quarta-feira, 8 de maio de 2019

UM CONTO DE FÉRIAS



UM CONTO DE FÉRIAS 
RONALD MENDONÇA

A carona de um colega de faculdade fez André antecipar em algumas horas seu retorno, a contrariar a ideia inicial de voltar de avião. O velho casarão estava quase às escuras, o silêncio apenas rompido   pelo som da televisão, cuja  luminosidade o atraiu até o quarto do seu pai, que cochilava numa preguiçosa. Aproximou-se com cuidado e alisou sua cabeleira branca e farta fazendo-o despertar meio assustado. O abraço comovido selou aquele reencontro, depois de quase um ano em que não se viam. O velho pai estava saudoso  do filho único. Mal começaram a conversar e a voz da mãe se fez ouvir, determinando ao motorista onde deveria guardar as compras.

Foi uma surpresa muito agradável. Ao enxergar o filho, Guiomar largou tudo no chão e acorreu, lágrimas a escorrer, a abraçar, alisar, palpar e mil beijos foram dados no rosto, nos olhos e na cabeça do recém-chegado, enquanto dizia baixinho: meu filhinho está cansadinho, quer comida? Fêz boa-viagem?... e dezenas de outras preocupações e pequenos elogios que somente mães conseguem dosar a tonalidade exata.. Espontânea,   bonita, elegante, mais magra,  a mãe pareceu-lhe muito jovem, sobretudo quando comparada ao pai que, a seus olhos, muito envelhecera.   A postura materna contrastava com o despojamento  do velho pai que, além de tudo,  tinha um ar melancólico.
Achou legal rever o  amigo de infância, Zé Luiz, hoje motorista da família. Filho da falecida lavadeira da casa, praticamente cresceram juntos.  André, três anos mais moço, filho único, nutria fraterna afeição  e lamentava sinceramente o fato de o amigo  haver desprezado as oportunidades em relação aos estudos. Chegaram a frequentar o mesmo colégio particular, mas Zé Luiz gostava mesmo era de jogar bola e pegar passarinho na pequena mata próxima à casa.

Logo cedo do dia seguinte, André acordou com disposição de dar uma volta no sítio. Queria rever tudo. Eram saudades imensas. Tudo o emocionava. Os exatos cem coqueiros que cinco anos antes o pai havia plantado, ali estavam. Os patos, as galinhas, os porcos... Até festa fizeram ao vê-lo. O cheiro da marisia da lagoa penetrava nas suas narinas e o inebriavam de satisfação. Enquanto se detinha em cada pezinho de mato, lembrou-se do pai. Que estaria acontecendo para ele andar tão triste? Iria tentar descobrir...

A lâmpada da suspeita acendeu ao voltar do sítio.  Presenciou, de longe, sem ser notado, o amigo Zé Luiz dirigir-se a sua mãe sem o respeito esperado. Parecia que o motorista falava com ousada insolência. Que diabo estava acontecendo? As pessoas daquela casa enlouqueceram? Para completar, o cara entrou no carro e acelerou arrastando os  pneus.

André não ficou feliz com o que viu. Preocupado, voltou aos aposentos dos pais para sondar. Remexendo aqui e acolá, encontrou numa gaveta, surpreso,  o velho punhal enferrujado de cabo de madre pérola que pertencera ao avô. Supunha-o perdido. Instintivamente o escondeu dentro da camisa e o guardou no seu quarto, sob a fronha..

O ambiente da casa não era o mesmo. Sim, com a sua chegada, a inteligência, a sagacidade, o raciocínio rápido de Anízio, o pai, aparentemente voltavam ao seu estado de normalidade. Trabalhava menos, construíra um verdadeiro império do Direito e comandava, com mãos firmes, um poderoso escritório com capilaridade que captava os casos complicados de bancas menores. Era um timoneiro experiente, culto, dava aulas na Universidade, era convidado para fazer palestras, conferências em vários pontos do continente. Grandes bancas jurídicas o consultavam, sub-rosa, e ele cobrava caro pela consultoria. Tinha uma belíssima biblioteca, tudo catalogado por profissionais da área. Era  um advogado brilhante e muito influente. Sabia a hora de atuar. Como todo advogado, tinha clientes de todos os matizes morais. Mas, nos últimos anos, dava-se ao desfrute de recusar até causas milionárias. Não se permitia defender assassinos de aluguel, gente do sindicato do crime, pedófilos e outros patifes. Ladrões que saqueavam os cofres públicos não encontravam guarida no Dr. Anízio. Sistematicamente declinou de convites  para ocupar cargos públicos. Tinha náuseas de “procuradores-gerais”, os chamava de “capachos”, sobretudo aqueles dos órgãos políticos. As exceções, ele sabia distinguir.

Acumulara uma boa reserva financeira decorrente de causas vitoriosas de funcionários públicos sufocados por planos cafajestes. Poder-se-ia dizer que Dr. Anízio conhecia as vísceras mais infectadas da Sociedade. Estava naquela patamar da vida onde não se confia nos homens e desacreditava-se dos milagre.

Por outro lado,   os empregados mais antigos davam a impressão de estarem a evitá-lo. Decidido a tirar tudo a limpo, passaria a desconfiar de todos. Na adolescência adorava contos policiais e era leitor recorrente de X-9 e Sherlock Holmes. Sim, era verdade: às vezes sentia-se perseguido, observado... Dizia que convivia bem com a sua paranoia. Procurava livrar-se desses excessos, mas agora as impressões eram mais fortes que ele. Imaginou até seus pais sendo chantageados pelo motorista, por algum motivo que precisava descobrir. Para aumentar o clima de suspense, o velho punhal de madre pérola sumira de sua cama.Não se consentia pensar  em qualquer atitude que denegrisse a imagem da mãe. Era uma santa. Além da sólida formação moral, era de uma religiosidade a toda prova. Faziam refeições nos horários habituais. Era interrogado pelos pais sobre sua vida distante do lar. Eles testavam a resiliência do filho, a capacidade de resolver  coisas de forma independente, sem as peias e o abrigo dos genitores. O pai interessava-se particularmente sobre os conhecimentos adquiridos depois do ingresso na faculdade. Eram conversas amenas, mas pressentia-se que algo não ia bem no relacionamento dos pais.
A despeito de, rigorosamente, nada ter visto de concreto, a última semana das férias foi  de expectativas e de puro sofrimento. O pai registrou essa ansiedade. Estaria apaixonado? Ou continuava com a  política de não envolvimento mais profundo?

André planejou  uma estratégia. Faltando apenas um dia para voltar para a faculdade, fanático  pelo CSA,   no domingo, aludiu que iria ao Trapichão, assistir ao jogo final do campeonato. Na última hora, conseguiu o carro de um colega e fingiu dirigir-se  ao estádio. Ficou à espreita, perto de casa. Intuía que alguma coisa importante iria acontecer.
Às cinco da tarde, cautelosamente, acompanhou o automóvel da família que ganhara a rua, Zé Luiz no volante. Foi com extremo alívio que, de longe,  avistou a mãe descer na porta da Igreja. André não arredaria  de onde estava. Quinze minutos se passaram até ver  o carro do pai novamente em movimento. Com o coração aos pulos,   segui-o em direção à periferia da cidade.
Não havia certeza de que a mãe entrara naquele carro. Indeciso, esperou intermináveis minutos próximo à entrada de um sórdido rendez-vous, onde o automóvel com a mãe escafedera-se. Deus! o que era isso...? Pensou em desistir. Decididamente, não tinha condições emocionais de presenciar o que estava a antever. O que  imaginava estava muito além do que poderia suportar.

Como se assistisse a um velho filme congelado na  mente, cenas de sua vida foram exibidas numa tela imaginária. Era como se o velho Clóvis, centroavante do CSA e funcionário do SESI, as comandasse. Estaria alucinando? Chegou a voltar a cabeça para, na escuridão do seu cérebro conturbado, tentar enxergar o velho atleta, ídolo da  infância. Cenas indeléveis da sua casa na Chã de Bebedouro, na Osvaldo Cruz Nº 500. O pai, jovem advogado impetuoso, antevia uma grande causa que o livrasse da mediocridade e das dificuldades financeiras. No início, suas atividades resumiam-se a pequenas causas, brigas de vizinhos, entreveros de parentes, quase biscates. De certa forma assimilara a arrogância de certos advogados, famosos pela perspicácia, mas sobretudo pelos vultosos honorários. Reatou amizades com notários, antigos colegas de colégio que o recomendavam. Sempre foi sério, estudioso, avesso a farras. Mal e porcamente frequentava o Bar Colombo, aos sábados, apenas para marcar presença, mas lá não se demorava.

Formara-se em Olinda em difíceis tempos. Esteva com um pé na Segunda Guerra quando ela acabou. Para concluir o curso de Direito humilhara-se em sub-empregos. De certa forma, o pequeno soldo do Exército reanimara-lhe os brios. Iria vencer, sim. Sua “grande causa” chegaria aos quarenta anos. Outas causas foram se sucedendo. Não queria tanto. Tinha apenas um filho, o André.

Educou-o com moderada disciplina, seguindo os costumes da época. Nunca admitiu que o filho único chegasse em casa com nota que não beirasse o dez. Erguia as temidas sobrancelhas e dizia: ”eu não avisei que você estava inseguro naquelas datas? A sua nota baixa (9,7) deve ter sido por isso”. E completava: “vamos fazer um serão e repassar essas lições”. Aos sábados à tarde André faxinava os sapatos próprios e os dos pais. Deixava-os de molho e no domingo engraxava e dava o polimento. Como prêmio, recebia autorização para assistir filme, com direito a verba extra para adquirir alguns gibis em barganhas na porta do estabelecimento.

O imaginário filme da sua vida não poupou as pequenas alegrias domésticas, as comemorações dos aniversários, o de Anísio, o pai, coincidia com a véspera de São João e o de Guiomar, a antevéspera do Natal. Havia sempre uma buchada, no São João, e um peru, no Natal. Naquela casa, comemorava-se o Natal no dia 23 de dezembro. Foi nessas brincadeiras que André, ainda adolescente, arriscava-se na sangria do vinho. Para horror de Guiomar, Anísio fazia vistas grossas à traquinagem do unigênito filho. Passados os festejos a ordem voltava a imperar na casa de André. O pai, ao silêncio das noites tentava justificar: “mulher, nós temos um menino exemplar, que nos dá imensas  alegrias. Nesse ano foram  seis medalhas de ouro, no Colégio; bem, teve uma de prata, é verdade...”

O “filme” revia cenas que André já não mais  lembrava: as mornas tardes, na pequena varanda, com a cara enfiada nos livros e também a observar a mãe, catita, cuidando das roseiras, maldizendo as temíveis saúvas. De vez em quandoO “filme” revia cenas que André já não mais  lembrava: as mornas tardes, na pequena varanda, com a cara enfiada nos livros e também a observar a mãe catita cuidando das roseiras, maldizendo as temíveis saúvas. De vez em quando, o olhar materno em sua direção a lembra-lo que iria tomar as lições. Mas era à noite a prova final, quando Dr. Anízio, ar carrancudo, iria dar o veredictum sobre a qualidade do aprendizado do garoto. Não admitia gaguejos ou vacilações.

Quase por um acidente de percurso, André chegou a passar um mês num seminário. Numa das cenas, ouviu-se dizer, entre risos, que Deus (na sua infinita misericórdia!) lhe aparecera em sonho a perguntar-lhe o que ele  estaria fazendo naquele local, a ocupar lugar de outros, certamente, mais vocacionados ao celibato e às adorações.

Dona Guiomar, a mãe, que não fizera festas quando o filho comunicara suas  pias intenções, também tivera seus maus bocados. Passara a infância e adolescência entre freiras. Menina pobre do interior, perdera o pai aos quatro anos. Daí em diante seus pais foram as irmãs claretianas. Esteve à beira de confirmar os votos, até que, numa missa dominical, avistou aquele seria seu príncipe encantado, alto, vasta cabeleira, rosto bem conformado, enfeitado com charmosos bigodes, não obstante quase imberbe. Durante a celebração, foi fulminada pelos olhos negros do futuro e promissor causídico. Um discreto e acanhado sorriso era a confirmação do flerte.

Assim, nasceria uma linda história de amor entre a tímida órfã e o destemido recruta do Exército brasileiro e estudante da tradicional Faculdade de Direito de Olinda. Romântica, a bela Guiomar predestinou o futuro marido ao encalço do Hitler, como o lendário sãomiguelense Zé da Júlia, nas distantes montanhas do conflagrado Velho Mundo.

André reviu seus desencantamentos por ser filho único. Aparecia a cobrar  da mãe essa condição, para ele, de inferioridade, posto que seus amigos de colégio surgiam na fita a falar  dos irmãos, narrando incidentes, convivências, brigas e outros que tais das grandes famílias Somente ele e mais um ou dois colegas não tinham irmãos. Nessa fita retrospectiva, a mãe aparecia a dizer-lhe, melancolicamente, furtivas lágrimas a perolar a face, que durante o parto de André tivera um forte sangramento. Estivera às portas da morte, fora operada na “bacia das almas”, contudo a sobrevivência teve um preço: a “condenação” a não ter outros filhos. Talvez por isso, a necessidade em André de superar essa espécie de “peça” preparada pelo destino. Um misto de decepção e até de culpa por ter sido, involuntariamente, é claro, causador da infertilidade materna.

Num relance de flash back  surgiram o velocípede e a bicicleta; o futebol, as peladas no bairro e na praia, os bailinhos, as festas carnavalescas, os porres de lança-perfurme em plena Rua do Comércio, os corsos, os grandes passistas, os festejos natalinos, os amassos nas festas de rua em Fernão Velho e Rio Largo, os entreveros físicos, trocas de socos e pontapés em ônibus, a ida à Delegacia de Polícia onde foi, por conta disso, certa feita, parar...

Passagens de sua presença no colégio dos beneditinos foram recorrentes. Numa delas estava a fazer prova de Português, matéria em que se destacava. Por sinal, cada novo professor, ao iniciar o ano letivo, pedia para os alunos fazerem uma dissertação, “tema livre”. Já no curso primário suas “composições” destacavam-se e eram expostas no quadro de avisos da sala de aula. As dissertações de André, segundo o filme de sua vida, eram lidas em voz alta pelos professores, comentadas, elogiadas pela boa qualidade dos textos. Mas um certo professor resolveu encrencar com o adolescente André. Uma cena, até certo ponto, revoltante. O aluno, sentado na fila da frente, concentrado na prova, escrevia com a mão direita e, sem perceber, mantinha a mão esquerda fechada. O tal professor cismado que havia uma “cola” no punho cerrado, exigiu a abertura da mão. André, de forma desafiadora, só concordou em estender os dedos em respeito aos apelos dos colegas. A mágoa ficou. Ao ter sua aprovação no vestibular confirmada, o professor teria comentado: “o André foi um dos meus melhores alunos nos beneditinos”. Era tarde o mea culpa.

André não estranhou  uma cena particularmente marcante. Ganhara uma couraça, presente do pai. Tinha um ciúme doentio desse brinquedo. Porém, cometeu uma imprudência ao bater um “picadinho” na praça em frente ao Palácio dos Martírios. A bola seria capturada por um guarda-civil. O sujeito, de nome Vítor, torturou a criança com frases em que dizia claramente que a couraça de estimação estava no lixo, rasgada com fúria por malvados policiais, “seguindo orientações advindas do Palácio”. “Do Palácio!?” exclamou o garoto, e completaria, “moço, esse governo não tem o que fazer de mais importante?” Por fim, já anoitecendo, depois de lamuriosos apelos, o tal de Victor devolveu o brinquedo. O problema agora seria explicar ao pai o atraso do regresso ao lar...UM CONTO DE FÉRIAS  (FINAL)

Nunca foi um namorador contumaz. Na realidade, sempre foi muito tímido e algo desajeitado. Seu rosto era pequeno em relação aos largos ombros, o que lhe conferia uma certa desproporção corporal. Vestia-se com simplicidade, roupas alinhavadas pela mãe, numa velha Singer. Seus sapatos eram reforçados por biqueiras e saltos em metal, para durarem mais. Várias vezes, aparecia jogando, usando aqueles instrumentos belicosos, de reforçados bicos, temidos pelos estragos potenciais que poderiam produzir, à sombra dos oitizeiros do colégio dos beneditinos. Pelo conjunto da obra, até aquele momento, não se auto-classificava como um “macho alfa”, posto não provocar, aparentemente, nenhum frisson no público feminino.

Intrigado, descobriu-se a perguntar-se o que  namorados faziam ou falavam-se de tão interessante, em prolongados encontros quase diários. Na verdade, sempre preferira prostitutas a namoros mais sérios, daí as visualizações femininas sem nitidez, como a denunciar os passageiros “casos”.  André era mesmo focado em leituras. Queria passar num vestibular de uma grande instituição de ensino, como o seu pai, e, seguindo o raciocínio, ter uma ampla cultura e ser um profissional respeitado.

De súbito, o filme do seu passado deu um branco e retornou a sua dramática encruzilhada. Procurava uma justificativa razoável que pudesse explicar o comportamento de Guiomar. Transtornado, incapaz de raciocinar com clareza, nada lhe ocorria a não ser a crueldade do destino, que, tragicamente, o marcou desde a concepção.

Veio-lhe então à mente a grave fisionomia paterna séria e tristonha. Vacilou. Mas alguma coisa haveria de fazer. Cresceu em ódios contra o seu amigo de infância. Não tinha dúvidas, fora ele quem botara sua mãe no caminho do mal. Sim, fora aquele canalha que de forma sub-reptícia fez sua mãe, uma santa mulher, corromper a sua alma bondosa, renunciando aos seus princípios morais e religiosos. Pensou em estrangular o amigo. “Um sacana,  filho-da-puta!” Era terrível e desconcertante. André deixara de acreditar em alma, em outras vidas, em “planos superiores”, em “outra dimensão”...

Por fim, encheu-se de coragem. Daí em diante,  André não saberia mais narrar o ocorrido, se assim possível fosse. Suas últimas impressões, após arrombar a porta do quarto do rendez-vous,  teriam sido a dolorosa visão da sua mãe assustada, supostamente em felações, tentando esconder a nudez. Ele ainda ensaiaria  dizer-lhe que a perdoava,  mas apenas gemeu alto pela lancinante dor de um punhal a rasgar-lhe  o peito e  faze-lo suspirar, penosamente, pela última vez.
Maceió, 1997

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