam e dão sentido ao exercício da arte de Hipócrates, os motivos que pautaram a conduta do médico americano Conrad Murray, considerado culpado por um tribunal de júri. Segundo os jornais, Murray deve ter uma pena de prisão em torno de quatro anos.
Acusado de negligência, dentre outros, digamos, “desvios”, o médico inscreveu definitivamente seu nome como o sujeito que dava respaldo “legalista” a um consumidor inveterado de drogas, desde prosaicos benzodiazepínicos (lorazepam) até o anestésico Propofol, de uso praticamente exclusivo em ambiente hospitalar. Um irresponsável de marca maior. Equilibrado num fio de navalha, embora não seja o mais abjeto dos homens, sua inidoneidade é absolutamente incompatível com os deveres da profissão.
Espécie de babá de luxo do contumaz usuário, na verdade é cúmplice de uma morte (suicídio?) anunciada. Tomando carona no prestígio do cantor/bailarino, com certeza regiamente remunerado pelo astro, na sua cabeça talvez valesse a pena o risco da empreitada. Por tudo, quer nos parecer justa sua condenação.
Pobre menino rico, Michael Jackson vivenciou conhecido ritual trágico. Script freqüente nesse feérico e glamoroso mundo artístico, drogas excitantes, que eletrizam a performance, são substituídas, na descida do pano, por depressores violentos do sistema nervoso. Cérebros humanos não estão preparados para esses paroxismos farmacológicos. No fundo, é mais uma grande vítima do que se convencionou chamar fama, aplauso e dinheiro.
Todos os dias, a imprensa veicula novos casos de famosos que enveredaram nas ciladas dos intensos e fugazes prazeres das drogas. Muitos transformam-se em cruzes nas estradas, outros têm promissora vida artística amputada. Encarquilham-se deslumbrantes belezas físicas, rapidamente consumidas; extraordinários talentos são desperdiçados. A lista é grande, desde Marilyn Monroe, Elvis Presley até a nossa querida Elis Regina.
Mas essa desgraça, apropriadamente chamada de droga, faz suas vítimas mesmo entre os não usuários. O desmantelo em que se transformou o quesito Segurança Pública, atende sobretudo por essa nomenclatura. Na busca de dinheiro para a droga, não é por acaso a absurda taxa de assaltos e assassinatos.
Por favor, intelectuais e sofrida classe média: não me venham dizer que a apologia do uso “recreativo” e charmoso de drogas ilícitas – caso dos estudantes da USP – não alimenta o tráfico.
Irrecuperável careta, escrevo esse artigo profundamente chocado com a morte, nos morros do Rio de Janeiro, do repórter cinematográfico Gelson Domingos. É mais uma vítima inocente.

MURILLO

Discretamente, quase silenciosamente, Murillo Gameleira Vaz partiu sem ter tempo de se despedir dos amigos e admiradores. Todas as semanas, enviava-lhe meus artigos, antes de serem publicados na Gazeta. Fino cronista, ele também me permitia uma leitura antecipada dos seus brilhantes textos que, por coincidência, eram divulgados no O Jornal, também aos sábados.
Há poucos meses, ao saber que estava se despedindo das crônicas regulares deixei registrado em artigo, certamente voz de seus cativos leitores, a frustração de não poder mais degustar de dissertação de tão alto nível. Murillo engrandecia o gênero.
Nascido nas Alagoas, cedo nosso pranteado amigo entrou em contato com a intelectualidade nativa. O pai, jornalista, escritor, cronista e biógrafo Augusto Vaz Filho era um respeitado homem das letras. Membro do IHGAL, fundador da Academia Maceioense de Letras, costumava conduzir o filho ainda menino às tertúlias do Centro Cultural Emílio de Maya.
Depois de passar pelos diários locais, Murillo foi buscar auroras no Rio de Janeiro. Gauchiste à Drummond, o final dos últimos anos 50 vai encontrá-lo em Moscou integrando comitiva brasileira num Congresso, passagem que registrou no seu livro “Relances - Crônicas, quase sempre”. Por conta disso, Sebastião Nery em sua coluna o homenageou com extensos comentários.
A experiência dessa imersão parece ter sido marcante para Murillinho, como era carinhosamente tratado, parte pela compleição franzina, parte pela imanente doçura. Traço de caráter, fugia do modelo de esquerdismo astigmata em que se escamoteiam os horrores do regime para “não dar carne a gato aos adversários”. Muito menos, deixou-se enganar ou seduzir por cargos e outros mimos.
Em nosso longo e último bate papo, por telefone, falamos de tudo: do Francisco Reinaldo e seu ABC das Alagoas, da minha eleição para a AAL, da via crucis para ter o seu novo livro editado pela Universidade de Juiz de Fora...
Aniversariantes do mesmo decanato de janeiro, fingia que não acreditava que eu não era um discípulo de Omar Cardoso, famoso horoscopista do século passado. Nessas horas, me interrogava: “Então, mestre, que reservam os mistérios e desígnios dos astros aos capricornianos, nesses próximos dias?”
Acho que não pressentiu que a magra sinistra o espreitava. Tinha projetos. Além do livro, insistia para que eu descobrisse o telefone do filho do Jorge Cooper. Era um aficionado do poeta. Creio que morre em paz alguém que pensa em poesia.

CRISTOS, NAPOLEÕES E CÉSARES

Cesarianas voltaram à baila com a divulgação das altas taxas, superando a marca de partos vaginais, relatados como normais. Lembro meu pai retornando de suas jornadas médicas, atravessando noites, depois de extenuantes partos. Naquele 1945, optar por ser clínico geral em Bebedouro era estar disposto a encarar desde a diarréia infantil ao parto caseiro à luz de candeeiro.
Parturientes não faltavam, inclusive na própria casa. Minha mãe teve onze filhos, todos partejados por quem contribuiu com a concepção. Sem ser exceção entre os obstetras da época, não foi treinado para realizar cesarianas, habilidade que, segundo as estatísticas, teria necessitado em 15% das vezes. Ou seja, 1,5 de seus filhos teriam indicação para o método.
Tudo se move, como disse o imortal Luiz Nogueira, invocando Galileu Galilei. Séculos se passariam desde o áspero monólogo entre o Criador e suas telúricas criaturas. Naquela manhã, Deus pegaria pesado com aqueles dois cretinos irresponsáveis, que jogaram tudo fora por conta de uma rapidinha. Ainda mais vindo com aquela conversa mole de serpente, maçã, tentação...
Com a expulsão do Paraíso, dentre outras retaliações, a mulher, coitada, ficaria condenada às dores do parto, maldição parcialmente contornada com a invenção da anestesia. Presume-se que Jeová não apreciou ser contrariado. Talvez por isso, o SUS pague tão miseravelmente aos parteiros e anestesistas, um dos alegados motivos da diminuição dos partos vaginais.
A ultrasonografia, cada vez mais detalhista, desfez a mística e as surpresas de um útero grávido. Há tempo de conceber e tempo de nascer. Mais de três filhos, nem pensar. Parir como índia sem viver como tal, soa jocoso. O SUS, por sua vez, quase exterminou os pediatras. Quem vai cuidar das crianças?
Conspira-se para o parto vaginal virar exceção. É tarefa hercúlea encontrar um médico disposto a permanecer semivigil, por R$ 60,00, 8-12 horas seguidas, na expectativa de um incerto nascimento. Além de tudo, data venia obstetras-ecologistas, considero o parto normal uma violência da natureza.
Volto ao meu pai. Migrando da Clínica Geral para outra área, livrou-se dos partos à luz de candeeiros, mas não escapou das “cesáreas”. Sim, na psiquiatria, ao lidar com delirantes e psicopatas, passou a conviver com simulacros de Cristo, Napoleão e César. Ao original do último, equivocadamente, atribui-se beneficiamento com a satanizada cirurgia.

SABINO ROMARIZ

Num ensaio sobre Sabino Romariz, a neta, poeta Vera Romariz, refere ser duplamente desafiante falar sobre o avô ilustre que morreu aos quarenta anos. Um avô que não conheceu, mas de quem recebeu no DNA uma maravilhosa veia criadora.
Acabo de assumir na AAL a cadeira 15, que tem justamente o transgressor poeta penedense como patrono. Sucedo a D. Fernando Iório, Bispo Emérito de Palmeira dos Índios, que, por sua vez, substituiu o poeta Cipriano Jucá, um dos 40 fundadores da instituição.
É praxe, ao recém empossado, visitar a biografia dos que o precederam, encargo cada vez mais leve e menos protocolar à medida que se aprofunda nas pesquisas.
Falava de Romariz, que não fugiu do estereótipo de miscigenar boemia/inspiração. Ex-seminarista, percorreu vários estados brasileiros entre 1890 e 1903, quando retornou a Penedo. Culto, poliglota, em qualquer lugar que estivesse dispunha-se a ensinar línguas (latim, francês, inglês) e até desenho figurado.
No Rio de Janeiro conviveria com monstros sagrados da cultura brasileira, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Escrevia para jornais e fazia poemas. Belos poemas. Na antiga Corte publicou seu primeiro livro.
Polêmico quanto ao modus vivendi, não foi menor quanto ao seu estilo poético. Se simbolista, parnasiano ou romancista.
A unanimidade corre por conta de inigualável repentista, rara inteligência e fidelidade a Guerra Junqueiro, notável poeta português, cujas quilométricas poesias são impregnadas de religiosidade, anticlericalismo e de recorrente conteúdo social.
Nem só de Cristo, Judas, Madalenas e Jós viveu o vate penedense. Encantado por Aspásia, “a bela loura de olhos verdes”, elegeu-a eterna musa inspiradora e mãe de seus dois “pequenos melros”: José e João.
Em 1992, Francisco Sales, presidente da Fundação Casa de Penedo “ressuscitaria” Sabino, publicando Poesias Escolhidas, com prefácio do brasiliense Cassiano Nunes e orelha de Ledo Ivo.
O texto de Ivo, acerbamente denominado de “Alagoas, cemitério de poetas!”, discorre sobre aspectos pontuais da obra de Sabino, sem esquecer de mencionar que, “(...) surge, como uma clareira luminosa, o verso plácido do poeta que, mesmo quando distante de sua terra natal, ouvia o fluir das águas do Rio São Francisco e os sinos da igrejas de Penedo”.
Fecundo, em meio a tantos papéis não resgatados, talvez definitivamente perdidos, em 1911, a dois anos de sua morte, o poeta publicaria o zênite de sua criação: Toque D´Alva.

SABINO ROMARIZ

O transgressor poeta penedense, é o patrono da cadeira 15 da Academia Alagoana de Letras. Num ensaio sobre Sabino Romariz, a neta, a consagrada Vera Romariz, refere ser duplamente desafiante falar sobre o avô ilustre que morreu precocemente, aos quarenta anos. Um avô que não conheceu, mas que lhe injetou no DNA uma maravilhosa veia poética.
Sem dispor do equipamento lingüístico, muito menos da técnica semiológica dos poetas, detenho-me na periferia da obra do grande vate.
Acabo de assumir a cadeira que tem justamente o penedense como patrono. Sucedo a D. Fernando Iório, ex-pároco de Bebedouro e Bispo Emérito de Palmeira dos Índios, cujo invejável arcabouço cultural é por demais conhecido. D. Iório, por sua vez, substituiu um outro poeta, Cipriano Jucá, um dos quarenta fundadores da AAL.
Mas eu falava de Sabino Romariz, que não fugiu do estereótipo de alguns grandes poetas e artistas no quesito boemia. Ex-seminarista, percorreu vários estados brasileiros num período de 13 anos, entre 1890 e 1900. Culto, poliglota, em qualquer lugar que estivesse era requisitado a ensinar línguas (latim, francês, inglês) e até desenho figurado.
No Rio de Janeiro conviveria com grandes figuras, monstros sagrados da cultura brasileira, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Escrevia para jornais e fazia poemas, belos poemas. Na antiga Corte publicou seu primeiro livro.
Polêmico quanto ao modus vivendi, não foi menor quanto ao seu estilo poético. Especialistas não chegam a um acordo quanto à escola do poeta: se simbolista, parnasiano ou romancista.
A unanimidade é quanto à fidelidade a Guerra Junqueiro, respeitado poeta lusitano, famoso por suas quilométricas poesias, impregnadas de religiosidade, muitas vezes anticlericais e de recorrente conteúdo social.
Em 1992, Francisco Sales, presidente da Fundação Casa de Penedo, sob o argumento de que uma figura como Sabino Romariz não poderia estar esquecida, publicou Poesias Escolhidas, com seleção e prefácio do brasiliense Cassiano Nunes e orelha de Ledo Ivo.
O incisivo texto de Ivo, acerbamente denominado de “Alagoas, cemitério de poetas!”, discorre sobre aspectos relevantes da obra de Sabino, sem esquecer de mencionar que, “Ao lado de tantas vociferações e amarguras, surge, como uma clareira luminosa, o verso plácido do poeta que, mesmo quando distante de sua terra natal, ouvia o fluir das águas do Rio São Francisco e os sinos da igrejas de Penedo”.
Fecundo, acredita-se que boa parte de sua produção esteja definitivamente perdida. Em 1911, a apenas dois anos de sua morte, atingira o zênite de sua criação poética: Toque D´Alva, coincidentemente única obra a ser editada em Lisboa.

AMIGO (POESIA DE VERA ROMARIZ LIDA NA CERIMÔNIA DE POSSE NA AAL EM 06/12/2011)

Amigo:
As crianças que crescem à nossa revelia nos dizem
Que o tempo passou sem pedir licença.
E o que passamos
pequenas conquistas
inesperadas perdas
Nos dizem que adquirimos o direito à alegria
E porque adquirimos
Havemos de tecê-la com linhas de bem querer
Agulhas de afetos
E o direito de manter uma criança escondida em cada um de nós
Num certo jeito de resistir à velhice sisuda que esquece sonhos e projetos
Na viagem feliz a Paris com a mulher amada
Na libertinagem saudável das fantasias
Na memória de um Bebedouro onde jamais deixaste de beber histórias da infância

Amigo:
As crianças que crescem a nossa revelia te ensinam o prazer da tolice necessária
Da leveza dos sábados
Da gargalhada sem script
E é uma dádiva envelhecer com esse ar menino
Que te salva das certezas arrogantes
E nos diz,entre risos,por entre lágrimas antigas ou reincidentes
Que a historia que viveste
E escreveste
Comportam,ainda,
A sem cerimônia da tua crônica
Assanhada menina
Que sorri e grita com igual vigor
Um pouco do Caio
Um muito da Maria
Um tanto da Rosinha
Imagem que espia
E abençoa
A alegria
Criança
de agora.

Maceió, 6 de dezembro de 2012.

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS

EXMO. SR. PRESIDENTE DA ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS, DR. CARLOS BARROS MÉRO
AUTORIDADES QUE COMPÕEM A MESA DIRETORA
EMINENTE ACAD. PROF. DR. RICARDO NOGUEIRA, RESP. PELA MINHA RECEPÇÃO
FAMILIARES
MINHAS SENHORAS, MEUS SENHORES

Diz a Mitologia que o arquiteto Dédalo, o criador do labirinto onde morava o monstro Minotauro, caiu em desgraça e foi encarcerado pelo rei Minos, que o mandou vigiar com canino rigor, inibindo qualquer tentativa de fuga, pelo mar ou pela terra. Espírito inventivo, nosso herói construiria dois pares de asas: um para si e outro para o filho, Ícaro. Dentre as instruções que o pai transmitiu, constava a de manter uma altura de voo que não fosse tão baixa a ponto de sofrer a influência da umidade terrestre, nem demasiadamente alta, evitando a proximidade excessiva do sol, cujo calor certamente derreteria a cera, uma das matérias que davam sustentação à parafernália. O resto da história todos sabem: o jovem Ícaro empolgou-se com o poder que as asas lhe concederam. Imprudente, desobedeceu às recomendações paternas e o sol cumpriu o seu papel no desfecho fatal.

Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos,

Agora que oficialmente atravessei os umbrais desse silogeu, graças à imensa generosidade dos senhores, espero podermos voar juntos, tão alto quanto nossas asas puderem nos levar. Diferentemente das mitológicas de Dédalo e Ícaro, a cera de nossas asas são refratárias às intempéries, posto serem feitas de sonhos. Na realidade, foi com essas asas que um dia pretendi alçar vôo, sair da segurança que a planície costuma oferecer e poder aqui estar a altear-me nessa companhia ilustre, abrigado nessa Casa que transpira cultura e história. Muito obrigado pela confiança.

Alguém já disse que as vitórias têm muitos pais. As derrotas seriam órfãs. Minha caminhada até esse momento glorioso não foge a esses comentários. Recebi apoios e estímulos importantíssimos, sem os quais não teria perseverado, sequer teria ousado vir assinar uma ficha de inscrição como candidato.

Fora dos muros da vestal Casa de Demócrito, tive o estímulo indispensável e o apoio irrestrito da minha família, particularmente da Nadja, minha querida companheira de jornada há mais de 40 anos. Tânia Pedrosa, Félix e Cau Oiticica, Breno Lopes de Mendonça, Carlos Mendonça, Renira Lisboa Lima e o grupo do Latim aos Sábados, Edinaldo Holanda, Geraldo Majella E Sérgio Mendonça foram conselheiros incansáveis e solidários. Sou-lhes devedor, meus caros amigos.

Não quero ser injusto com os egrégios acadêmicos, sou grato a todos, mas não posso deixar de destacar a querida amiga Vera Romariz, os amigos e companheiros de outras academias, como José Medeiros, Carlito Lima, meu querido mestre Aloysio Galvão, Milton Henio, Luiz Nogueira, Lysette Lyra, Enaura Quixabeira, Antonio Sapucaia e Ricardo Nogueira.

A escolha de um médico escritor para uma Academia Literária não chega a ser uma novidade ou uma excrescência gramatical, uma aberração jurídica, uma anomalia congênita. Penso que o meu ingresso não deva ser visto como mais um a engrossar a “Bancada Hipocrática” da agremiação, por sinal das mais fecundas. Numa rápida olhada no retrovisor da história, já podemos vislumbrar médicos acadêmicos que não só participaram da vida sistêmica da instituição, mas foram vitais na sua construção.

Manoel Moreira Lima, um dos fundadores, era médico. Desempenhou papel decisivo na arquitetura inicial, tendo sido escolhido pelos seus pares para presidir a Casa. Não chegou a assumir. Creonte, o sinistro barqueiro, antecipou-se.
A relação de médicos acadêmicos que já tomaram assento nesse sodalício não é tão modesta: Jorge de Lima, Reinaldo Gama, Theo Brandão, José Pimentel Amorim, Ezequias da Rocha, Abelardo Duarte, José Maria de Melo, Gilberto de Macedo, IB Gatto Falcão... Hoje, os médicos acadêmicos têm uma representatividade em torno de quinze por cento.

Ednor Bittencourt, meu estimado ex-professor de Clínica Médica foi um caso particular. Cronista e memorialista, eleito para preencher uma vaga com expressiva votação, nunca assumiu. Temendo igual destino, apressei-me em tomar posse.

Para compensar, no plano nacional, ficou para a história a posse de Guimarães Rosa, também médico, para a Academia Brasileira de Letras. Eleito, o autor de Grande Sertão – Veredas passaria quatro anos relutando em assumir a cadeira. Místico, supersticioso, uma vidente previra sua morte, relacionando-a a uma grande solenidade. Finalmente convencido de que tudo aquilo não passava de bobagens de sua cabeça, resolveu descaracterizar o presságio. Três dias depois seria fulminado por um enfarte.

Certamente nenhum de nós aqui está por ser bom médico, grande causídico, religioso piedoso, caridoso, probo juiz, dedicado professor, meticuloso engenheiro, patriótico militar, abnegado funcionário público, mãe ou avó extremosa, humanitário, solidário e outros adjetivos que eventualmente possam ser aplicados. O nosso traço comum é a atividade literária. É o cultivo das letras e das artes. A busca pela perfeição estética.

Embora tenha publicado alguns contos, minha principal atividade como escritor é na produção de textos em forma de crônicas. Gênero especificamente dirigido para publicação em jornais ou revistas, nada proíbe que seja lido em rádios ou veiculado pela televisão. Com a multiplicação das mídias há quem o utilize nas redes sociais, ferramenta em rápida expansão.

Também não existe nenhum óbice que impeça o cronista de perenizar o seu trabalho, transferindo para livros aqueles textos que, fatalmente, teriam como destino os embrulhos dos mercados ou outros indizíveis. Nem todos têm a minha sorte de ter um tio fantástico como o Breno Mendonça, que coleciona em pasta todos os meus artigos.

Tido como um gênero híbrido, jornalismo/literatura, o fato é que essa atividade floresceu e ganhou adeptos ilustres e status: de José de Alencar, Machado de Assis a Rubem Braga, passando por Drummond, Vinicius, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, Fernando Verissímo, Cony, Sebastião Nery, dentre tantos de igual envergadura.

As crônicas – muitas vezes denominadas “opiniões” – são consumidas, como já se disse, entre a mordida do pão e o gole de café, nas barbearias, nos pontos de ônibus, nos expedientes das repartições públicas, na antessala do chefe, nas salas de espera de dentistas, massagistas, cabeleireiros, médicos e advogados. A boa crônica pode ter tom intimista, como se o autor estivesse conversando com o leitor sentado no meio-fio da calçada ou tomando um cafezinho na padaria da esquina. É aconselhável ter senso de humor, ironia, autoironia, falsa modéstia e, por que não? boa dose de sarcasmo.

É um texto leve, palatável, sem deixar de ser crítico. Muitas vezes é a notícia depurada, o detalhe não percebido, o fato refletido. Não se exige rigor estatístico; enfadonhos percentuais; vira TCC. Nós cronistas, liricamente denominados de “poetas do cotidiano”, sobretudo os não profissionais, debatemo-nos com diversos aspectos: rígido espaço pré-estabelecido e prazo de entrega, além, é claro, da boa qualidade do texto e da insuperável boa vontade do editor-chefe.

Mesmo num país onde se lê pouco, é imensurável a amplitude da crônica. Já recebi pessoas no meu consultório, vindas de muito longe, movidas pelo desejo de me conhecer, atraídas pelas crônicas. Vivemos num espaço geográfico muito pequeno, de encontros muitas vezes indesejados e nem sempre o que escrevemos agrada a todos. Nas andanças urbanas – e até no interior, onde presto serviços neurocirúrgicos, deparo-me com leitores. Alguns elogiam. Outros, mais gentis, insinuam, por exemplo, que eu peguei pesado com o meu doce ex-presidente. Há os que simplesmente torcem o nariz. Alguma unanimidade é conquistada quando falo de reminiscências: nostalgia da infância em Bebedouro, dos pais, dos irmãos, dos amigos, dos professores, dos banhos no Né Fragoso, do Clube 29 de junho, dos rachas no Sete Lobão, do Colégio Diocesano, dos velhos ônibus que quebravam, das enlameadas ruas de barro, dos pequenos rebanhos de gado que circulavam diariamente, emporcalhando as ruas. Ainda assim há quem diga que faço drama.

Agora, meus amigos, quando eu escrevo que o SUS está matando hospitais e médicos de fome, que a qualidade da prestação de serviços é uma fantasia, que a boa educação pública é proselitismo escocês; quando comento descalabros administrativos, esquemas de corrupção que transformam modestos legisladores e funcionários públicos em poderosos capitalistas, potentados marajás, florescentes latifundiários, eu me transformo num abominável reacionário, num detestável pequeno burguês, integrante da insensível elite da medicina.

Deus me livre dizer que nossas casas legislativas são valhacoutos de aproveitadores. Só faltam dizer que estou a serviço dos grandes conglomerados financeiros, que sou lacaio do imperialismo americano, agente do FBI. A coisa é tão perturbadora que há até quem se sinta ofendido porque eu insinuo que médicos e professores talvez não sejam contemplados com salários tão justos..

O lado bom é que a gente marca a presença, além da profissão principal, mostra a cara, participa da vida da comunidade, embora nada mude ao redor. O melhor de tudo é quando se é reconhecido com tendo algum talento literário e consegue eleger-se para esta Academia.

É nesse momento que nos damos conta de que somos um elo que voltou a recompor essa corrente, dolorosamente incompleta desde a partida de D. Fernando Iório Rodrigues, meu pranteado antecessor. Não o substituo, apenas o sucedo.

A imortalidade nas Academias tem várias moradas. Uma delas é justamente essa tradição de se rememorar os antigos e recentes ocupantes da cadeira, todas as vezes em que um novo membro toma assento. Nesses sodalícios ninguém é esquecido. Daí talvez a decantada imortalidade. Nesse aspecto, não tomamos posse da cadeira, pois ela não nos pertence. Prefiro, revivendo o omnia transit, o “tudo passa”, considerar-me um guardião, tarefa que procurarei honrar com um empenho até maior do que aquele despendido para conquistá-la.

Presidente Carlos Barros Méro, caros Acadêmicos, minhas senhoras, meus senhores,

Cristalização de um sonho coletivo, fundada em 01/11/1919, a Academia Alagoana de Letras acaba de completar noventa e dois anos. Inicialmente sem pouso fixo, foi há relativamente pouco tempo – no início dos anos 70 - que teve sua sede fixada neste solar histórico, centenário, cercado por monumentos lucarínicos, sob a atenta observação de Deodoro. O prédio teve desde sempre missões nobilitantes. Com efeito, embora de forma preponderante tenha sido uma escola - era o Grupo Escolar Pedro II - já prestou serviços à Justiça e foi até um hospital infantil durante um período de epidemia.

Como queria dizer, nessas nove décadas, a cadeira de número 15 teve poucos ocupantes, apenas dois. O lado bom dessa baixa rotatividade, digamos assim, se a tradição for mantida, é que sinaliza ao empossado uma longevidade ao menos octagenária. Não é ainda a ideal, mas já está acima da média de vida dos brasileiros, que hoje oscila em torno dos 73-74 anos.

Não estou aqui para falar de mim mesmo, missão espinhosa destinada ao meu querido amigo e colega médico e professor Ricardo Nogueira.

Não sei se as coisas já estão escritas há dez mil anos, como dizia Raul Seixas. Mas o fato é que ser sócio da Academia Alagoana de Letras não é um desejo acalentado por décadas a fio. Até meados dos últimos anos 90 não pretendia escrever com a regularidade com que tenho feito no último decênio. Ontem, como hoje, meu tempo se divide entre a família, as cirurgias, consultório e plantões. Aposentei-me da Universidade depois de 34 anos. Não tive brechas para otium cum dignitate, de Cícero. Logo o tempo foi preenchido por outros compromissos.

No princípio, era um escritor solitário, intuitivo, buscando caminhos e formas, quase bissexto que, quando conseguia publicar, recebia escassos telefonemas de amigos e parentes. Costumava enviar meus textos para Ana Gama e Vera Romariz, sem que uma claramente soubesse da outra. Duas grandes amigas, professoras, que corrigiam e ofereciam sugestões. Certamente condescendentes, liam a prosa com as lentes do coração. Tenho saudade disso. Havia uma certeza de antissepsia gramatical.

Abro um parêntese para dizer que não é tarefa fácil ser cronista e ocupar um espaço privilegiado num jornal como a Gazeta de Alagoas. Algumas pessoas foram importantes nessa conquista: Antonio Moreira, o saudoso José Bernardes Neto, Euclides Melo, Enio Lins e Carlos Mendonça. Sem a vitrine da Gazeta seria pouco provável estarmos aqui comemorando essa vitória.

Eis que na aurora do novo milênio, passaria a conviver formalmente com intelectuais de estirpe, através da Sobrames, Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores, sob o comando desse agitador cultural chamado José Medeiros. Foi uma experiência nova, frutuosa, como diria meu ex-professor de português, Grangeiros Neto. No meio da intelectualidade, que não só abriga médicos, vi-me enriquecido culturalmente. Doravante, não tinha como escapar ao destino de escritor. Até por amor próprio. Por tudo, é inquestionável a importância da Sobrames.

Um dia vi nos jornais que a AAL, sob a orientação do Prof. Aloysio Galvão, estava proporcionando um curso de latim para principiantes. Aluno “dos mais atrasados” (expressão que o doutor Ib repetia à guisa de autodepreciação), passaria a, semanalmente, conviver com gente do nível da Professora Renira Lima, do Cláudio Vieira e da Vânia Papini, além, é claro, do próprio Professor Aloysio. Na verdade, com essas pessoas, bebo de fonte límpida muitos saberes.

A entrada na Academia Alagoana de Medicina foi outro passo importante como médico e até certo ponto como escritor. Espécie de coroamento da vida médica, tive meus horizontes alargados ao participar de debates com colegas mais velhos e também com os mais novos.

O início tardio de atividade literária, não significa necessariamente que tudo começou do zero há exatos 14 anos, com a publicação do texto “Enterro de sonhos”, falando sobre o vestibular, um tema que foi e me é ainda muito caro. Sem presunções, acho que construí um alicerce com certa solidez desde que comecei a ler.

Meu curso primário foi feito em seis anos. Repeti o segundo e o quarto anos por falta de idade, embora aplicadíssimo. Doutor Zé Lopes, meu saudoso pai, não admitia nota menor que 10. Consolidei os parcos conhecimentos bíblicos nessa época, lendo as histórias “sagradas” que iam desde a criação do mundo até a morte e ressurreição do Filho. Por conta disso, não tenho o hábito de fazer consultas ao dissertar sobre temas bíblicos.

Na minha casa em Bebedouro, não havia desperdícios. Fui uma criança de poucos brinquedos: um velocípede que passou do Robson, meu irmão mais velho. Aos onze anos, uma bicicleta. Esporádicas couraças. Em compensação, livros sobretudo para adultos. Um ou outro para criança. Lia-se bastante na minha casa. Meu pai, médico e professor, transmitiu-nos esse hábito, seguramente adquirido nos cinco anos de internato no Colégio Diocesano. Minha mãe, do mesmo modo, tinha na bagagem a vivência de nove anos de confinamento no Asilo Bom Conselho

Li Monteiro Lobato um pouco mais velho, talvez por isso minha aguçada curiosidade pela mitologia. Os Miseráveis, nós o traçamos com 10 -11 anos. E foram passando os Eça, os Machado, os Amado, os Alencar, os Stendhal, os Cronin, os Lawrence, os Axel Munthe, os Lewis, os Nobokov, os Fitzgerald, os Hemingway, os Veríssimo, os Dostoievsky, os Adalberon Lins, os Graciliano, os José Lins... Não sei se fui mais ou menos feliz por isso. Pelo menos serviu-me para receber elogios dos professores de português e para ter minhas dissertações expostas no quadro de avisos da sala de aula, aos oito anos de idade.

Volto no tempo e me vejo adolescente folheando O Cruzeiro, do Grupo do Chateubriand, debruçado nas crônicas de David Nasser (“Falta Alguém em Nuremberg”), nas Vana Verba de Austregésilo de Athaide e na última página ocupada por Raquel de Queiroz. O próprio Chatô despertava minha curiosidade, sobretudo depois que ele ficou tetraplégico e que suas crônicas eram ditadas a uma secretária. Li muito Nelson Rodrigues. Fui leitor cativo de A vida como ela é, de À Sombra das Chuteiras Imortais e de Meu Personagem da Semana. Na Província, lia as colunas do Genésio Carvalho, do Arnoldo Jambo, do Paulo Silveira, Donizetti Calheiros...
Escrever pode ser muito interessante. O meu primeiro artigo (ou crônica argumentativa), despertou a atenção de um leitor especial: ninguém menos que Ib Gatto Falcão. Ele aproveitou o tema e teceu vários comentários naquele seu conhecido estilo. A partir daí engatamos uma sadia amizade. Passei a receber convites para vir à Academia Alagoana de Letras. Numa dessas reuniões, reencontrei D. Fernando Iório. Foi quando ele me disse que gostava do meu texto e intuía que eu iria longe.

Numa tarde de 2003, fui surpreendido por doutor IB para fazer a orelha do seu livro “Ao Sabor dos Ventos e Tempestades”. Quase não acreditei! O homem era simplesmente o presidente da Academia, vivia no Olimpo da cultura, cercado de divindades por todos os lados e ir atrás de um catador de sururu de Bebedouro... Isso mesmo eu lhe disse. Ele riu, mas deu um ultimato : “Você tem 48 horas para me entregar o texto. Não atrase.” Dias depois, enchi-me de coragem e pedi-lhe para prefaciar um livro de crônicas. Esse livro, que seria o primeiro, permanece inédito.


D. FERNANDO IÓRIO RODRIGUES

O último ocupante desta cadeira foi o Bispo Emérito de Palmeira dos Índios, D. Fernando Iório, que foi, repito, despido de qualquer vaidade, um dos meus últimos confessores. Tendo se ordenado apenas um ano antes, o então jovem Padre Fernando, como era conhecido em Bebedouro, foi missionado a cuidar das fracas carnes e dos espíritos vacilantes do bairro onde nasci e me criei. Tinha eu seis anos de idade e já estudava num tradicional educandário católico, o Colégio Diocesano.

Família católica praticante, meus pais não dispensavam nossa participação ativa na Igreja. Ainda hoje lembro os sermões do Padre Fernando, já naquela época um orador sacro de grandes recursos, voz abaritonada, erudito, onde pinceladas dos grandes filósofos e pensadores, católicos ou não, adornavam as brilhantes e convincentes homilías.

Nosso confessor, homem de Deus por excelência, predestinado, era um grande empreendedor. Pesquisei um pouco sua vida e pude constatar a santa inquietação desse sacerdote. Não fora ele um religioso, teria sido um ousado empresário, uma locomotiva de grandes ações.

Nasceu em 23/06/1929 na casa de número 111 da Ladeira do Brito. É o filho primogênito de Miguel Iório e Júlia Rodrigues. Viveu 81 anos. Recebeu desde cedo uma educação religiosa ligada ao catolicismo. Na sua biografia constam três atributos indispensáveis a um clérigo: responsável, estudioso e piedoso.

O fato é que Dom Fernando revolucionou o catolicismo no velho bairro que àquela altura navegava meio devagar sob o comando do antigo pároco, aliás, o agente do meu batismo, o Padre Belarmino. Um homem bom, estimado, mas sem saúde suficiente para apascentar as ovelhas, sobretudo as desgarradas. Padre Iório foi mais que um evangelizador. Além de edificar vários templos, multiplicando-se, numa quase ubiqüidade, voltou-se também para o cultural, o folclórico, impulsionando e revigorando as tradicionais festas religiosas e os folguedos, que eram basicamente realizados na praça em frente à matriz de Santo Antonio. O pastoril de Bebedouro voltou a ter fama. Nesse aspecto, lembraria o lendário Bonifácio Silveira, sem o Carnaval, é claro.

Apostando na educação como agente de mobilidade social, fundaria o Ginásio Santo Antonio, um verdadeiro gol de placa. Voltou-se para o social promovendo, cuidando das crianças e dando dignidade à velhice desamparada. Criaria uma casa destinada a receber idosos, ainda hoje cumprindo plenamente seu papel.

Na verdade, caros acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, passaria a noite inteira, aqui, de bom grado, falando sobre essa grande figura que foi D. Fernando Iório. Embora esteja buscando a síntese, não posso omitir certas coisas. O medo de pecar é muito grande, máxime por não ter mais o meu confessor para interceder junto ao Pai, por mais um perdão. Tenho certeza de que a seleta assistência também pensa assim.

Consagrado bispo, “um Príncipe da Igreja”, como bem disse, em memorável saudação, o ínclito Doutor IB Gatto Falcão, Bebedouro perdeu uma referência. Dom Iório era um homem de invejável cultura, uma liderança no bairro. Em Palmeira dos Índios, onde foi exercer o episcopado, voltaria a imprimir sua marca registrada. Das tantas obras, religiosas ou não, destaco a criação de um curso superior na cidade. A crônica obsessão pelo ensino o acompanhou durante toda a vida. Professor universitário, catedrático de Português, Livre-Docente, ao longo do tempo publicou mais de duas dezenas de livros, inclusive estudos sobre as obras de Cipriano Jucá, primeiro ocupante desta cadeira e de Sabino Romariz, o Patrono.

Dentre tantos títulos, era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, da Associação Alagoana de Imprensa e fundador da Academia de Letras de Palmeira dos Índios. Era latinista e helenista. Poeta, compositor, contista, exerceu funções de radialista, jornalista e era cronista da Gazeta de Alagoas. Era um torcedor – não sei se caberia dizer isso acerca de um bispo – um torcedor fanático do glorioso Centro Sportivo Alagoano. Quero deixar registrado também o grande craque de futebol que era D. Fernando, uma lenda nos famosos rachas do Seminário.

Por último, ao falecer na Santa Casa de Misericórdia, em 20 de março de 2010, D. Fernando Iório Rodrigues era presidente dessa Casa, substituindo a figura gigantesca de Doutor IB Gatto Falcão. Foi mais um golpe terrível para a cultura do Estado.

A bem da verdade, a AAL sempre foi muito criteriosa na escolha dos seus presidentes, não sendo por acaso a presença do escritor Carlos Barros Mero no comando dessa cerimônia.

CIPRIANO JUCÁ


O primeiro ocupante desta cadeira foi também fundador da Academia. Cipriano Jucá da Silva nasceu em Maceió, no início de 1886. Morreu em São Paulo, aos 80 anos. Estudando seus dados, cheguei à conclusão de que era um homem prático, telúrico, apesar de grande poeta. Foi prefeito interino de Maceió, jornalista, professor, farmacêutico. Filho de Romualdo da Silva e Maria Gabriela Jatobá Jucá. Um tio pelo lado materno, Franco Jatobá, era poeta e é patrono da cadeira de número 28 dessa Academia, hoje ocupada pela eminente escritora e poeta Solange Lages Chalita. Cipriano freqüentou a escola primária, o famoso Colégio 15 de Março, do Professor Agnelo Barbosa, e o Liceu Alagoano, onde prestou exames preparatórios.

Formou-se em Farmacologia na Faculdade de Medicina da Bahia. Ao regressar a Alagoas, foi diretor do Gabinete de Identificação e Estatística Criminal, bem como diretor geral do Departamento de Municipalidades. Além de prefeito interino de Maceió de 9 de Agosto a 11 de Setembro de 1935, ocupou vários cargos públicos inclusive de diretor da Saúde Pública. Aposentou-se como diretor geral da Recebedoria Central, o que seria a Secretaria da Fazenda de hoje.

Foi professor da Escola de Comércio, Perseverança e Auxílio, atual Escola Técnica de Comércio de Alagoas. Também ensinou no Instituto Silveira Leite e no Seminário Arquiepiscopal de Maceió. A opção por Sabino Romariz como patrono da cadeira, deve-se a ele. Pertenceu ainda à AAI.

Depois de morar vários anos no Rio, transferiu-se para São Paulo, onde foi secretário de governo na cidade de São Vicente. Participou da criação do Clube dos Estados e terminou recebendo título de cidadão paulistano.

Dentre as principais obras estão: Os Quarenta, Asas de Cera, Alma Lírica do Brasil; Hino a Deodoro,. Em colaboração com o poeta Menezes Júnior, escreveu Oásis; Tinha como pseudônimo Ícaro.

Colaborou no: Diário das Alagoas, O Gutenberg, 16 de Setembro, Jornal de Alagoas, A Gazeta de Alagoas, O Semeador e revistas Exedra e Federação; e, no Rio de Janeiro em A Noite, Vanguarda e O Mesquitense.

Um fato curioso marcou a biografia de Cipriano Jucá: em 1940, teve o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio. Foi advertido de que viveria em torno de um mês. Segundo o seu neto, o poeta Jucá Santos, seu avô tomou uma decisão radical: vendeu tudo que tinha em Maceió e foi para o Rio de Janeiro cumprir um velho sonho, que era conhecer a Cidade Maravilhosa. Queria viver seus últimos dias por lá. Cerca de doze anos depois, como não morresse, foi para São Paulo, onde viveu mais dezesseis anos, segundo o seu neto.

Ao morrer de forma súbita e inopinada, tomando um copo de leite numa padaria vizinha à Igreja de Santa Efigênia, em São Paulo, coincidentemente, teria sido amparado por dois poetas, que por ali eventualmente passavam. O brigadeiro Faria Lima, então prefeito da cidade, decretou luto oficial de três dias, pela morte do amigo.

Foi aluno de Sabino Romariz, em Penedo, quando se tornaram grandes amigos. Como detalhe genealógico, um dos netos, Jucá Santos é um consagrado poeta e presidente da Academia Maceioense de Letras, figura conhecidíssima e muito estimada aqui em Maceió. Cipriano tem outra neta, Glaucia, que é também poetisa e membro da Academia de Letras de Nova Iguaçu.

Um dos livros mais conhecidos de Cipriano Jucá é justamente Os Quarenta, que é um ensaio em forma de poesia, sobre os quarenta membros da Academia Alagoana de Letras. O livro traz caricaturas dos acadêmicos feitas por um dos seus membros o Desembargador Carlos de Gusmão.

Cipriano Jucá teve quatro filhos: Maria Dirce, Glauco, Corália e Claudio Jucá. Consta ter começado a organizar um ensaio mais complexo sobre a vida de Sabino Romariz. Num célebre depoimento, Cipriano Jucá registrou a genialidade do amigo. Há um detalhe interessante: ele foi uma das primeiras pessoas, segundo o historiador Valmir Calheiros, a sugerir a criação de um dia dedicado às mães, isso em 1921.




SABINO ROMARIZ

O poeta penedense é o patrono da cadeira 15 da Academia Alagoana de Letras. Num ensaio sobre Sabino Romariz, a neta, Vera Romariz diz textualmente: “Falar sobre Sabino Romariz, um avô paterno que não conheci, é um duplo desafio: afetivo e intelectual.” Não tiro as razões de Vera. Imagine, querida amiga, o quanto de dificuldades para este modesto bebedourense, sem dispor do equipamento lingüístico e da semiologia dos poetas, discorrer sobre o seu avô ilustre.

Nessas horas apelo para os meus truques de cronista, que segundo definição de Otto Lara Resende é aquele sujeito que conhece as primeiras quinze linhas de qualquer assunto. Nas minhas leituras sobre o seu avô, Vera, cujo genoma foi-lhe transmitido, e é o responsável por essa sua veia poética tão aguçada, descobri que ele era um polêmico, um grande boêmio, que desafiou as estruturas conservadoras de uma cidade interiorana que ainda suspirava pelo imperador. E que ainda hoje se discutem as influências das escolas sobre o seu modus de poemar: Simbolista? Parnasiano? Romancista? Não obstante os percalços, o seu avô é considerado um gênio da poesia. Admirador do português Guerra Junqueiro, célebre por suas poesias quilométricas.

Junqueiro lembra-me “A Lágrima”, poema tamanho-família que um dia fui compelido a decorar para declamá-lo numa sessão do Grêmio Ronald de Carvalho, do Colégio Diocesano de Maceió. “E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.”

Polêmico quanto à escola poética e ao modus vivendi, parece haver unanimidade entre os estudiosos da obra de Sabino Romariz: um grande repentista e uma rara inteligência.

Nosso patrono nasceu em Penedo, no dia 25 de Março de 1873. Viveu apenas 40 anos. Era filho de poeta. Logo cedo, perdeu os pais, João Almeida Romariz e dona Maria de Assunção Romariz, sendo criado pelos avós maternos, capitão Sabino Alves Feitosa e dona Senhorinha Feitosa. Cursou o básico da época em Penedo e foi para Olinda, onde concluiu o Curso de Humanidades.

Entrou para o Seminário de Olinda e a apenas um ano da ordenação, desistiu da vida religiosa. Os anos de estudo e vida monástica foram decisivos na consolidação de conhecimentos bíblicos. Certamente a decisão de abandonar o Seminário tenha sido tão intensamente frustrante para seus pais de criação, que, em represália cortaram-lhe a mesada.

Os biógrafos inclinam-se a relacionar o despertar da vida boêmia do poeta à sua sensibilidade exacerbada ferida, pela radicalidade avoenga. É uma possibilidade. Na verdade, a história de muitos poetas, artistas e escritores confunde-se com essa postura de desafio, de liberalidade comportamental versus produção intelectual, como se a boemia funcionasse como perene e imprescindível fonte de inspiração. Sabino Romariz não conseguiu fugir desse figurino.

Durante algum tempo, Romariz circula entre Olinda, Maceió, Paraíba (naquela época não existia João Pessoa), Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Foi justamente nesse período, entre a saída do seminário e o seu retorno a Penedo, em 1903, cerca de 10 anos, portanto, que o poeta compôs suas obras mais elogiadas. Sua obra prima, no entanto, data de 1911, dois anos antes de sua morte. O tema religioso é recorrente: Cristo, Madalena, Judas e Jó.

Tudo leva a crer que o avô da Vera Romariz mantinha-se de suas aulas em Colégios. Ao contrário de Cipriano, mais centrado, nunca teve emprego fixo. Ensinava línguas: Latim, Francês, Inglês, certamente Português e também Desenho. São competências que ninguém nasce com elas. Fica, portanto, evidente que ele tinha sido muito aplicado, pelo menos enquanto estudante secundarista e também no Seminário.

Mas o poeta retorna à sua querida Penedo, em 1903, com apenas trinta anos. É mistério insondável o seu regresso. Por que teria voltado a sua terra e renunciado a uma perspectiva de sucesso na “Corte”, como ainda era conhecido o Rio de janeiro?

Em Penedo, casa-se com Aspásia, a bela loura de olhos verdes, segundo descreve Vera Romariz, e com ela tem dois filhos: José e João. A partir daí não se sabe mais muita coisa sobre sua vida pessoal, a não ser pelo que transparece em seus poemas.

Os estudiosos não cansam de registrar: parte das suas criações está parcialmente perdida. Obstáculos inerentes ao contexto ambiental à parte – como dificuldades financeiras, limitações tecnológicas e outros fatores - atribui-se a lacuna ao próprio Sabino, pelo seu pouco senso prático da vida. Não teria tido preocupações ou mesmo condições de juntar e organizar todo o seu arsenal lírico.

Foi na sua própria cidade onde publicou mais frequentemente utilizando gráficas e as páginas de jornais locais, principalmente no “O Alagoano”, O Lutador e O Nacional. Uma das suas obras, Toque D´Alva, de 1911, provavelmente a que representa o zênite de sua força criadora, foi editada em Lisboa.


Nas suas andanças pelo sudeste consta ter convivido com Olavo Bilac, Carvalho Neto e Guimarães Passos. Teria estreado na imprensa carioca com o poema A Mansinha. Entre 1901 e 1902 publicaria Solidôneos, uma coletânea de trinta poemas. Um dos poucos trabalhos editados fora de Penedo.

Não existe a menor dúvida de que Sabino Romariz foi um expoente em sua época e que teve o reconhecimento de renomados intelectuais, além das fronteiras de sua cidade natal. Com muita propriedade, autores alagoanos já o visitaram diversas vezes: Romeu de Avelar, Heliônia Ceres, D. Fernando Iório, Cipriano Jucá e a própria neta, Vera Romariz, dentre outros. Para José Mendonça, em trabalho de 1924, Sabino foi o “luminar” da literatura penedense, e acrescentava: “Foi poeta no menor gesto: tudo nele era ritmo.” Em seu apologético Terra das Alagoas, de 1922, Adalberto Marroquim assim o tratou: “Teve fulgurações de gênio”. Cipriano Jucá, um admirador incondicional, discípulo e amigo fiel, não deixou por menos: “Sabino era o maior repentista do Brasil”, e justificava: “Ele fazia versos ditando-os quando lhe davam o assunto, sem contrair um músculo da face, sem demorar um segundo à cata de rima”. Outro penedense ilustre, Ernani Mero, pai do nosso eminente presidente Carlos Mero, definiu Sabino com “um gênio da poesia”.

Em 1992, o presidente da Fundação Casa de Penedo, sob o argumento de que uma figura como Sabino Romariz não poderia estar esquecida, em louvável e oportuna iniciativa, publicou Poesias Escolhidas, com seleção e prefácio do professor brasiliense Cassiano Nunes – outro a fazer um belo estudo sobre a obra do nosso patrono. É um opúsculo que os amantes da poesia não devem deixar de possuir.

Presidente Carlos Barros Mero, acadêmico Ricardo Bezerra Nogueira, cujo discurso recipiendário encheu de júbilo esse sexagenário coração, minhas senhoras, meus senhores, esse é um momento dos mais especiais em minha vida.

Retrocedo à infância, à pré-adolescência e me vejo dizendo aos meus boquiabertos pais que queria ser médico ou irmão marista. Naturalmente, a causa da admiração corria por conta do paroxismo de religiosidade, nunca dantes tão exacerbado. Felizmente, Deus, na sua imensa sabedoria e misericórdia, não permitiu que eu passasse mais de um mês no Juvenato de Apipucos.

Estou muito orgulhoso por mim mesmo, pela minha família, pela Nadja, pelos Duda e Bruna, pelos meus netinhos Caio e Maria Clara. Acho que eles também estão muito orgulhosos pela “imortalidade” do velho chefe da casa. Reafirmo minha gratidão aos que se empenharam nessa conquista.

Agradeço a presença de todos, convidados especiais, autoridades, familiares, irmãos, cunhados, tios, sobrinhos, amigos, clientes, meus colegas do LAS, meus amigos da Sobrames, amigos de infância, meus colegas médicos, colegas da Academia de Medicina, companheiros de trabalho, que vieram nos prestigiar, honrar-nos com suas excelsas presenças.

Contudo, a noite está longe de estar completa. Sinto imensa falta da presença dos meus pais José e Rosinha, dos meus irmãos Robson, Rosélia e Rosa, mas nada comparado à inexcedível dolorosa ausência física dos meus filhos Lavínea e Roninho.

Muito Obrigado.