segunda-feira, 28 de abril de 2014

TIM TIM POR TIMTIM ATÉ O FIM

RONALD MENDONÇA 
MÉDICO
MEMBRO DA AAL
 
 
 
Na infância e adolescência, nunca tivemos dinheiro fácil. Na época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson e eu recebíamos cinco cruzeiros. Desses, sobrava apenas um cruzeiro. Não havia dinheiro para o lanche. Levávamos no bolso um pão, cujo recheio variava da manteiga com açúcar ao doce batido de banana. Raramente queijo. Não nego que ficava me lambendo quando via as filas na hora do recreio do colégio para comprar sanduíche na lanchonete dirigida pelo Irmão Silvino, tendo como balconista um garoto um pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”.

Não raramente, gastávamos o dinheiro do transporte para comprar um daqueles sanduíches de mortadela, regado a uma Crush, que, ao paladar dos meninos que éramos, tinham o gosto do néctar e da ambrósia. Estarmos lisos em pleno meio-dia na Praça dos Martírios, esperando uma carona, não era um grande problema. Era difícil não passar alguém com destino a Bebedouro. Aguardávamos no início da General Hermes. Nossas esperanças de não voltar a pé para casa, eram sobretudo caminhões vazios

dirigidos por conhecidos do bairro. Na curva, reduziam consideravelmente a

velocidade, permitindo que galgássemos

a carroceria. Ficamos craques: jogávamos nossas bolsas, segurávamos na grade e nos apoiávamos nos pneus (em movimento lento). Logo estávamos sorridentes na carroceria gritando “chame”.

Certa feita, coincidiu de minha mãe presenciar essas manobras e ficou estarrecida com o que viu. Talvez Deus, naquela época, nos protegesse mais.

Havia uma certa decepção materna quando chegávamos com o pão amassado e intacto que ela embalara com carinho. Por que não confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas almas

suburbanas por não termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar aquele pão amassado, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos humilhava um pouco. Talvez por isso compensávamos nossa “tragédia” financeira sendo ótimos alunos.

Durante os primeiros anos de colégio, não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a estudar à tarde. A boa memória sempre foi minha aliada. À noite, sabíamos que iríamos enfrentar o doutor Zé Lopes, nem sempre no seu melhor fair play. Com ele, não havia mais ou menos. Ou as lições estavam na ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos muito cedo), só depois de repetir “tim-tim por tim-tim, até o fim”.

MEMÓRIAS DE BEBEDOURO



MEMÓRIAS DE BEBEDOURO
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Estávamos em 1953-1954. Chegara, enfim, a idade de aprender a ler. A alguns metros da nossa casa, uma senhora mantinha uma escolinha. Entramos os três irmãos mais velhos, Rosinete, o Robson e eu. A professora  dava aulas em casa. Havia um oratório bonito na sala onde funcionava o curso. Uma peça de madeira era o genuflexório. Creio que nos momentos de enlevo espiritual nossa mestra prosternava-se compungida. Durante as aulas, a temida mestra era partidária de técnicas pedagógicas, digamos, mais ortodoxas, premedievais, se vocês me entendem.  O genuflexório que testemunhava seus emocionados encontros com Nossa Senhora, recebia uma cobertura de feijão ou milho, onde os alunos (crianças de 5-8 anos) iam pagar seus pecados, expiar suas culpas, ajoelhados sobre o milho ou o feijão.
Não me lembro se alguma vez fui aquinhoado. Meu irmão Robson, com certeza. Um dos mimos que recebi da minha primeira professora foi ser chamado de “Olho de Pitomba Lambida”. Tenho zero de trauma disso. Quem não gostou de saber dessas coisas foi o nosso pai. Retirou-nos da escolinha. Não fora esse regime de terror, até gostava. Jogava bola nos intervalos. Era o goleiro. Com um pouco mais de cinco anos fiz uma defesa tão complicada que fui chamado de “Nonda”, referência ao grande goleiro Epaminondas, conforme aludi anteriormente. “Nonda” duraria mais que o “Olho de Pitomba Lambida”.
Depois que saímos da escolinha, passaríamos a estudar em casa. Minha mãe e minha avó, Docinha, tiveram a incumbência de nos treinar em leituras, cópias, ditados e nas operações aritméticas. Não demos vexame. Em 1954, aos 6 anos, meu pai nos matriculou no Diocesano. Lembro dele na sala da diretoria conversando com o Irmão Nestor, diretor do colégio. Queria um desconto nas mensalidades. Recordo de  dois argumentos. Num deles, papai dizia que era ex-aluno interno do colégio . O outro argumento referia-se ao fato de estar matriculando dois alunos. Não me recordo se o desconto foi dado. Provavelmente, sim.
 A verdade é que o orçamento doméstico era apertado. Com o devido respeito, meu pai era um reprodutor impetuoso. Teve onze filhos, três do gênero masculino. Somente em finais de 1958, treze anos após a formatura, foi que meu pai adquiriu um Jeep, cuja placa era 53-57. Ainda hoje encontro pessoas que fazem referência a esse veículo. O que chamava a atenção era a quantidade de crianças e adolescentes. Minha irmã mais velha ocupava o banco da frente. Eu e o Robson ficávamos nas “latas” laterais e quatro irmãs mais novas ficavam apertadas no banco traseiro. A coisa ficaria melhor dois anos depois, com a aquisição de uma Rural. O velho estava prosperando.
Em 1958 ocorreria uma grande guinada na vida profissional do meu pai. Surgiu a oportunidade de uma especialização em Psiquiatria. Conforme aludi, ao morar em Bebedouro, seria contratado para trabalhar na Casa de Saúde Miguel Couto. Era um hospital psiquiátrico que ficava a duzentos metros de nossa casa. O frenocômio pertencera ao Dr. Pedro Bernardes. A denominação primitiva era Santa Juliana (suposta padroeira dos loucos). Inicialmente, fora arrendada ao psiquiatra Mário Morceff, um migrante mineiro meio descapitalizado, que terminou adquirindo o imóvel. Consta ter sido o seu sogro, Dr. Chaves, com seus infindáveis coqueirais nos Morros de Camaragibe, o poderoso avalista da negociação.
O fato é que aqueles anos de trabalho e convivência com doentes mentais tinham lhe dado uma respeitável vivência na área da Psiquiatria. O curso patrocinado pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais encaixava-se como uma luva aos anseios paternos. Havia alguns obstáculos. Naquele 1958 éramos nove filhos. Minha avó Docinha falecera dois anos antes e meu tio Breno assumira um emprego no Banco do Nordeste, em Mata Grande. Uma solução encontrada para ajudar minha mãe a administrar a “rebelde ninhada” foi apelar para Vovó Moreninha que se transferiu com malas, bagagens e o marido, o “Velho Góis”, a essa altura fiscal de rendas aposentado. Foram quase seis meses de ausência. Do Rio, meu pai se esforçava para manter a casa em ordem através de longas cartas. Escrevia particularmente para cada filho e nós escrevíamos pelo menos duas cartas por mês. Para minha mãe, eram longas e apaixonadas que ela as lia solitariamente e não permitia que nenhum filho, mesmo os mais curiosos, as acessassem. Meu pai tinha um bom texto e, a despeito da carranca e de proverbial mau humor, sabia ser romântico. Eles se amavam.
Um tio paterno, Ruy Mendonça, que também, quando solteiro e mais jovem, tinha morado  conosco, também dava uma revisada para ver como as coisas estavam. As preocupações maiores eram justamente em relação aos três filhos mais velhos, máxime Robson e eu. Nos finais de semana, nosso tio nos levava para sua casa, no Farol, “para dar uma aliviada em casa”. Ruy Mendonça tinha excentricidades, sobretudo gastronômicas. Depois de almoçarmos uma montanha de comida, ele nos convidada à sobremesa. Geralmente bananas. Ele próprio um glutão sacramentado, impelia-nos a comer algumas bananas anãs. Preocupava-se com o que o nosso pai iria dizer, ao retornar, se nos encontrasse esquálidos e famélicos. Decididamente, um excêntrico, aquele nosso tio.
Apesar de toda vigilância, durante os meses de ausência paterna tivemos mais folga para “maloqueirarmos” pelo bairro. Começamos a nos entrosar mais nas peladas, nas andanças ao banho do Né Fragoso, nos jogos de ximbra, peões, e até em alguns jogos de azar apostando castanhas (compradas). Nossa mãe não era tão cuidadosa com os trocos, posto deixar algumas moedas dando sopa sobre os armários. Aos sábados, Bebedouro tinha uma feira muito animada. Com 10-11 anos, minha mãe me encarregava de comprar farinha e mais algumas pequenas coisas. O macete era chegar no final da feira, quando os comerciantes baixavam os preços. O que eu conseguia de abatimento ia para a “caixinha” pessoal.
Na infância e adolescência, nunca tivemos dinheiro fácil. Na época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson e eu recebíamos, cada um, cinco cruzeiros. Sobrava apenas um cruzeiro. Levávamos no bolso um pão, cujo recheio variava da manteiga com açúcar ao doce batido de banana. Raramente queijo. Não nego que ficava me lambendo quando via as filas na hora do recreio do Colégio para comprar sanduiche na lanchonete dirigida pelo Irmão Silvino, tendo como balconista um garoto um pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”.
Não raramente, gastávamos o dinheiro do transporte para comprar um daqueles sanduiches de mortadela, regado a uma Crush, que ao paladar dos meninos que éramos, tinham o gosto do néctar e da ambrosia. Estarmos lisos em pleno meio-dia, na Praça dos Martírios, não era um grande drama. Era difícil não passar alguém com destino a Bebedouro. Aguardávamos no início da General Hermes. Nossas esperanças de não voltar a pé para casa, concentravam-se, sobretudo, nos caminhões  vazios, dirigidos por conhecidos do bairro. Na curva para entrarem na General Hermes, reduziam consideravelmente a velocidade, permitindo que galgássemos a carroceria. Ficamos craques: jogávamos nossas bolsas, segurávamos na grade e apoiávamo-nos nos pneus (em movimento lento). Logo estávamos sorridentes na carroceria gritando: “Chame”. 
Certa feita, coincidiu de minha mãe presenciar essas manobras e ficou estarrecida com o que viu. Talvez Deus naquela época nos protegesse mais.
Havia um quê de decepção materna quando chegávamos com o pão amassado e intacto no bolso, que ela embalara com carinho. Por que não confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas almas suburbanas por não termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar aquele pão maltratado, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos humilhava um pouco. Talvez por isso compensássemos nossa “tragédia” financeira sendo ótimos alunos.
 Com efeito, durante os primeiros anos de colégio não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a estudar à tarde. À noite, sabíamos que iríamos enfrentar o doutor Zé Lopes, nem sempre no seu melhor fair play. Com ele não havia mais ou menos. Ou as lições estavam na ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos muito cedo) só depois de repetir “timtim por timtim, até o fim”. Ainda havia aquelas poesias quilométricas que nos cabiam decorar para recitá-las nas sessões do grêmio...
Volto agora ao primeiro dia no Colégio Diocesano. Depois “chororô” paterno, encaminhamo-nos eu, meu irmão Robson e meu pai até a sala do Irmão Pedro, um “velhinho” que era o mestre de classe do segundo ano primário. Os conhecimentos de casa foram testados e aprovados. O casulo estava se abrindo. Não me lembro se já tinha usado calça comprida. O sapato era especial feito por um sapateiro, sr. ML, um cidadão prenhe de caretas esquisitas,  que frequentava o consultório do velho. No bico e no salto eram colocadas  chapas de metal. Havia a crença de que o sapato duraria mais...
 Um entrevero marcaria o primeiro dia de aula. O pai resolveu nos apanhar dentro do colégio, na sala de aula. Seguimos então para a porta principal. Meu pai na frente, o Robson atrás. No meio, eu. De repente, ao atravessarmos o campo de futebol (com os tradicionais oitizeiros) um menino me calçou. Do nada. Um provocador. Acho que foi a última vez que ele cometeu essa gracinha. O Robson agarrou o camarada e em dois segundos o menino estava no chão e o Robson, já se preparando para aplicar uns corretivos. Toda aquela malandragem precocemente apreendida da molecoragem bebedourense eclodiria. Não fora a interferência de papai, que ao virar-se deparou-se com aquela cena tragicômica, a venta do menino iria sofrer.
Acho que, em 1954, Bebedouro viveria uma grande transformação com a chegada do Padre Fernando Iório Rodrigues, substituindo o velho pároco, padre Belarmino. Iório daria uma nova vida ao bairro. Sua influência foi além dos umbrais da Matriz de Santo Antonio. As homilias tinham a grife do intelectual diferenciado. Renovaria a participação dos fiéis nas associações, Congregação Mariana, Filhas de Maria, Cruzada Eucarística... Um alto-falante reverberava além da Praça. Procissões ocupavam as ruas nas comemorações sacras. Nessas alegorias destacava-se a figura  de Domingão, um agigantado negro enfatiotado, fita azul ao pescoço, símbolo da piedosa Congregação Mariana. Padre Fernando não parava de puxar o coro com abaritonada voz. Era também costume ouvirem-se, a partir da Matriz, hinos de exaltação à pátria e ao Estado nas efemérides oficiais. Deve-se ao Padre Iório, depois consagrado bispo de Palmeira dos Índios, a criação do Ginásio Santo Antonio. Modesto, mas de basilar importância.
Os Natais reviveriam o lendário Bonifácio Silveira. Pastoril animadíssimo marcaria aqueles inesquecíveis dezembros. Açodado adolescente, investiria parte das minhas parcas economias chamando “em cena” uma serelepe primeira pastora do azul, para fixar em suas incipientes protuberâncias mamilares   notas de um cruzeiro, cunhadas com a severa figura  do Marques de Tamandaré. Os hormônios já começavam a impor  transformações no corpo e na alma  do ex-seminarista. Despedia-se o tempo da inocência.
Durante muitos anos o transporte coletivo de Bebedouro era uma tragédia. Enquanto o Farol e a Pajussara eram servidos por uma frota de primeira qualidade, nosso bairro era castigado por refugos. Na época em que não havia calçamento, em diversas ocasiões tivemos que mudar de ônibus porque o que nós viajávamos atolava no lamaçal por prosaica falta de força. Muitos coletivos eram munidos de um fragmento de madeira preso na alavanca da marcha. A função era apoiar no tablado para evitar que “saltasse de marcha”. Um dos proprietários (havia vários), por conta dos sucessivos enguiços no seu veículo, ganhara o sugestivo apelido de “Arroela”.
Aos poucos esse item foi equacionado. Os irmãos Calheiros durante um certo período dominaram esse segmento e ofereciam mais segurança e conforto. Também coincidiu com a conclusão do calçamento, velha aspiração, que teve no lendário coronel Lucena Maranhão, eleito prefeito de Maceió, um grande executor. Tenho a impressão de que Maranhão faleceu antes da conclusão das obras. A comunidade não esqueceu seu nome.
Nas folgas, principalmente nas férias, nossa vida era bater bola. Na época das frutas, em dezembro, eventualmente, aventurávamos saltar muros de sítios para roubar mangas e cajus. Subir em árvores não era nosso pendor. As poucas vezes que tentei subir em coqueiro tive que amargar um belo arranhão na barriga. Vez ou outra chegava algum estranho na nossa casa reclamando que havíamos invadido seus territórios. Disposto a arcar com os prejuízos, embora envergonhado, meu pai perguntava se os filhos dele estavam sozinhos. E se ele (o reclamador) já tinha ido na casa dos outros pais...  O velho não achava graça nessas traquinagens dos filhos.
A partir de um dado momento não podíamos mais jogar num largo atrás do mercado. Havia muita reclamação dos moradores. Vidraças eram quebradas, palavrões impublicáveis eram ditos sem a menor cerimônia. De repente descobrimos uma clareira bem no coração da “Mata dos Leões”.  O “Sete Lobão” era um campinho horrível. Irregular, em forma de bacia, tinha um chão áspero,  que mesmo para os nossos pés acostumados a ficar descalços produziam desagradável queimação noturna, pelo desgaste da planta dos pés. Verdadeira lixa. Mas foram rachas inesquecíveis. Durante muito tempo joguei de goleiro. Posição ingrata, sobretudo porque a bola era de borracha. As mãos saíam ardidas. Pior quando a bola pegava em cheio no corpo...
Crescia a olhos vistos. Já conseguia tocar no travessão. Cheguei a titular do Juventus e até disputei algumas partidas pela segunda divisão, no campo do Mutange. À medida que as responsabilidades aumentavam como goleiro, crescia a angústia dos entardeceres. É que a miopia em um dos olhos criava um grande problema com a queda da luminosidade. Numa das vezes nosso time foi jogar na Usina Uruba.
Estávamos com uma vantagem apertada no placar quando o juiz (local) deu uma “patriotada” marcando uma falta, no mínimo duvidosa, bem perto da grande área, frontal. Já fazia algum tempo que o sol escondera-se. Via sombras. Fechada a barreira, o sujeito resolveu chutar em minha direção. Vislumbrei aquela sombra escura aproximando-se. Só podia ser a bola. Encaixei, mergulhei por sobre a rala grama e demorei-me deitado por sobre a bola ganhando tempo. Enquanto isso, meus companheiros cercaram o árbitro exigindo o final da partida. Saí quase carregado. Seria a última vez que joguei de goleiro. Passei a ser centroavante, posição que já ocupava no time de baixo (“segundo quadro”).
Estudava de manhã e à tarde secretariava meu pai na Clínica. Desde 1962 fomos morar na Lilota. Era uma mansão construída durante a Primeira Guerra Mundial, sobrevivente da “Era de Ouro” do Bebedouro do Major Bonifácio Silveira. Fora habitada por D. Iaiá Leão. Com seu falecimento a casa ficara vazia, não obstante bem cuidada por um prestimoso funcionário, seu Lima. Dois anos antes, houvera uma transformação. Com a confiança e a formalidade de um diploma de especialista, meu pai dedicava-se cada vez mais à Psiquiatria. Já não fazia mais partos. Seu canto de cisne como parteiro foi em casa, partejando a filha caçula, Maria de Fátima. Durante anos a fio, sempre que tinha oportunidade, descreveria as dificuldades desse nascimento. Nomeava a apresentação do concepto e as manobras obstétricas que tivera que realizar para o êxito do procedimento. Mãe e filhas salvas e sadias. Uma coisa que me emociona até hoje.
Como dizia, em 1960, meu pai instalou uma pequena clínica psiquiátrica na Av Major Cícero de G. Monteiro 2079, no Mutange. Sua fama de bom psiquiatra e zeloso dono de hospital cresceu rapidamente. Em pouco tempo a Clínica chegaria ao limite de sua capacidade: quarenta pacientes. Urgia mudar-se. Foi quando surgiu a opção  de compra da  Lilota. A bem da verdade, um sonho quase impossível. Papai prestava serviços a graduados funcionários da Usina Leão, o que facilitaria a negociação.
Aos poucos, Bebedouro ia ficando para trás. Deixaríamos de frequentar o Clube 29 de Junho, com seus animados bailes de Carnaval, com suas quadrilhas puxadas pelo polivalente Né Fragoso, onde as primeiras paqueras desenharam-se. Nem só de 29 de Junho vivia Bebedouro. Incursionávamos pela Chã e o Flechal. Não conseguia me aproximar de nenhuma garota. Com imerecida fama de rico (e de garanhão) era mal visto pelos pais das mocinhas, que recomendavam manter distância desse “perigoso playboy”.
A partir de determinado momento passamos a frequentar as festas de Carnaval da Fênix e do Iate. Era outro departamento. Dos discos de Claudeonor Germano no 29 de junho, passamos a ter o cantor ao vivo, sob a frenética musicalidade da orquestra Marajoara do Recife. No Iate, eram os  famosos Fausto e Passinha. Show de bola. Não obstante, continuava um bicho do mato, arredio, desconfiado. Sem convivência com as meninas, também tive dificuldades na hora das danças e das paqueras. Ficava mais à vontade nos cabarés de Jaraguá. Cheio de moral pelos serviços prestados, o velho, depois de muitas cantadas, deixava que eu dirigisse sua Rural. Havia uma rota: Bar do Chopp, onde encontrava colegas do colégio, regado a Ron Montilla, e lá pras onze horas o puteiro de Jaraguá. Confesso que nem sempre transava. Começava a ter o critério de seleção. Até pelo fato de não exagerar na bebida. Ou seja, as mulheres feias e sem graça continuavam feias e sem graça.
Ao começar a estudar medicina, divorciei-me quase completamente do meu querido bairro. Lá voltei poucas vezes, apenas para matar saudades num racha tradicional de Ano Novo, nas dependências do balneário do seu Né Fragoso. Registro, com tristeza, que seu famoso banho acabou. A límpida água deixou de escorrer. Há quem diga que o desmatamento à montante decretou o fechamento dos delicados mananciais que alimentavam a “piscina do  velho Né”.
A separação não quis significar abandono. Sirvo meu bairro, meus amigos de infância e seus familiares como médico. Tenho nos ombros e na alma responsabilidades intransferíveis. Tento mimetizar (sem o seu carisma) os trabalhos comunitários que meu velho pai fazia voluntariamente. Esforço-me por retribuir, com os limites dos meus conhecimentos, os inolvidáveis momentos vividos naquele recanto, que me viu nascer e crescer.

Maceió, 25 de abril de 2014


REVELAÇÕES DE UM BEBEDOURENSE APAIXONADO



REVELAÇÕES DE UM BEBEDOURENSE APAIXONADO
RONALD MENDONÇA
MÉDICO.  MEMBRO DA AAL

A Ladeira do Calmon está muito diferente daquela que minhas “cansadas retinas” guardaram. Naqueles tempos, um extenso e profundo sulco marcava o barro vermelho da ladeira. Nos períodos de chuva os carros tinham dificuldade de transitar.  Logo abaixo, à direita de quem desce, havia uma mata rala com escassas jurubebas e algumas plantas enfezadas que serviam de esconderijo para nossas brincadeiras de “mocinho e bandido”. Na verdade, não era um frequentador assíduo daquelas plagas.  Meu irmão Robson e eu, no entanto, por conta de um amigo que morava  vizinho a este matagal, de vez em quando íamos lá brincar
Lembro do momento em que ali eu enfiei o calcanhar na roda traseira da bicicleta do Val (Florival). Havíamos saído em grupo, de bicicleta, para o Catolé. Um tio materno, Manuel Góis, fazia parte. O Robson estava na garupa de sua Monark. Eu era mais leve e fiquei na garupa do  Val. Ele montava uma bicicleta Mercury, de mulher,  da irmã dele, Yara Barreiros.  Alguns anos mais velho, padecia de um membro inferior com sequela de paralisia infantil. Brigão, possuía braços fortes e um tronco avantajado e havia algo de radical na sua conduta. Comigo  ele era legal.  Chamava-me até por um apelido, “Nonda”, que eu havia adquirido numa escolinha para crianças.
Naquela  tarde o pessoal resolveu voltar pelo Tabuleiro. Era uma aventura.  O arrodeio  era desnecessário, posto que do Catolé alcançava-se Bebedouro facilmente, sem malabarismos geográficos. O fato é que, ao chegarmos no topo da descida, O Val gritou que eu devia me segurar e pedalou ladeira abaixo. Apostava velocidade. Sua deficiência, certamente, o compelia a competir de todas as formas. Tentei me segurar como podia. Foi nessa que enfiei o pé na roda. Ferida feíssima que demoraria a cicatrizar...
Mais acima do ponto onde eu estacionara, em direção ao Sanatório, havia  um “terreiro” onde se dançava xangô. Muitas noites despertei sob o batuque desses rituais. Já estava taludinho quando fui assistir a uma dessas “sessões”. Os amigos, um pouco mais velhos, experimentaram do xequeté, uma mistura alcoólica, comum nos terreiros de macumba. Com relutância, o Pai de Santo, permitiu que acompanhássemos o ritual. Nunca me detive muito nessas lembranças. O que restou foram mulheres de saias longas dançando em roda. De vez em quando uma delas era “Incorporada” por alguma entidade, ficava estranha, rodava sobre si mesma e era amparada pelas companheiras. O cabelo era solto e ela sumia do salão de danças. Os comentários dos amigos seriam no sentido de uma suposta visita a um altar instalado em um cômodo contíguo, sob a supervisão do Babalorixá.
Mas agora está mudado. Um asfalto substituiu o barro. O sítio do meu amigo transformou-se num conjunto residencial. O que ainda não mudou foi a visão da lagoa e a bonita fachada do “Asylo das Órfãs”.
Enquanto descia a Ladeira do Calmon, busquei mais retalhos da minha convivência no bairro. Atravessei a linha férrea e vislumbrei, à esquerda, a Igreja Batista.Logo veio a figura do pastor Plácido, um bigodudo e carrancudo cidadão, cuja simpática filha Nancy era amiga das minhas irmãs. Mas foi ali, sacrossanto sítio onde pastor Plácido pregava o evangelho, que o Major Bonifácio, anos antes, associar-se-ia a amigos intelectuais e amantes das profanas tragédias gregas (seu Teles, seu Anísio Costa e outros) para fundar um teatro, segundo consta no livro da escritora Ilza Porto sobre o avô Bonifácio.
A Rua Bruno Ferrari, que na minha infância e adolescência denominava-se 25 de Dezembro, é o traço de união entre a Rua Passos de Miranda e a Praça B. Silveira. Sua continuidade no sentido oeste terminava  na casa construída pelo  industrial Jacintho Nunes Leite,  anterior e lateral à Matriz. Com o redesenho para ampliação da praça, o tráfego  em frente à igreja foi interrompido. A Praça tornou-se um prolongamento externo da igreja. Com essas mudanças, os veículos que descem pela Ladeira do Calmon com destino a Maceió não podem seguir em frente até  à R. Cônego Costa, a rua principal do bairro.
Houve um tempo  em que o bonde elétrico era um dos meios de transporte mais ativos do bairro. Sem que atentasse para o fato, testemunhei os estertores desses veículos. Em Bebedouro, o bonde morreu aos poucos. Primeiro, deixou de circular na Praça Bonifácio Silveira. Depois passaria a parar cada vez mais distante da Matriz de Santo Antonio. Seus últimos terminais ocorreriam nas “Mangueiras”, em frente à Vila Lilota,  na época mansão da família Leão.
Os bondes tiveram seu apogeu.  Há relatos assegurando que durante as principais festas do ano, sobretudo no Natal, os bondes de Bebedouro tiveram singular importância. Com efeito, as festas promovidas pelo lendário Major Bonifácio Silveira eram o que de melhor havia de festejos na capital e no interior. Descrevia-se a presença de caravanas até de outros Estados, atraídas pela criatividade e animação nos folguedos.
Quando eu me entendi de gente, havia no ar uma nostalgia, uma orfandade do Major Bonifácio Silveira. Não faz muito tempo busquei conhecer melhor o mítico festeiro. Ao debruçar-me na sua história, deparei-me com outra figura que é pouco lembrada: Jacintho Nunes Leite. De fato, Nunes Leite foi um imigrante português que por aqui aportou em 1860. Apaixonar-se-ia pelo arrabalde, por suas águas correntes claras e abundantes, como as do Rio Silva. O braço da lagoa parecia um manancial  inesgotável de alimentos, sobretudo do sururu. Aliás, ainda alcancei uma pesca abundante, ali mesmo nas margens da lagoa, perto da ponte. Como queria dizer, Bebedouro era um sítio de muitas fruteiras, de clima agradabilíssimo, refrescado por brisas suaves vindas do sul.
JNL era um empreendedor atento. Graças a isso, o bairro se transformaria. A começar pela transferência do cemitério, primitivamente localizado na praça onde se situa a Matriz. Não é fácil mudar esse equipamento. Afinal, restos humanos  não podem ser tratados de qualquer jeito. Mas o fato é que o ousado imigrante promoveria a mudança. Idealizador da primeira fundição do Estado, garantiria os portões de ferro da nova necrópole.
Sob a influência de Nunes Leite, a Matriz de Santo Antonio teria nova roupagem. As paredes internas foram revestidas de azulejos de Portugal. Os velhos sinos seriam substituídos por novíssimos, confeccionados na fundição do benemérito. Com loja na R. do Comércio, colocou em Bebedouro uma fábrica de vidros e em Fernão Velho instalaria o que viria a ser a Fábrica Carmen, de tecidos. Várias picadas seriam abertas, desde a Cambona, para permitir a circulação de bondes por tração animal, cuja concessão adquirira. Foi de sua iniciativa botar água encanada em Bebedouro e no centro da cidade.
Politicamente, JNL era influenciado pelos ideais abolicionistas que causavam incômodo aos industriais da cana de açúcar. O fato de possuir uma fundição à altura das necessidades do mercado, não era admoestado de forma aberta A casa mais emblemática do bairro foi construída por ele. Ainda de pé, habitada por um dos descendentes, na Praça Bonifácio Silveira.
Com a morte de JNL, no segundo decênio do século XX, a figura de outro abolicionista reluziria: Bonifácio Magalhães da Silveira. Pernambucano de nascimento, cedo transferiu-se com a família para Alagoas. Funcionário público, major da Guarda Nacional, político, escritor, memorialista, ator, era, sobretudo, um “agitador cultural”. Tratava-se de um festeiro nato. Na minha infância e adolescência conheci pessoas que conviveram intimamente com o Major, como era chamado. Entre os parentes de Bonifácio Silveira cabe destacar seus irmãos Luiz, fundador da Gazeta de Alagoas e Faustino, professor de matemática e pai da psiquiatra Nise da Silveira.
 A fama de  Bebedouro como um bairro de elite vem dessa época. Ainda não havia o hábito da beira mar. Depois da arrumação promovida por Nunes Leite, o arrabalde passaria a chamar a atenção, justamente quando o Major decidiu retirar o bairro do “marasmo. Bebedouro sairia da condição de simples “corredor rodoviário” em direção ao interior e passaria a ser visto como um polo de festejos, onde as pessoas podiam divertir-se de forma sadia, com a comodidade de transportes por trilhos (bonde e trem) e rodoviário. Não obstante, a via principal de acesso não ser calçada. Ainda havia a opção fluvial, lacustre, desde o Porto das Balsas, na Levada.
Havia grandes dificuldades em se conseguir alugar uma casa para  esses períodos. Datam do segundo decênio do século XX as construções das mansões no Mutange, quando famílias mais abastadas ou erguiam esses casarões para morar definitivamente ou, simplesmente, para veranear. O carro-chefe dos festejos de Bebedouro era o Natal. O São João também era animadíssimo. Tudo leva a crer que os folguedos carnavalescos eram partilhados com o centro da cidade. Havia os corsos, os clubes sociais, os desfiles de escolas e os banhos de mar à fantasia. Era difícil mesmo competir com tanta pluralidade.
Nasci na Rua Cônego Costa, 3863, tendo o meu pai como parteiro. Alguns anos depois, fomos morar vizinho ao Asilo Bom Conselho, no número 3703 da mesma rua,  numa casa antiga do começo do século. Ficava numa calçada alta. Três casas ocupavam essa elevação. Era uma espécie de cartão postal do bairro. Havia também uma calçada alta em frente. Com essa disposição topográfica ficava evidente  que o morro havia sido cortado para permitir a continuidade da via.
São poucas lembranças da casa onde  nasci. Das raras - é possível estar enganado- quero crer que uma babá, Sra. A., generosamente, oferecia os fartos seios para um trabalho de treinamento muscular oral do futuro neurocirurgião. Anos mais tarde, A. seria minha paciente no Hospital Universitário. Ela era um tanto boquirrota  e terminava contando para os meus alunos que havia sido minha babá. Aguçava a curiosidade da estudantada ao relatar que eu era muito danado... Quero crer que nunca tenha entrado em  pormenores “sórdidos”.
Na minha visão de criança, a nova casa, vizinha ao Asilo,  era grande. Mais espaçosa que a anterior. Mais iluminada por janelas laterais que davam para o jardim. Tinha quatro quartos e uma varanda/jardim lateral delimitada pelo paredão  do Asilo. Havia um coqueiro central e um pé de jasmim colado no muro da frente. Causava admiração de uma árvore tão ressequida brotarem flores tão cheirosas... Minha mãe cultivava roseiras, mas as inclementes saúvas faziam grande estrago. O imóvel era alugado ao Asilo e tinha sido moradia do Monsenhor Tobias, um educador muito influente. Capelão do colégio, era gago e um emérito contador de anedotas nem sempre piedosas.
Meu pai criava galinhas e patos, no pequeno quintal, consumidos pela família que aumentava a cada ano. Criar galinhas não era à toa. Naqueles dias, as mulheres no puerpério faziam uma quarentena tendo o caldo de galinha como pièce de résistance. Alguns passarinhos gorjeavam  na nossa varanda. Eram poucos, mas exigiam cuidados. Certo dia, a empregada descuidou-se e o sofreu de estimação nunca mais foi visto. Mesmo destino tiveram dois galos de campina. Desta vez, o pai resolveu abrir as gaiolas. Com toda certeza, passarinhos em cativeiro não eram o seu forte. Gatos também não faziam sua cabeça.
 Um vira-lata, Rex, seria criado entre nós desde a mais tenra idade. Era um policial miscigenado, de abundante penugem negra e muito desobediente. Latia com estranhos, o que parecia ser uma característica aceitável. Nas brigas entre os irmãos, Rex se agitava, latia, rosnava e, finalmente, tentava interferir na contenda. Mordia a mim. Rex não era tão valente nas disputas com outros cães. Certa ocasião, cobrir-nos-ia  de particular vergonha: o cão do jornalista e político JA, com quem meu pai mantinha insalubre distanciamento, deu uma decepcionante montada por trás no Rex. Por tudo,  ele não nos orgulhava. Talvez essa seja uma das razões que me fazem manter distância de tudo que rosna, late e às vezes morde.
Nossa avó paterna, Docinha, morava conosco. O marido, meu avô, Francisco Cavalcante de Mendonça (“Chico do Brejo”), falecera aos cinquenta anos. O irmão mais novo do meu pai, Breno, era uma espécie de nosso irmão mais velho. Habitávamos o mesmo quarto, nosso tio, o meu irmão Robson, mais velho um ano e meio, e eu. Nessa época, 1953-1954, já éramos sete filhos. Desses, cinco eram meninas.
O Asilo Bom Conselho tinha sido fundamental na vida da minha mãe, Rosinha. Nascida em Atalaia, ficou órfã do pai, Francisco Aureliano de Medeiros Cabral (um espirituoso rábula), aos quatro anos. A apertada situação financeira da viúva a impeliria a internar duas filhas no Bom Conselho. D. Rosinha passaria nove anos no Colégio. Foi a oradora da turma. Provavelmente, pela primeira vez, sairia do Asilo Bom Conselho uma turma com o título de “professora rural”. Até então, as meninas estudavam português, matemática, história, geografia, francês... Aprendiam a costurar, a bordar, cozinhar, lavar chão e jardinagem. Ao saírem não tinham onde trabalhar a não ser como domésticas. A opção B seria tornarem-se amantes de algum nababo até que a velhice as transformassem em peças descartáveis. O paraninfo da turma da minha mãe foi o Dr. Ib Gatto Falcão.  Uma maneira que as alunas tiveram para demonstrar a gratidão pelo seu empenho em formalizar o curso do Asilo.
Minha mãe pouco exerceu o magistério. Faltava-lhe uma certa dose de malícia. Breve foi sua passagem como professora na Usina Brasileiro. Contou-me que numa ocasião os alunos foram queixar-se que um deles havia lhes “dado dedos”. Eram  gestos desconhecidos, digamos, num mundo do qual ela não tinha a exata dimensão do funcionamento. A aplicação como aluna do Asilo, contudo, não fora em vão. Aprovada em um concurso para a LBA, livrar-se-ia das pequenas pornografias infantis. Ao casar, a LBA seria página virada.
O que teria levado meu pai a morar em Bebedouro é uma pergunta que amigos me fazem. Certamente não foi atraído pelo dinheiro das “elites”. O bairro estava em decadência. Nascido em Pilar, de tradicional família ligada aos engenhos de açúcar,  o menino José Lopes passaria cinco anos interno no Colégio Diocesano. Concluído o curso secundário, foi para Recife, onde faria dois anos de complementar e o vestibular. O foco era a medicina. Ao pegar o trem, o pai o advertira: “Cuidado com o chapéu novo. Quando botar a cabeça fora da janela, segure com as mãos!” Doze horas de viagem. As expectativas de uma nova realidade fariam o adolescente Juquinha, como era chamado, esquecer as recomendações. Aos anúncios da chegada a Recife dentro de poucos minutos, a curiosidade o impeliria a vislumbrar a nova cidade. Adeus, chapéu. Morando numa pensão para estudantes, economizar qualquer tostão para voltar para casa com um chapéu, era uma questão de honra. Ao regressar em junho, sequer ousou arriscar colocar o apetrecho na cabeça. O pai, meio desconfiado, enquanto batia suposto pó, comentaria: “Está novinho. Não usou?” Juquinha teria replicado: “É que em Recife o pessoal está abandonando esse costume”.
Em Recife, alguns fatos foram marcantes para meu pai: 1) Convocação para servir o Exército em plena guerra, onde chegaria ao posto de cabo “padioleiro”; 2) A venda do engenho, uma ferida narcísica que nunca chegou a cicatrizar completamente; 3) A doença do pai, que ele adorava, culminando com sua morte; 4) O casamento com minha mãe.
 Estava cursando o quarto ano de medicina e gozava férias, aqui em Maceió, quando o pai dele, meu avô, passou mal. Ele diagnosticou que seu pai estava tendo um “Edema Agudo de Pulmão”. Em casa, sem qualquer recurso, tentou uma “medida heroica”: a sangria. Cortou uma das veias do braço do pai e salvou-lhe a vida. Meses depois, novo Edema Agudo se instalaria. A morte do pai ensejaria sua baixa no Exército. O fantasma de ir para o front na Itália estava afugentado.
 Formado, a decisão de morar em Bebedouro teria sido influenciada pelo fato da sogra, minha avó, casada em segundas núpcias com um fiscal de renda, morar no bairro. Além disso, não havia médicos na região. A circunstância do meu pai ter passado boa parte do curso como interno na Maternidade de Olinda foi fundamental. Mesmo levando-se em conta que os médicos eram mais bem preparados, fixar-se numa cidade de interior (Bebedouro era quase isso) sem prática em obstetrícia, aterrorizava o recém-formado.
E foi justamente isso que aconteceu. Clínico Geral, médico da Casa de Saúde Miguel Couto, chefe do Serviço de Verificação de Óbitos, meu pai era convocado com certa frequência para fazer partos em residências. Geralmente para casos mais complicados que as parteiras não conseguiam resolver. Alguns eram remunerados. A maioria, Deus os pagava. De qualquer forma, foi uma vida muito rica do ponto de vista humanitário. De manhã cedo, meu pai tinha o hábito de abrir a janela e dar uma olhada na rua. Aquela salutar mania de deixar o ar da manhã entrar na casa... Não há como afirmar que ele ficava surpreendido com a fila que havia se formado. Pessoas de todas as idades, sobretudo mães com crianças nos braços. Minha mãe contava que ele a chamava e dizia: ”Rosinha, veja isso! Que quantidade de gente é essa? O que essas pessoas estão fazendo na minha porta a essa hora?”. Todos sabiam o que elas queriam. Aí, o meu pai, mais uma vez, “surpreendia” minha mãe. Depois de tomar um rápido café com dois ovos à la coque e de fumar um Continental sem filtro, sentava no bureau que ficava no corredor da casa, estetoscópio ao pescoço, e ia atendendo. Abria a gaveta de amostras, explicava como fazer e recomendava: “Se não melhorar, volte amanhã”. Ninguém saía de mãos vazias. O melhor da festa: tudo de graça.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

16 DE FEVEREIRO

16 de Fevereiro
Ronald C. Mendonça
Médico. Membro da AAL

Década de 1950. Naquele domingo, o azulão estava triturando o velho rival, Regatas. Ainda no primeiro tempo, Cão (não o Silva Cão), irresistível artilheiro, levaria a torcida ao delírio ao fazer o terceiro gol.
Nem tudo era alegria. Na arquibancada, onde ficava a massa azulina, em meio a gritos e foguetórios, uma criança chorava. Da coxa ma...l coberta pela calça curta, uma pequena queimadura ameaçava pingar solitária gota de sangue. O pai, torceder do CSA, ao dar conta do choromingo filial, identificou o problema: no orgasmo da comemoração, um torcedor havia soltado um “pistolão” e o chio flamejante atingiria o garoto.
Irritado, o pai admoestaria severamente o transgressor. “Como”, perguntara o pai, “um chefe de família comete a “imprudência” de soltar um foguete numa arquibancada fechada? Quer-se crer que a coisa não tomou outro rumo pela leveza da lesão corporal e pela aparente indisposição do “imprudente” para confrontos.
Tudo se aperfeiçoa. Pistolões deram lugar a rojões poderosos com um grande potencial destruidor. Por sinal, anos atrás, estava presente no jogo Brasil X Chile, no Maracanã. Um rojão passaria perto do goleiro, Rojas, do Chile. A morte de uma criança, na Bolívia, com a participação de torcedores do Corínthians é nódoa indelével.
O fato é que o rojão, ao deixar os campos de futebol e os folguedos de São João, tornou-se objeto de “argumentação” de manifestantes. Ameaça à vida, hoje não existe uma passeata no Brasil em que não haja rojões.
Quero referir-me à morte do cinegrafista da Rede Band atingido por um petardo. Culpados enjaulados, haveria indícios de que as ações desses vagabundos, docemente chamados de “Black Blocs”, teriam financiamentos “externos”. Seriam pessoas e grupos interessados em “desestabilizar o governo...” Fala-se até em “séria ameaça à democracia...”
Sem exageros, os black blocs de hoje, inevitavelmente lembram as incontáveis invasões dos sem terras, que, dizia-se claramente, eram estimuladas pelo PT, quando oposicionista. A finalidade: criar um clima de intranquilidade e discórdia.
Data Venia. Nesse 16/02, nossa saudosa filha Lavínea faria 43 anos. Uma menina, no olhar do pai. Na minha mente vergastada pela dor, quero imaginá-la preocupada com as primeiras rugas e com teimosas cãs a tonalizar suas negras madeixas. Estaria com a beleza amadurecida, cultivando os filhos, os sobrinhos, os seus livros e brilhando com o fulgor de sua rara inteligência.

O GIGANTE DORME, MAS NÃO É ESQUECIDO



RONALD MENDONÇA

Mestre Ib Gatto Falcão completaria cem anos neste 20 de março de 2014. A propósito do seu ano de nascimento, ele costumava dizer que havia vencido as duas Grandes Guerras. Por esse viés, seria um “sobrevivente”.

 Em 1961, secretário do Governo, encontrava tempo para um périplo pelos colégios para discorrer sobre o câncer. Quero crer que ficava nas generalidades. Garoto de 13 anos, restou a imagem de que o símbolo do câncer é o caranguejo. O mestre deixaria bem claro que o animal não causava a doença. Espirituoso, arremataria: ”Se  tiverem em casa  caranguejos cevados podem mandar para mim. Não me mandem os magros...”

Dotado de extraordinária criatividade, espírito inquieto, escrever  sobre doutor Ib, chega a ser uma “covardia”. Formado na vetusta Faculdade de Medicina da Bahia,  com 21 anos, foi um aluno excepcional. Uma das coisas que o movia a ser aquele aluno exemplar, era o extremado respeito pelo avô, o “velho Gatto”. Na sua cabeça, o seu pai de criação (ficou órfão antes de completar cinco anos e sua mãe foi para a casa do avô), jamais iria compreender uma nota baixa, uma reprovação.

Orador arrebatado, toda a Alagoas sabe que doutor Ib foi um dos mais perfeitos cirurgiões de sua época. De uma cultura médica invejável,  usava o bisturi com igual habilidade,  ora com a mão direita, ora com a esquerda. Primariamente canhoto, a ambidestreza teve sua origem na infância, quando fraturou o braço esquerdo e viu-se compelido a escrever com a mão direita...

Muito jovem ensinou no Asilo das Órfãs, em Bebedouro. Foi quando aprendeu francês com uma das freiras. Trocava eventual salário pelas aulas... O espaço é pequeno para discorrer sobre aquele momento. É que naqueles passados dias, as alunas do Asilo concluíam seus estudos e não tinham qualificação oficial. Aprendiam História, Geografia, Português, Francês... Mas, também, a costurar, bordar, cozinhar, lavar chão... Enfim, cultas e versáteis, eram perfeitas para trabalhar em alguma cozinha e tornarem-se alvos  da concupiscência de patrões inescrupulosos.

Minha mãe, D. Rosinha, e centenas de jovens nunca esqueceram do empenho do doutor Ib em dar dignidade àquelas órfãs. O mestre, numa demonstração de apreço da turma, foi o paraninfo dessa primeira leva de professoras diplomadas pelo Asilo. Dona Rosinha foi a oradora da turma.

Obrigado, Mestre.

HIENAS DO BEM


HIENAS DO BEM

RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Comparando João Paulo à hiena, a crônica de Walter Mairowski, lida por ele mesmo na Rádio CBN, foi cercada de analogias e metáforas. Tudo porque o  ex-deputado e ex-presidente da Câmara Federal, João Cunha, viu reduzida sua penalidade em cerca de 3-4 anos. Humanitários juízes do STF chegaram a uma conclusão óbvia: JC não lavou dinheiro  público ou privado. Aliás, nunca lavou nada. Consta ser alérgico a todo tipo de sabão, detergentes, até aqueles específicos para lavar notas de cinquenta e de cem. Os detergentes que lavam cédulas menores causam violentas urticárias nas mãos dos alérgicos. Se insistir, as bolhas terminam  em ulcerações terríveis.

Dou-lhe razão. Nosso herói não quis arriscar. Consta que, da última vez em que tentou lavar, mesmo numa concentração diluída, teve os olhos inchados, broncoespasmo e quase morre. Não por acaso  seus advogados não admitiram lavagens. JC jamais teria lavado nada. Nem a própria cueca, muito menos a cueca de outros petistas melada de dólares.  No máximo ele enxuga. Assim mesmo  com luvas antialérgicas.

 Mairowsky exagerou nas  críticas. Com efeito, o advogado/jornalista ficou furibundo porque JC comemorou ruidosamente sua  mudança de regime de prisão. Passará do quase-fechado para o regime semiaberto. Com certeza, tendo-se como base a qualidade moral dos hóspedes da Papuda, a reabilitação moral e ética dar-se-á  dentro de alguns dias. A previsão é de que ele e seus colegas de trambiques deixem a Papuda em estado de graça. Afinal, existe um contingente maravilhoso trabalhando na recuperação desses  guerreiros. Se houve alguma insatisfação com o resultado final,  devemos atribuir ao espírito misericordioso dos ministros.

Em boa hora, os ministros do STF também descriminalizaram a mulher do moço. Que culpa tem aquela inocente? Confiando cegamente no marido e em Valério, como poderia imaginar que aquele dinheiro, recebido à sorrelfa, poderia ser sujo? Era preciso ter a mente corrompida pelo pecado.  A mulher recebe orientação de negar que foi receber  uma babinha. A estratégia era dizer que tinha ido pagar o boleto da Sky... Somente um ser extremamente mau desconfiaria.

 Mas como diria a amante de Henry IV, “O Banco Rural vale bem uma missa”. Se a cândida   esposa de João Paulo Cunha  não tivesse ido ao Banco, hoje nada disso estaria acontecendo. Em compensação, a babinha iria passar por outros meios. A criatividade petista supera qualquer obstáculo. A grande verdade é que, segundo o Supremo, João Paulo Cunha, militante “incorruptível” não passa de um mero corrupto.  Isso não é motivo para angústias desnecessárias.  Jamais um adjetivozinho pespegado pela imprensa reacionária e por um Supremo politizado irá macular a biografia deste patrimônio  do Partido.

O que queria Mairowski ? Que João Paulo e sua incorruptível esposa se quedassem prosternados no ardente betume de Brasília? É evidente que  ele e os comparsas  são “hienas” (comem fezes e têm relação sexual uma vez por ano, não obstante sorriem desbragadamente). Mas são hienas do bem!

NADA COMO O LEITE DA MULHER AMADA



Ronald Mendonça

Médico e Membro da AAL.

Esta semana, um primoroso texto  do publicitário Aloísio Alves  brindou os leitores da Gazeta de Alagoas. Abro parêntesis para dizer que se aproxima a data comemorativa dos 70 anos  desse diário que faz parte da vida dos alagoanos. Era garoto de menos de 10 anos quando Arnon de Mello adquiriu essa marca. Por que não dizer? Órgão fundado pelo pernambucano Luiz Silveira (irmão do Major Bonifácio e tio de Nise da Silveira), vivia os estertores. Míseros duzentos números eram a tiragem do jornal.

minha geração cresceu lendo a Gazeta e o Jornal de Alagoas. Pouco e pouco, às vezes aos saltos, o diário comandado por Arnon de Melo ocupou merecido espaço no conceito popular, com competência e , sobretudo, credibilidade. Não se faz um grande jornal sem essas características. Como parte dos parêntesis, ainda hoje, quando tento rabiscar alguma coisa, lembro as crônicas dos eminentes Paulo Silveira, Zadir Cassela, dentre outros.

Como queria dizer, o publicitário Aloísio Alves pertence a essa  nova geração de articulistas e colaboradores que junto a Lysette Lyra, Milton Hênio, José Medeiros, o saudoso Fernando Iório, Paschoal Savastano, José Maurício Breda, Dom Edvaldo, Oduvaldo Perciano, Coronel Rocha, Eduardo Bonfim e tantos outros, contribuem para consagrar as divergências, única via de uma verdadeira democracia.

Como queria dizer, Alves, em insuperável texto, discorreu sobre a situação dos doentes mentais e seus familiares. Como corolário, expôs sucintamente a penúria dos hospitais psiquiátricos. São cem mil leitos fechados na área! Deus do céu! Que tempos são esses? A indiferença dos poderes lembra a famosa sentença do neurologista francês P. Charcot “Cést la belle indiference”.  Parodio Ladame e digo: a bela indiferença passou dos doentes para os gestores.Com efeito, a contra-cultura chegou a um tal ponto que um doente mental comete um crime bárbaro e a culpa recai sobre o antipsicótico,  o medicamento, que o desgraçado vinha usando (e, recalcitrante, deixou de usar).

 Sem nenhuma mágoa ou sentimento menor de desforra, recordo que participei de uma reunião (“Sessão Pública”) na Câmara de vereadores de Maceió, em 2000. Uma nojeira. Era tudo carta marcada. O próprio vereador que organizou o evento padecia de incontida parcialidade. Num dado momento, uma jovem psicóloga, ou assistente social, “brilhou” ao afirmar que conhecia “um caso” de um psicótico que havia sido tratado com êxito num hospital geral. O melhor de tudo: só com carinho.

EMOÇÕES



Ronald Mendonça

Médico. Membro da AAL

Aos doze anos, depois de uma rápida passagem pelo Juvenato Nossa Senhora da Conceição, em Recife, desisti definitivamente da vida monástica. Sonho disputado com o desejo de vir a ser médico, qual meu pai, desvanecera-se no ar, tais os sólidos na metáfora de Marx. Um mês me bastou para reconhecer que não nascera vocacionado para aquele tipo de vida.

Num piscar de olhos, veterano médico, já quase cinquentão, vi-me debruçado ao teclado de um computador, literalmente dedilhando textos para jornal. Não obstante o velho bisturi continuar firme a garantir o pão de  cada a dia. Eis que um novo mundo estava a se descortinar. Como todo aprendiz, escorreguei muito (ainda hoje escorrego, sem me considerar um sênior na arte de  escrever).

 O primeiro texto foi publicado no O Jornal, por puro acaso. Engatinhava no computador quando arrisquei mandar o texto para a redação. Não alimentava ilusões de permanecer escrevendo. Ocorreu que o artigo foi lido por Dr. Ib Gatto, simplesmente o presidente da AAL. Ele gostou tanto que publicou comentários a respeito do tema. Tratava-se de assunto polêmico, meio “desabafo de pai”,  sobre o vestibular na ECMAL.  Outras pessoas opinaram. Alguém pode dizer, não sem razão, que o polêmico articulista estava nascendo...

Várias vezes pensei em desistir. Sobretudo quando, em vão, buscava o meu modestíssimo texto nas páginas e... nada. A vontade era de mandar tudo às favas. Desagradável sensação de perda de tempo. O cirurgião treinado em outros campos de batalha,  estava nas cercanias de um território desconhecido. Um novo aprendizado que, como na Medicina, dura a vida toda.

As  páginas da Gazeta não foram fáceis de conquistar. Como uma deusa do Olimpo, da noite para o dia, iria abrir-se para um neófito de escrita mal ajambrada? Tal qual num caso de amor à moda antiga, as coisas foram acontecendo. Envergonhado, entregava os textos  a um  prestimoso intermediário, como cartas de amor em tempos medievais. A irregularidade foi substituída por uma quinzenalidade.

Um dia, o notável Ênio Lins me telefonou para dizer que doravante os artigos seriam semanais. O próprio Ênio encarregar-se-ia de me tranquilizar sobre os temas: “Com esses caras fazendo bobagens, você vai ter assunto para escrever todo dia”.

É assim que estou aqui, vivendo esse momento lindo dos 80 anos da Gazeta. Tinha quatro anos quando Arnon de Mello recriou esse jornal. Cresci lendo os textos de Donizetti Calheiros, Genésio Carvalho, do próprio Arnon, de Paulo Silveira, Cassella e tantos outros. Jamais imaginei que um dia pudesse estar ocupando essas páginas. Hoje, timidamente, fazendo companhia a “feras” como Milton Hênio, José Medeiros, Carlito Lima, Aloísio Alves, Lyzette Lyra, Eduardo Bonfim, o saudoso Cônego Fernando Iório, José Maurício Breda e mais uma plêiade de colaboradores ilustres... Nesses anos de jornalismo na Gazeta, “olhando” para vocês semanalmente, incidem as mesmas emoções dos primeiros dias. Ainda parodiando, digo: se sorri ou se chorei, o importante é que emoções eu vivi.