Nise, proselitismos e fantasias
Ronald Mendonça
Médico e membro da AAL
Certamente, a médica Nise da Silveira
merece nosso respeito. Ex aluna do Colégio Sacramento, em Maceió, sobrinha do
lendário Major Bonifácio Silveira, foi a única mulher colando grau em Medicina
numa turma de cento e tantos marmanjos. Uma vitoriosa. Alma sensível,
engraçou-se pela psiquiatria. Naqueles tempos, a psiquiatria abusava das
descrições. Os autores alemães eram minuciosos e registravam gestos, olhares,
hábitos, palavras, meias palavras, grunhidos, frases e textos dos padecentes de
transtornos mentais.
Quero crer que a filha de Faustino
Silveira tenha estudado esses clássicos da literatura psiquiátrica. Contrastava
com essa rica doutrina o fraquíssimo arsenal terapêutico. Vivia-se a época dos
bromatos. De uma maneira geral, a medicina sobrevivia nos cataplasmas, nos
sanguessugas, nas heroicas formulações de folha de lanata, nos caldos
quentes...
A eletroconvulsoterapia surgiria quando
Nise já amargara o fel dos porões. Sua prisão nada tem a ver com suas
convicções, digamos, médicas. Tratamento revolucionário dos distúrbios mentais
graves, a possibilidade de uma corrente elétrica reverter psicoses era algo
impensável para suas limitações científicas. Afinal, uma sessão de
eletroconvulsoterapia é como ver uma crise epiléptica. Curiosamente, cineastas
de todos os matizes têm múltiplos orgasmos ao mostrar pacientes em camisa de
força, de maca, sendo conduzidos ao “cadafalso”. Que cenas forçadas,
companheiros! Maca é utensílio raramente usado em hospital psiquiátrico. O
detalhe é que eles (cineastas) nunca se preocuparam em saber se os pacientes
melhoravam.
Deus me livre de pensar na nossa
delicada Nise, hoje, numa UTI... Pacientes com intubações,
intracates, sondas em tudo que é orifício e choques elétricos nos peitos, nos
casos de arritmia ou parada cardíaca... As contradições do ser humano não a
pouparam. Não há registros de a alma sensível e humanitária de Nise ter sido
incomodada pelo assassinato de 20 milhões de viventes nos regimes dos seus
sonhos. Um paradoxo para quem se horrorizava com uma convulsão...
Para desgosto das torcidas do Flamengo,
a despeito de toda difamação, o eletrochoque continua vivo. Ironicamente, o
“método que revolucionou” o tratamento psiquiátrico existe apenas nos
proselitismos e nas fantasias. Um
prosaico comprimido de Haldol faz muito mais pelos delirantes que centenas de
pinceis e latas de tinta. Não obstante, nossa boa Nise é digna da nossa
consideração. Como a Robusterina e o Biotônico Fontoura, teve seu tempo de
fastígio. Como cientista, era, no mínimo, tendenciosa.
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