BEBEDOURO: MEMÓRIAS DE UM VELHO
SUBURBANO
Ronald Mendonça
Médico. Membro da AAL.
A Ladeira do Calmon, onde me
encontrava, estava muito diferente daquela que minhas “cansadas retinas”
guardaram. Naqueles tempos, um extenso e profundo sulco marcava o barro
vermelho da ladeira. Nos períodos de chuva os carros tinham dificuldade de
transitar. Quero crer que poucos moradores
hoje conhecem aquele cume como o “Alto do Urubu”. Logo abaixo, à direita de
quem desce, havia uma mata rala com escassas jurubebas e algumas plantas
enfezadas que serviam de esconderijo para nossas brincadeiras de “mocinho e
bandido”. Meu irmão Robson e eu, por conta de um amigo que morava vizinho a este matagal, de vez em quando íamos
lá brincar.
Uma das minhas lembranças da
Ladeira do Calmon foi do momento em que eu enfiei o calcanhar na roda traseira
da bicicleta do Val (Florival). Havíamos saído em grupo, de bicicleta, para o
Catolé. Um tio materno, Manuel Góis, fazia parte. O Robson estava na garupa de
sua Monark. Eu era mais leve e fiquei na garupa do Val. Ele montava uma bicicleta Mercury, da irmã dele, Yara Barreiros. Alguns anos mais
velho, padecia de um membro inferior atrofiado, sequela de paralisia infantil. Brigão,
possuía braços fortes e um tronco avantajado e havia algo de radical na sua conduta.
Comigo ele era legal. Chamava-me até por um apelido, “Nonda”, que
eu havia adquirido numa escolinha para crianças. O “Nonda” era uma referência a
Epaminondas, goleiro do CSA na década de 50.
Naquela tarde, o pessoal resolveu voltar pelo
Tabuleiro. Era uma aventura. O
arrodeio era desnecessário, posto que do
Catolé alcançava-se Bebedouro facilmente, sem malabarismos geográficos. O fato
é que o estouvado do Val, ao chegarmos no topo da descida, gritou que eu devia
me segurar e pedalou ladeira abaixo. Apostava velocidade com os outros. Sua
deficiência, certamente, o compelia a competir de todas as formas. Desesperado,
tentei me segurar como podia. Foi nessa que enfiei o pé na roda. Ferida
feíssima que demoraria a cicatrizar...
Mais acima do ponto onde eu
estacionara, em direção ao Sanatório, havia uma casa (“terreiro”) onde se dançava xangô.
Muitas noites despertei sob o batuque desses rituais. Já estava taludinho
quando fui assistir a uma dessas “sessões”. Os amigos, um pouco mais velhos,
experimentaram do xequeté, uma mistura alcoólica, comum nos terreiros de
macumba. Com relutância o Pai de Santo permitiu que acompanhássemos o
desenrolar da sessão. Nunca me detive muito nessas lembranças. O que restou
foram mulheres de saias compridas dançando em roda. De vez em quando uma delas Incorporava
alguma entidade, rodava sobre si mesma e
era amparada pelas companheiras. O cabelo era solto e ela desaparecia do salão
de danças. Os comentários dos amigos seriam no sentido de uma suposta visita a
um altar instalado em um cômodo contíguo, sob a supervisão do Babalorixá.
Mas agora está mudado. Um asfalto
substituiu o barro. O sítio do meu amigo transformou-se num conjunto
residencial. O que ainda não mudou foi a visão da lagoa e a bonita fachada do “Asylo
das Órfãs”.
Enquanto descia vagarosamente a
Ladeira do Calmon, busquei mais retalhos da minha longa convivência no bairro.
Atravessei a linha férrea e vislumbrei, à esquerda, a Igreja Batista. Não posso
passar por essa construção sem me lembrar do pastor Plácido, um carrancudo
cidadão, cuja simpática filha Nancy era amiga das minhas irmãs. Mas foi ali,
sacrossanto sítio onde pastor Plácido pregava o evangelho, que o Major
Bonifácio, anos antes, associar-se-ia a amigos intelectuais e amantes das
tragédias gregas (seu Teles, seu Anísio Costa e outros) para fundar um teatro,
segundo consta no livro da escritora Ilza Porto sobre o avô Bonifácio.
A Rua José Bruno Ferrari, muito
familiar, posto que lá moravam a avó Moreninha e a tia Margarida, na minha
infância e adolescência denominava-se 25 de Dezembro. Passagem obrigatória para
quem desce a Ladeira do Calmon, é o traço de união entre a Rua Passos de
Miranda e a Praça Bonifácio Silveira. Sua continuidade na direção oeste terminava na casa construída pelo pioneiro Jacintho
Nunes Leite, anterior e lateral à
Matriz. Com o redesenho para ampliação da praça, o tráfego em frente à igreja foi interrompido. A Praça
tornou-se um prolongamento externo da igreja. Por isso, os veículos que descem
pela Ladeira do Calmon com destino ao Centro não podem seguir em frente
até à R. Cônego Costa, a rua principal
do bairro.
Houve um tempo em que o bonde elétrico era um dos meios de
transporte mais ativos do bairro. Sem que atentasse para o fato, testemunhei os
estertores desses veículos. Em Bebedouro, o bonde morreu aos poucos. Primeiro,
deixou de circular na Praça Bonifácio Silveira. Depois passaria a parar cada
vez mais distante da Matriz de Santo Antonio. Seus últimos terminais ocorreriam
nas “Mangueiras”, em frente à Vila Lilota, mansão da família Leão, hoje Clínica
de Repouso Dr. José Lopes de Mendonça.
Os bondes tiveram sua época
áurea. Durante as principais festas do ano, sobretudo no Natal, os “bondes de
Bebedouro” tiveram singular importância. Com efeito, durante cerca de duas
décadas, as festas promovidas pelo lendário Major Bonifácio Silveira eram o que
de melhor havia de festejos na capital e, provavelmente, no interior.
Descrevia-se a presença de caravanas até de outros Estados, atraídas pela
criatividade e animação nos folguedos.
Quando eu me entendi de gente,
havia no ar uma nostalgia, uma orfandade do Major Bonifácio Silveira. Há algum
tempo, busquei conhecer melhor o mítico festeiro. Ao debruçar-me na sua
história, deparei-me com outra figura que é pouco lembrada: Jacintho Nunes
Leite. De fato, Nunes Leite foi um imigrante português que por aqui aportou em
1860. Apaixonar-se-ia pelo arrabalde. Naquela época, havia águas correntes
claras e abundantes, como as do Rio Silva. O braço da lagoa era um manancial
aparentemente inesgotável de alimentos, sobretudo do sururu. Aliás, ainda
alcancei uma pesca abundante, ali mesmo nas margens da lagoa, perto da ponte. Bebedouro
era um sítio de muitas fruteiras, de clima agradabilíssimo, refrescado por
brisas suaves vindas do sul.
JNL era um empreendedor atento.
Graças a isso, o bairro sofreria profundas transformações. A começar pela
transferência do cemitério, primitivamente localizado na praça onde se situa a
Matriz. Não é fácil mudar esse equipamento. Afinal, restos humanos não podem ser tratados de qualquer jeito. Mas
o fato é que o ousado imigrante promoveria a mudança. Idealizador da primeira
fundição do Estado, garantiria os portões de ferro da nova necrópole.
Sob a influência de Nunes Leite,
a Matriz de Santo Antonio teria nova roupagem. As paredes internas da igreja
foram revestidas de azulejos de Portugal. Os velhos sinos seriam substituídos
por novíssimos, confeccionados na fundição do benemérito. Com loja na R. do
Comércio, colocou em Bebedouro uma fábrica de vidros e em Fernão Velho
instalaria o que viria a ser a Fábrica Carmen, de tecidos. Várias picadas
seriam abertas, desde a Cambona, para permitir a circulação de bondes por
tração animal, cuja concessão adquirira. Foi de sua iniciativa botar água
encanada em Bebedouro e no centro da cidade.
Politicamente, JNL era influenciado
pelos ideais abolicionistas. Comprava escravos e os alforriava, iniciativas que
causavam incômodo aos industriais da cana de açúcar. O fato de possuir uma
fundição à altura das necessidades do mercado, não era admoestado de forma
aberta. A casa mais emblemática do bairro foi construída por ele. Ainda está de
pé, bem conservada, habitada por um dos descendentes, na Praça Bonifácio
Silveira.
Com a morte de JNL, no segundo
decênio do século XX, a figura impressionante de outro abolicionista reluziria:
Bonifácio Magalhães da Silveira. Pernambucano de nascimento, cedo transferiu-se
com a família para Alagoas. Funcionário público, major da Guarda Nacional,
político, escritor, memorialista, ator, era, sobretudo, um “agitador cultural”.
Tratava-se de um festeiro nato. Na minha infância e adolescência conheci
pessoas que conviveram intimamente com o Major, como era chamado. Entre os
parentes de Bonifácio da Silveira cabe destacar seus irmãos Luiz, fundador da
Gazeta de Alagoas e Faustino, professor de matemática e pai da psiquiatra Nise
da Silveira.
A fama de
Bebedouro como um bairro de elite vem dessa época. Ainda não havia o
hábito da beira mar. Com a arrumada na casa promovida pelo industrial Nunes
Leite, o arrabalde passaria a chamar a atenção, justamente depois que o Major
decidiu retirar o bairro do “marasmo”. Bebedouro sairia da condição de simples
“corredor rodoviário” em direção ao interior e passaria a ser visto como um
polo de festejos, onde os folguedos eram interpretados e as pessoas podiam divertir-se
de forma sadia, com a comodidade de transportes por trilhos (bonde e trem) e
rodoviário. Não obstante, a via principal de acesso não ser calçada. Ainda
havia a opção fluvial, lacustre, desde o Porto das Balsas, na Levada.
Depoimentos de pessoas que
frequentaram as festas de Bebedouro referiram grandes dificuldades para se
conseguir alugar uma casa para permanecer no bairro durante esses períodos.
Datam do segundo decênio do século XX as construções das mansões no Mutange, quando
famílias mais abastadas ou erguiam esses casarões para morar definitivamente ou,
simplesmente, para veranear. O carro-chefe dos festejos de Bebedouro era o
Natal. O São João também era animadíssimo. Tudo leva a crer que os folguedos
carnavalescos eram partilhados com o centro da cidade. Havia os corsos, os
clubes sociais, os desfiles de escolas e os banhos de mar à fantasia. Era
difícil mesmo competir com tanta pluralidade.
Nasci na Rua Cônego Costa, 3863,
tendo o meu pai como parteiro. Aliás, todos os filhos nasceram em casa, sob a
assistência paterna. Minha avó materna, Moreninha, assumia o papel de
assistente. Alguns anos depois, fomos
morar vizinho ao Asilo Bom Conselho, no número 3703 da mesma rua, numa casa antiga do começo do século. Ficava
numa calçada alta. Três casas ocupavam essa elevação. Era uma espécie de cartão
postal do bairro. Havia também uma calçada alta em frente. Com essa disposição
topográfica ficava evidente que o morro
havia sido cortado para permitir a continuidade da via. Ao nosso lado morava um
casal de idosos, Olímpia e Pedro Fernandes. Na casa seguinte, meus padrinhos
Adalberto Cabral e Bilinha. Pedro Fernandes era chefe da estação. Adalberto era
um senhor elegante, trajava sempre terno branco. Tinha um alambique de cana. Meu
padrinho me brindava com cinquenta notas de um cruzeiro, anualmente, no dia do
meu aniversário. Pena ter morrido precocemente. Entre os moradores da calçada
alta de frente, recordo do sapateiro Pedro e a esposa, Marinita, professora de
um dos grupos escolares. Seu vizinho era uma família enorme, de onze filhos,
cujo chefe da casa era marceneiro. Exatamente de frente, ficava a casa de
Anísio Costa e dona Áurea, ele funcionário público aposentado, pai de duas
jovens muito gentis e alegres Dadá e Dena.
São poucas lembranças da casa
onde nasci. Das raras - é possível estar
enganado- quero crer que uma babá, Sra. A., generosa e espontaneamente, oferecia
os fartos seios para um trabalho de treinamento muscular oral do futuro
neurocirurgião. Esta moça, “negra como as asas da graúna”, muitos anos mais
tarde, seria minha cliente no Hospital Universitário. Ela era falante, exibida,
e terminava sempre contando para os meus alunos que havia sido minha babá.
Aguçava a curiosidade da estudantada ao relatar que eu era muito danado...
Covenientemente, A. evitava entrar em
pormenores “sórdidos”.
Na minha visão de criança, a nova
casa, vizinha ao Asilo, era grande.
Certamente mais espaçosa que a anterior. Mais iluminada por janelas laterais
que davam para o jardim. Tinha quatro quartos e uma varanda/jardim lateral
delimitada pelo paredão do Asilo. Lembro
bem do coqueiro central e do pé de jasmim colado ao muro da frente. Eu ficava
admirado como de uma árvore tão ressequida poderiam brotar flores tão
cheirosas... Minha mãe cultivava roseiras, mas as inclementes saúvas faziam
grande estrago. Um pequeno portão lateral mantinha a circulação entre a minha
casa e o colégio. O imóvel era alugado ao Asilo e tinha sido moradia do Monsenhor
Tobias, um educador muito influente. Capelão do colégio, era gago e um emérito
contador de anedotas nem sempre piedosas.
O quintal, que eu também achava
grande, terminava em outro muro do Asilo. Não tínhamos, pois, acesso à lagoa,
característica da maioria das casas situadas à esquerda da rua. Meu pai criava
galinhas e patos, consumidos pela família que aumentava a cada ano. A
preocupação de criar galinhas não era à toa. Naqueles dias, as mulheres no
puerpério faziam uma quarentena tendo o caldo de galinha como pièce de résistance.
Alguns passarinhos gorjeavam na nossa
varanda. Eram poucos, mas exigiam cuidados. Certo dia, a empregada, Maria das
Neves, descuidou-se e o sofreu de estimação nunca mais foi visto. Mesmo destino
tiveram dois galos de campina. Desta vez, o pai resolveu abrir as gaiolas. Com
toda certeza, passarinhos em cativeiro não eram o seu forte. Gatos também não
faziam sua cabeça.
Um vira-lata, Rex, teve seus momentos de
glória. Criado entre nós desde a mais tenra idade, era um policial miscigenado,
de abundante penugem negra e extremamente desobediente. Latia com estranhos, o
que parecia ser uma característica aceitável. Nas inúmeras brigas entre os
irmãos, Rex se agitava, latia, rosnava e, finalmente, tentava interferir na
contenda. O problema era que Rex só mordia a mim. Um detalhe nos entristecia:
Rex não era tão valente nas disputas com outros cães. Certa ocasião, cobrir-nos-ia
de particular vergonha: o cão do jornalista
e político JA, com quem meu pai mantinha insalubre distanciamento, deu uma
montada por trás no Rex, à moda dos cachorros. Por tudo, creio que Rex não nos orgulhava. Talvez essa
seja uma das razões que me fazem manter prudente distância de todo ser que
rosna, late e às vezes morde.
Nossa avó paterna, Docinha,
morava conosco. O marido, meu avô, Francisco Cavalcante de Mendonça (“Chico do
Brejo”), que não cheguei a conhecer, falecera aos cinquenta anos. O irmão mais
novo do meu pai, Breno, era uma espécie de nosso irmão mais velho. Habitávamos
o mesmo quarto, nosso tio, o meu irmão Robson, mais velho um ano e meio, e eu.
Nessa época, 1953-1954, já éramos sete filhos. Desses, cinco eram meninas. Meu
tio estudava no Colégio Guido onde meu pai era professor de Química.
O Asilo Bom Conselho tinha sido
fundamental na vida da minha mãe, Rosinha. Nascida em Atalaia, ficou órfã do
pai, Francisco Aureliano de Medeiros Cabral (um espirituoso rábula), aos quatro
anos. A apertada situação financeira da viúva a impeliria a internar duas
filhas no Bom Conselho. D. Rosinha passaria nove anos no Colégio. Foi a oradora
da turma. Provavelmente, pela primeira vez, sairia do Asilo Bom Conselho uma
turma com o título de “professora rural”. Até então, as meninas estudavam
português, matemática, história, geografia, francês... Aprendiam a costurar, a
bordar, cozinhar, lavar chão e jardinagem. Ao saírem não tinham onde trabalhar
a não ser como domésticas. A opção B seria tornarem-se amantes de algum nababo
até que a velhice as transformassem em peças descartáveis. O paraninfo da turma
da minha mãe foi o Dr. Ib Gatto Falcão.
Uma maneira que as alunas tiveram para demonstrar a gratidão pelo seu
empenho em formalizar o curso do Asilo.
Minha mãe pouco exerceu o
magistério. Não obstante sua natureza mansa, os anos de reclusão entre as
freiras provocariam algo de inaptidão para lidar com alunos. Faltava-lhe uma
certa dose de malícia. Breve, pois, foi sua passagem como professora na Usina
Brasileiro. Contou-me que numa ocasião os alunos foram queixar-se que um deles havia
lhes “dado dedos”. Eram gestos
desconhecidos, praticados num universo do qual ela não tinha a exata dimensão
do funcionamento. A aplicação como aluna do Asilo, contudo, não fora em vão.
Aprovada em um concurso para a LBA, livrar-se-ia das pequenas pornografias
infantis. Ao casar, a LBA seria página virada.. Voltaria aos estudos vinte anos
mais tarde, onde concluiria na UFal, com brilhantismo, um curso de Letras.
O que eu queria dizer é que esse
vínculo, essa gratidão em relação às freiras sacramentinas, suas mães, no
frigir dos ovos, perduraria intocável na alma da minha mãe. A professora de
piano, d. Magdalena Queiroz, por exemplo, foi a mesma que ensinou às minhas
irmãs mais velhas. Quando uma freira adoecia, meu pai era escalado para cuidar com consultas e com amostras grátis. A influência foi de tal
durabilidade que minha filha Lavínea e meu filho Carlos Eduardo terminariam o
curso secundário sob a égide das sacramentinas do Colégio Sacramento. É claro
que outros fatores pesaram. Na época, o Colégio Sacramento era um dos melhores
da cidade.
O que teria levado meu pai a
morar em Bebedouro é uma pergunta que amigos me fazem. Certamente não foi
atraído pelo dinheiro das “elites”. O bairro estava em decadência. Nascido em
Pilar, de tradicional família ligada aos engenhos de açúcar, o menino José Lopes passaria cinco anos
interno num colégio religioso: o Diocesano. Ao vir de Pilar para a capital,
morou inicialmente com um tio, dentista e dono de uma chapelaria no centro da
cidade. Tinha onze anos. Matriculado no Colégio Diocesano, poucos meses na casa
do parente produziram ojeriza de tal intensidade que decidiu pegar a balsa e fugir
de voltar ao engenho paterno. Não se afinara com os tios. Eles não menos com o
sobrinho. Estava decidido: não queria mais estudar. Diante da irredutibilidade
em voltar à casa do tio, o caminho era o internato.
Concluído o curso secundário, foi para Recife,
onde faria dois anos de complementar e o vestibular. O foco era a Medicina. Ao
pegar o trem, o pai o advertira: “Cuidado com o chapéu novo. Quando botar a
cabeça fora da janela, segure com as mãos!” Após doze horas de viagem, as
expectativas de uma nova realidade fariam o adolescente Juquinha, como era
chamado, esquecer as recomendações. Aos anúncios da chegada a Recife dentro de
poucos minutos, a curiosidade o impeliria a vislumbrar a nova cidade. Adeus,
chapéu. Matriculado no Carneiro Leão, morando numa pensão para estudantes,
economizar qualquer tostão para voltar para casa com um chapéu, era uma questão
de honra. Ao regressar em junho, sequer ousou arriscar colocar o apetrecho na
cabeça. O pai, meio desconfiado, enquanto batia suposto pó, comentaria: “Está
novinho. Não usou?” Juquinha teria replicado: “É que em Recife o pessoal está
abandonando esse costume”.
Foi aprovado no concorrido
vestibular para Medicina, de primeira. Sabia que não haveria uma segunda
chance. Em Recife, alguns fatos foram marcantes para meu pai: 1) Convocação para
servir o Exército em plena guerra, onde chegaria ao posto de cabo “padioleiro”;
2) A venda do engenho, uma ferida narcísica que nunca chegou a cicatrizar
completamente; 3) A doença do pai, que ele adorava, culminando com sua morte;
4) O casamento com minha mãe.
Estava cursando o quarto ano de medicina e gozava
férias, aqui em Maceió, quando o pai dele, meu avô, passou mal. Ele
diagnosticou que seu pai estava tendo um “Edema Agudo de Pulmão”. Em casa, sem
qualquer recurso, tentou uma “medida heroica”: a sangria. Cortou uma das veias
do braço do pai e salvou-lhe a vida. Meses depois, novo Edema Agudo se
instalaria. Apesar de socorrido, não teve a mesma sorte. A morte do pai
ensejaria sua baixa no Exército. O fantasma de ir para o front na Itália estava
afugentado.
Finalmente formado, a decisão de
morar em Bebedouro teria sido influenciada pelo fato da sogra, minha avó,
casada em segundas núpcias com um fiscal de renda, morar no bairro. Além disso,
não havia médicos na região. A circunstância do meu pai ter passado boa parte
do curso como interno na Maternidade de Olinda foi fundamental. Mesmo levando-se
em conta que os médicos eram mais bem preparados, fixar-se numa cidade de
interior (Bebedouro era quase isso) sem prática em obstetrícia, aterrorizava o
recém-formado.
E foi justamente isso que
aconteceu. Clínico Geral, médico da Casa de Saúde Miguel Couto, chefe do
Serviço de Verificação de Óbitos, meu pai era convocado com certa frequência
para fazer partos em residências. Geralmente para casos mais complicados que as
parteiras não conseguiam resolver. Alguns eram remunerados. A maioria, Deus os
pagava. De qualquer forma, foi uma vida muito rica do ponto de vista
humanitário. De manhã cedo, meu pai tinha o hábito de abrir a janela e dar uma
olhada na rua. Aquela salutar mania de deixar o ar da manhã entrar na casa...
Não há como afirmar que ele ficava surpreendido com a fila que se formava.
Pessoas de todas as idades, sobretudo mães com crianças nos braços. Minha mãe
contava que ele a chamava e dizia: ”Rosinha, veja isso! Que quantidade de gente
é essa? O que essas pessoas estão fazendo na minha porta a essa hora?”. Todos
sabiam o que elas queriam. Aí, o meu pai, mais uma vez, “surpreendia” minha
mãe. Depois de tomar um rápido café com dois ovos à la coque e de fumar um
Continental sem filtro, sentava no bureau que ficava no corredor da casa,
estetoscópio ao pescoço, e ia atendendo. Abria a gaveta de amostras, explicava
como fazer e recomendava: “Se não melhorar, volte amanhã”. Ninguém saía de mãos
vazias. O melhor da festa: tudo de graça.
Estava, há algumas linhas, em
1953-1954. Chegara, enfim, a idade de aprender a ler. A alguns metros da nossa
casa, uma distinta senhora mantinha uma escolinha. Entramos os três irmãos mais velhos, Rosinete,
o Robson e eu. A professora dava aulas
em casa. Havia um oratório bonito na sala onde funcionava o curso. Uma peça de
madeira anexa era o genuflexório. Creio que nos momentos de enlevo espiritual
nossa mestra ali prosternava-se compungida. Durante as aulas, a temida mestra era
partidária de técnicas pedagógicas, digamos, mais ortodoxas, premedievais, se vocês
me entendem. Era criativa. O
genuflexório que testemunhava seus emocionados encontros com Nossa Senhora,
recebia uma cobertura de feijão ou milho, onde os alunos (crianças de 5-8 anos)
iam pagar seus pecados, expiar suas culpas, ajoelhados sobre o milho ou o
feijão. Não me lembro se alguma vez fui aquinhoado. Meu irmão Robson, com
certeza. Um dos mimos que recebi da minha primeira professora foi ser chamado
de “Olho de Pitomba Lambida”. Tenho zero de trauma disso. Quem não gostou de
saber dessas coisas foi o nosso pai. Retirou-nos da escolinha. Não fora esse
regime de terror, eu até gostava. Jogava bola nos intervalos. Era o goleiro.
Com um pouco mais de cinco anos fiz uma defesa tão complicada que fui chamado
de “Nonda”, referência ao grande goleiro Epaminondas, conforme aludi
anteriormente. “Nonda” duraria mais que o “Olho de Pitomba Lambida”.
Bebedouro da minha infância tinha
dois Grupos escolares muito conhecidos, o Rosalvo Ribeiro e o Alberto Torres,
mas não os frequentamos. Depois que saímos da escolinha, passaríamos a estudar
em casa. Minha mãe e minha avó, Docinha, tiveram a incumbência de nos treinar
em leituras, cópias, ditados e nas operações aritméticas. Não demos vexame. Em
1954, aos 6 anos, meu pai nos matriculou no Diocesano. Lembro dele na sala da
diretoria conversando com o Irmão Nestor, diretor do colégio. Queria um
desconto nas mensalidades. Recordo de dois argumentos. Num deles, papai dizia que
era ex-aluno interno do colégio . O outro argumento referia-se ao fato de estar
matriculando dois alunos. Passaria pela minha cabeça, em caso de
irredutibilidade do diretor em conceder a bonificação, se meu pai iria desistir
de nos matricular. Não me recordo se o desconto foi dado. Provavelmente, sim.
O orçamento doméstico era apertado. Com o
devido respeito, meu pai era um reprodutor incansável. Um dos objetivos da
abundante prole (estou presumindo) seria equilibrar a quantidade de filhos
homens com as filhas mulheres. Por insondáveis caprichos da natureza, a cada novo
parto espirrava uma menina. Teve onze filhos, três do gênero masculino. Não
possuíamos automóvel. Somente em finais de 1958, treze anos após a formatura,
foi que meu pai adquiriu um Jeep, cuja placa era 53-57. Ainda hoje encontro
pessoas que fazem referência a esse veículo. O que chamava a atenção era a
quantidade de crianças e adolescentes. Minha irmã mais velha ocupava o banco da
frente. Eu e o Robson ficávamos nas “latas” laterais e quatro irmãs mais novas
ficavam apertadas no banco traseiro. A coisa ficaria melhor dois anos depois,
com a aquisição de uma Rural. O velho estava prosperando.
Em 1958 ocorreria uma grande
guinada na vida profissional do meu pai. Surgiu a oportunidade de uma
especialização em Psiquiatria. Conforme assinalei, ao morar em Bebedouro, seria
contratado para trabalhar na Casa de Saúde Miguel Couto. Era um hospital
psiquiátrico que ficava a duzentos metros de nossa casa. O frenocômio
pertencera ao Dr. Pedro Bernardes, que se transferira par Minas Gerais. A
denominação primitiva era Santa Juliana (suposta padroeira dos loucos).
Inicialmente, fora arrendada ao psiquiatra Mário Morceff, um migrante mineiro
meio descapitalizado, que terminou adquirindo o imóvel. Consta ter sido o seu
sogro, Dr. Chaves, com seus infindáveis coqueirais nos Morros de Camaragibe, o
poderoso avalista da negociação.
O fato é que aqueles anos de
trabalho e convivência com doentes mentais tinham dado ao meu pai uma
respeitável vivência na área da Psiquiatria. O curso patrocinado pelo Serviço
Nacional de Doenças Mentais encaixava-se como uma luva nos seus anseios. Havia
alguns obstáculos. Naquele 1958 éramos nove filhos. Minha avó Docinha falecera
dois anos antes e meu tio Breno assumira um emprego no Banco do Nordeste, em
Mata Grande. Uma solução encontrada para ajudar minha mãe a administrar a
“rebelde ninhada” foi apelar para Vovó Moreninha, mãe de mamãe, que se
transferiu com malas, bagagens e o marido, o “Velho Góis”, a essa altura fiscal
de rendas aposentado.
Meu pai colocou todas as despesas
no papel. Até a pequena inflação da época entraria nos cálculos. Contava com a
pequena reserva em caso de gasto imprevisto.
Os salários de dois empregos foram mantidos. No Rio, ele viveria de uma
bolsa patrocinada pelo Ministério da Saúde e moraria no próprio hospital de
Engenho de Dentro. Foram quase seis
meses de ausência. Houve um pungente esforço para manter a casa em ordem
através de longas cartas. Escrevia individualmente para cada filho e nós
escrevíamos pelo menos duas cartas por mês. Para minha mãe, eram longas e
apaixonadas que ela as lia solitariamente e não permitia que nenhum filho,
mesmo os mais curiosos, as acessassem. Meu pai tinha um bom texto e, a despeito
da carranca e de proverbial mau humor, sabia ser romântico. Eles se amavam
muito.
Um tio paterno, Ruy Mendonça, que
também, quando solteiro e mais jovem, tinha morado conosco, ligadíssimo ao meu pai, também dava
uma cobertura periódica para ver como as coisas estavam. As preocupações
maiores eram justamente em relação aos três filhos mais velhos, máxime Robson e
eu. Nos finais de semana, nosso tio nos levava para sua casa, no Farol, “para
dar uma aliviada em casa”. Ruy Mendonça tinha excentricidades, sobretudo
gastronômicas. Depois de almoçarmos uma montanha de comida, ele nos convidada ao
pós pasto. Geralmente bananas. Ele próprio um glutão sacramentado, impelia-nos
a comer algumas bananas anãs à guisa de sobremesa. Dentre suas preocupações,
constava a com nosso pai, que ao
retornar, não nos encontrasse magros, abatidos, sinalizando, talvez, que
havíamos passado fome na sua ausência. Decididamente, um excêntrico, aquele
nosso tio.
Apesar de toda vigilância,
durante os meses de ausência paterna tivemos mais folga para “maloqueirarmos”
pelo bairro. Começamos a nos entrosar mais nas peladas, nas andanças ao banho
do Né Fragoso, nos jogos de ximbra, piões, e até em alguns jogos de azar
apostando castanhas (compradas). Um amigo do meu tio Manuel Góis tinha uma
roleta e nos “roubava” os trocados que conseguíamos adquirir, nem sempre por
meios lícitos, em casa. Nesse aspecto, nossa mãe não era tão cuidadosa, posto
deixar algumas moedas dando sopa sobre os armários. Aos sábados, Bebedouro
tinha uma feira muito animada. Com 10-11 anos, tinha o compromisso de comprar
farinha e mais algumas pequenas coisas. O macete era ir no final da feira,
quando os comerciantes baixavam os preços. O que eu conseguia de abatimento ia
para a “caixinha” pessoal.
Na infância e adolescência, nunca
tivemos dinheiro fácil. Na época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson
e eu recebíamos, cada um, cinco cruzeiros. Desses, sobrava apenas um cruzeiro.
Não havia dinheiro para o lanche. Levávamos no bolso um pão, cujo recheio
variava da manteiga com açúcar ao doce batido de banana. Raramente queijo. Não
nego que ficava me lambendo quando via as filas na hora do recreio do Colégio
para comprar sanduiche na lanchonete dirigida pelo Irmão Silvino, tendo como
balconista um garoto um pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”. (Esse
rapaz, era uma “cria” do colégio. Estudava à noite na Escola Padre Champagnat,
educandário gratuito que os maristas mantinham. Anos mais tarde, “Cabeleira”
seria o dono da cantina no novo Colégio Marista, da Antonio Brandão).
Não raramente, gastávamos o
dinheiro do transporte para comprar um daqueles sanduiches de mortadela, regado
a uma Crush, que ao paladar dos meninos que éramos, tinham o gosto do néctar e
da ambrosia. Estarmos lisos em pleno meio-dia na Praça dos Martírios, esperando
uma carona, não era um grande drama. Era difícil não passar alguém com destino
a Bebedouro. Aguardávamos no início da General Hermes. Nossas esperanças de não
voltar a pé para casa, concentravam-se, sobretudo, nos caminhões vazios, dirigidos por conhecidos do bairro.
Na curva para entrarem na General Hermes, reduziam consideravelmente a
velocidade, permitindo que galgássemos a carroceria. Ficamos craques: jogávamos
nossas bolsas, segurávamos na grade e apoiávamo-nos nos pneus (em movimento
lento). Logo estávamos sorridentes na carroceria gritando: “Chame”.
Certa feita, coincidiu de minha
mãe presenciar essas manobras e ficou estarrecida com o que viu. Talvez Deus
naquela época nos protegesse mais.
Havia uma certa decepção materna
quando chegávamos com o pão amassado e intacto no bolso, que ela embalara com
carinho. Por que não confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas
almas suburbanas por não termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar
aquele pão maltratado, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos
humilhava um pouco. Talvez por isso compensássemos nossa “tragédia” financeira
sendo ótimos alunos.
Com efeito, durante os primeiros anos de
colégio não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a estudar à tarde. A
boa memória sempre foi nossa aliada. À
noite, sabíamos que iríamos enfrentar o doutor Zé Lopes, nem sempre no seu
melhor fair play. Com ele não havia mais ou menos. Ou as lições estavam na
ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos muito cedo) só depois de repetir
“timtim por timtim, até o fim”. Ainda havia aquelas poesias quilométricas que
nos cabiam decorar para recitá-las nas sessões do grêmio...
Volto agora ao primeiro dia no
Colégio Diocesano. Depois da etapa do choro paterno, encaminhamo-nos eu, meu
irmão Robson e meu pai até a sala do Irmão Pedro, um “velhinho” que era o
mestre de classe do segundo ano primário. Os conhecimentos de casa foram
testados e aprovados. O casulo estava se abrindo. Não me lembro se já tinha
usado calça comprida. O sapato era especial feito por um sapateiro, sr. ML, um cidadão
prenhe de caretas esquisitas, que
frequentava o consultório do velho. No bico e no salto eram colocadas chapas de metal. Havia a crença de que o
sapato duraria mais... Um entrevero marcaria o primeiro dia de aula. Dois
matutinhos de Bebedouro num colégio grande causavam um certo impacto. Talvez
por isso, o pai resolveu nos apanhar dentro do colégio, na sala de aula.
Seguimos então para a porta principal. Meu pai na frente, o Robson atrás. No
meio, eu. De repente, ao atravessarmos o campo de futebol (com os tradicionais
oitizeiros) um menino me calçou. Um provocador. Acho que foi a última vez que
ele cometeu essa gracinha. O Robson agarrou o camarada e em dois segundos ele
estava no chão e o Robson, se preparando para aplicar uns corretivos. Toda
aquela malandragem precocemente apreendida da molecoragem bebedourense
eclodiria. Não fora a interferência de papai, que ao virar-se deparou-se com
aquela cena tragicômica, a venta do menino iria sofrer.
Acho que, em 1954, Bebedouro
passaria por uma grande transformação com a chegada do Padre Fernando Iório
Rodrigues, substituindo o velho pároco, padre Belarmino. Iório daria uma nova
vida ao bairro. Sua influência foi além dos umbrais da Matriz de Santo Antonio.
As homilias tinham a grife do intelectual diferenciado. Renovaria a
participação dos fiéis na Congregação Mariana, nas Filhas de Maria, na Cruzada Eucarística... Um alto-falante
reverberava além da Praça. Procissões ocupavam as ruas do bairro nas
comemorações sacras. Nessas alegorias destacava-se a figura de Domingão, um agigantado negro enfatiotado,
fita azul ao pescoço, símbolo da piedosa Congregação Mariana. Padre Fernando
não parava de puxar o coro com abaritonada voz. Era também rotina ouvirem-se, a
partir da Matriz, hinos de exaltação à pátria e ao Estado nas efemérides
oficiais. Deve-se ao Padre Iório, depois consagrado bispo de Palmeira dos
Índios, a criação do Ginásio Santo Antonio. Modesto, mas de basilar importância.
Os Natais reviveriam o lendário
Bonifácio Silveira. Pastoril animadíssimo marcaria aqueles inesquecíveis dezembros.
Despontante adolescente, investiria parte das minhas parcas economias chamando
“em cena” uma serelepe primeira pastora do azul, para fixar em suas incipientes
protuberâncias mamilares notas de um cruzeiro, cunhadas com a severa
figura do Marques de Tamandaré. Os
hormônios já começavam a impor transformações no corpo e na alma do ex-seminarista. Despedia-se o tempo da
inocência.
Durante muitos anos o transporte
coletivo de Bebedouro era uma tragédia. Enquanto o Farol e a Pajussara eram
servidos por uma frota de primeira qualidade, nosso bairro era castigado por refugos.
Na época em que não havia calçamento, em diversas ocasiões tivemos que mudar de
ônibus porque o que nós viajávamos atolava no lamaçal por prosaica falta de
força. Muitos coletivos eram munidos de um fragmento de madeira preso na
alavanca da marcha. A função era apoiar no tablado para evitar que “saltasse de
marcha”. Um dos proprietários (havia vários), por conta dos sucessivos enguiços
no seu veículo, ganhara o sugestivo apelido de “Arroela”.
Aos poucos esse item foi
equacionado. Os irmãos Calheiros durante um certo período dominaram esse
segmento e ofereciam mais segurança e conforto. Também coincidiu com a
conclusão do calçamento, velha aspiração, que teve no lendário coronel Lucena
Maranhão, eleito prefeito de Maceió, um grande executor. Tenho a impressão de
que Maranhão faleceu antes da conclusão das obras. A comunidade não esqueceu
seu nome.
Nas folgas, principalmente nas
férias, nossa vida era bater bola. Na época das frutas, em dezembro,
eventualmente, aventurávamos saltar muros de sítios para roubar mangas e cajus.
Subir em árvores não era nosso pendor. As poucas vezes que tentei subir em
coqueiro tive que amargar um belo arranhão na barriga. Vez ou outra chegava
algum estranho na nossa casa reclamando que havíamos invadido seus territórios.
Disposto a arcar com os prejuízos, embora envergonhado, meu pai perguntava se
os filhos dele estavam sozinhos. E se ele (o reclamador) já tinha ido na casa
dos outros pais... O velho não achava
graça nessas traquinagens dos filhos.
A partir de um dado momento não
podíamos mais jogar num largo atrás do mercado. Havia muita reclamação dos
moradores. Vidraças eram quebradas, palavrões impublicáveis eram ditos sem a
menor cerimônia. De repente descobrimos uma clareira bem no coração da “Mata
dos Leões”. O “Sete Lobão” era um campinho
horrível. Irregular, em forma de bacia, tinha um chão áspero, que mesmo para os nossos pés acostumados a
ficar descalços produziam desagradável queimação noturna, pelo desgaste da
planta dos pés. Verdadeira lixa. Mas foram rachas inesquecíveis. Durante muito
tempo joguei de goleiro. Posição ingrata, sobretudo porque a bola era de
borracha. As mãos saíam ardidas. Pior quando a bola pegava em cheio no corpo...
Crescia a olhos vistos. Já
conseguia tocar no travessão. Cheguei a titular do Juventus e até disputei
algumas partidas pela segunda divisão, no campo do Mutange. À medida que as
responsabilidades aumentavam como goleiro, crescia a angústia dos entardeceres.
É que a miopia em um dos olhos criava um grande problema com a queda da
luminosidade. Numa das vezes nosso time foi jogar na Usina Uruba.
Estávamos com uma vantagem
apertada no placar quando o juiz (local) deu uma “patriotada” marcando uma
falta, no mínimo duvidosa, bem perto da grande área, frontal. Já fazia algum
tempo que o sol escondera-se. Via sombras. Fechada a barreira, o sujeito resolveu
chutar em minha direção. Vislumbrei aquela sombra escura aproximando-se. Só
podia ser a bola. Encaixei, mergulhei por sobre a rala grama e demorei-me
deitado por sobre a bola ganhando tempo. Enquanto isso, meus companheiros
cercaram o árbitro exigindo o final da partida. Saí quase carregado. Seria a
última vez que joguei de goleiro. Passei a ser centroavante, posição que já ocupava
no time de baixo (“segundo quadro”).
Estudava de manhã e à tarde
secretariava meu pai na Clínica. Desde 1962 fomos morar na Lilota. Era uma
mansão construída durante a Primeira Guerra Mundial, sobrevivente da “Era de Ouro”
do Bebedouro do Major Bonifácio Silveira. Fora habitada por D. Iaiá Leão. Com
seu falecimento a casa ficara vazia, não obstante bem cuidada por um prestimoso
funcionário, seu Lima. Dois anos antes, houvera uma transformação. Com a
confiança e a formalidade de um diploma de especialista, meu pai dedicava-se
cada vez mais à Psiquiatria. Já não fazia mais partos. Seu canto de cisne como
parteiro foi em casa, partejando a filha caçula, Maria de Fátima. Durante anos
a fio, sempre que tinha oportunidade, descreveria as dificuldades desse
nascimento. Nomeava a apresentação do concepto e as manobras obstétricas que
tivera que realizar para o êxito do procedimento. Mãe e filhas salvas e sadias.
Uma coisa que me emociona até hoje.
Como dizia, em 1960, meu pai
instalou uma pequena clínica psiquiátrica na Av Major Cícero de G. Monteiro
2079, no Mutange. Sua fama de bom psiquiatra e zeloso dono de hospital cresceu
rapidamente. Em pouco tempo a Clínica chegaria ao limite de sua capacidade:
quarenta pacientes. Urgia mudar-se. Foi quando surgiu a opção de compra da Lilota. A bem da verdade, um sonho quase
impossível. Papai prestava serviços a graduados funcionários da Usina Leão, o
que facilitaria a negociação.
Aos poucos, Bebedouro ia ficando
para trás. Deixaríamos de frequentar o Clube 29 de Junho, com seus animados
bailes de Carnaval, com suas quadrilhas puxadas pelo polivalente Né Fragoso,
onde as primeiras paqueras desenharam-se. Nem só de 29 de Junho vivia
Bebedouro. Incursionávamos pela Chã e o Flechal. Não conseguia me aproximar de
nenhuma garota. Com imerecida fama de rico (e de garanhão) era mal visto pelos
pais das mocinhas, que recomendavam manter distância desse “perigoso playboy”.
A partir de determinado momento
passamos a frequentar as festas de Carnaval da Fênix e do Iate. Era outro
departamento. Dos discos de Claudeonor Germano no 29 de junho, passamos a ter o
cantor ao vivo, sob a frenética musicalidade da orquestra Marajoara do Recife.
No Iate, eram os famosos Fausto e
Passinha. Show de bola. Não obstante, continuava um bicho do mato, arredio,
desconfiado. Sem convivência com as meninas, também tive dificuldades na hora
das danças e das paqueras. Ficava mais à vontade nos cabarés de Jaraguá. Cheio
de moral pelos serviços prestados, o velho, depois de muitas cantadas, deixava
que eu dirigisse sua Rural. Havia uma rota: Bar do Chopp, onde encontrava
colegas do colégio, regado a Ron Montilla, e lá pras onze horas o puteiro de Jaraguá.
Confesso que nem sempre transava. Começava a ter o critério de seleção. Até
pelo fato de não exagerar na bebida. Ou seja, as mulheres feias e sem graça
continuavam feias e sem graça.
Ao começar a estudar medicina,
divorciei-me quase completamente do meu querido bairro. Lá voltei poucas vezes,
apenas para matar saudades num racha tradicional de Ano Novo, nas dependências
do balneário do seu Né Fragoso. Registro, com tristeza, que seu famoso banho
acabou. A límpida água deixou de escorrer. Há quem diga que o desmatamento à
montante decretou o fechamento dos delicados mananciais que alimentavam a
“piscina do velho Né”.
A separação não quis significar
abandono. Sirvo meu bairro, meus amigos de infância e seus familiares como
médico. Carrego nos ombros e na alma responsabilidades intransferíveis. Tento
mimetizar (sem as suas competências) os trabalhos comunitários que meu velho
pai fazia voluntariamente. Esforço-me retribuir, com os limites dos meus
conhecimentos, os inolvidáveis momentos vividos naquele recanto, que me viu
nascer e crescer.
Maceió, 25 de abril de 2014
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