Muitos sábados de antigamente foram muito diferentes dos de hoje. Houve
um período em que levei o Roninho e o Duda para comermos acarajé ali na
curva do Gogó da Ema. Os dois eram
crianças. Na verdade, o Roninho era um pré adolescente e o Duda ainda
garotinho.
Detonávamos acarajés pra caramba. Ríamos muito. Lembro de uma
história em que se dizia que o Batista Cortez (árbitro de futebol e CSA
doente) supostamente havia desmaiado de emoção com um gol do centroavante Clóvis. Nesse dia, o Cortez estava de bandeirinha.
Tinha
uma certa aproximação com ele no velho HPS onde ele trabalhava na
administração do hospital. Estávamos sentados na calçada do "Alagoinha",
eu o Duda e Roninho quando o BC estava atravessando a rua em nossa
direção. Rapidamente sintetizei essa história, antes que ele se
aproximasse. Apenas o tempo do cumprimento e do convite para ficar
conosco dividindo uma cerveja.
Os meninos não conseguiam parar de
sorrir. Instado a relatar o episódio, BC não negou o sangue azulino que
corria em suas veias. Contudo, disse-nos ele, nunca havia desmaiado. Foi
um escorregão, nada mais.
Houve também um período em que íamos para a
lagoa. Os meninos eram loucos para esquiar... Subitamente as crianças
cresceram. Os monótonos passeios com o pai haviam perdido um pouco a
graça. (Meu Deus! Por que nossas crianças crescem?)
Mas como dizia a
propaganda: "O mundo gira e a Lusitana roda". Meu pai enviuvara e
começou a me solicitar aos sábados. Em torno do meio-dia ele ligava: "E
aí, rapaz, vc vem ou não? A cerveja está gelada, seus bifes à milanesa
estão prontos e o charque na medida..."
Daí a pouco, após as visitas aos
pacientes da Santa Casa, estava um quase cinquentão batendo papo com um
setentão. Que tardes maravilhosas! Meu pai, Zé Lopes, quase não bebia.
Eu tomava as cervejas enquanto sorvia as suas recordações, as suas suas
histórias fascinantes. Oh pai, como eu amava o senhor. Minhas saudades e
minha singela homenagem.
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
ESTELA E EVA
Estela e Eva
Ronald Mendonça
Membro da AAL.
Nas minhas limitações
bebedourenses, quero, algumas vezes, considerar o Gênesis uma das mais
criativas obras de ficção científica de que se tem notícia.
Cresci entre pouquíssimos
brinquedos, salvo uma bicicleta aos onze anos e umas duas ou três couraças
número 3 (numeração que chegava até o cinco). Vivia entre livros. Não eram
tantos. Dava para ler alguns várias vezes, até quase decorar.
Matéria obrigatória no velho
Colégio Diocesano, História Sagrada, ou Religião, fez parte desse cabedal de
literatura consultada. Digo a vocês sem orgulho ou mágoa, ainda hoje lembro em
que posição estavam, nas páginas, determinadas figuras. Havia pois, algumas
ilustrações: a de Noé conferindo o embarque de elefantes e leões me era
particularmente cara.
Eu pensava, com os botões dos meus
oito anos, como esses animais eram obedientes... Imaginei que seriam de algum
circo que andava ali nas redondezas. Noé aproveitara e os colocou na “Arca”,
para enfrentar o Dilúvio prenunciado.
A figura de Eva com a sua nudez recoberta por longos cabelos... A
inacabada Torre de Babel, o gigante Golias levando uma pedrada de Davi... A
travessia do Mar Vermelho tinha uma ilustração que valia por mil palavras.
Assim como a da manjedoura, que abrigou o
Menino, com os Reis Magos em atitude de adoração...
Infelizmente, a gente cresce. É
uma lástima. Bem que eu poderia continuar crendo que Eva foi minha avó. A
propósito, a expulsão de Adão do Paraíso tinha uma ilustração pungente.
Cabisbaixo, humilhado, murcho, o casal atravessaria os portões do Éden depois
de ouvir um sermão daqueles.
Durante anos fui torturado pela
desobediência de Eva, pela transgressão de Adão. Que serpentezinha sacana! Que
tempos! Uma serpente falava e ninguém desconfiava que era o Satanás?
Deus é testemunha. Não quero
ofender aos que creem nessas histórias. É mais ou menos o que escuto alhures sobre nossa presidente. O que haveria de
verdade nessa guerrilheira? Será que alguém ainda acredita que ela queria, ao
assaltar bancos e residências, derrubar os milicos e devolver a “normalidade
democrática” ao País?
Onde está a pureza de “Estela” ao
permitir, na Casa Civil, vilanias praticadas por Erendina et filii? Em que Céu,
em que estrela se escondeu a badalada gerentona ao autorizar a compra de uma
refinaria em Pasadena? Ser eleita com dinheiro desviado dos cofres públicos beatifica alguém?
terça-feira, 4 de agosto de 2015
VADIAS MEMÓRIAS DE UM SUBURBANO
Bebedouro
Vadias Memórias
De Um Velho Suburbano
Ronald Mendonça
A Ladeira do Calmon, onde me encontrava desfrutando do
magnífico por do sol, estava muito diferente daquela que minhas “cansadas
retinas” guardaram. Naqueles tempos, um extenso e profundo sulco marcava o
barro vermelho da ladeira. Nos períodos de chuva, os carros tinham dificuldade
de transitar. Quero crer que poucos moradores
hoje conhecem aquele cume como o “Alto do Urubu”. Logo abaixo, à direita de
quem desce, havia uma mata rala com escassas jurubebas e algumas plantas
enfezadas que serviam de esconderijo para nossas brincadeiras de “mocinho e
bandido”. Meu irmão Robson e eu, por conta de um amigo, Vânio Calheiros, que
morava vizinho a este matagal, de vez em
quando íamos lá brincar.
Uma das minhas lembranças da Ladeira do Calmon foi do momento
em que eu enfiei o calcanhar na roda traseira da bicicleta do Val (Florival).
Havíamos saído em grupo, de bicicleta, para o Catolé. Um tio materno, Manuel
Góes, fazia parte. O Robson estava na garupa de sua Monark. Eu era mais leve e
fiquei na garupa do Val. Ele montava uma
bicicleta Mercury, da irmã dele, Yara
Barreiros. Alguns anos mais velho, padecia de um membro inferior atrofiado,
sequela de paralisia infantil. Brigão, possuía braços fortes e um tronco
avantajado e havia algo de radical na sua conduta. Comigo ele era legal. Chamava-me até por um apelido, “Nonda”, que
eu havia adquirido numa escolinha para crianças. O “Nonda” era uma referência a
Epaminondas, goleiro do CSA na década de 50.
Naquela tarde, o
pessoal resolveu voltar pelo Tabuleiro. Era uma aventura. O arrodeio
era desnecessário, posto que do Catolé alcançava-se Bebedouro
facilmente, sem malabarismos geográficos. O fato é que o estouvado do Val, ao
chegarmos no topo da ladeira, gritou que eu devia me segurar e pedalou ladeira
abaixo. Apostava velocidade com os outros. Sua deficiência, certamente, o compelia
a competir de todas as formas. Desesperado, tentei me segurar como podia. Foi
nessa que enfiei o pé na roda. Ferida feíssima que demoraria a cicatrizar...
Mais acima do ponto onde eu estacionara, em direção ao
Sanatório, havia uma casa (“terreiro”)
onde se dançava xangô. Muitas noites despertei sob o batuque desses rituais. Já
estava taludinho quando fui assistir a uma dessas “sessões”. Os amigos, um
pouco mais velhos, experimentaram do xequeté, uma mistura alcoólica, comum nos
terreiros de macumba. Com relutância, o Pai de Santo permitiu que
acompanhássemos o desenrolar do culto. Nunca me detive muito nessas lembranças.
O que restou foram mulheres de saias compridas cantando e dançando em roda.
Acho que movimentavam os braços para cima. De vez em quando uma delas “incorporava”
alguma entidade, rodava sobre si mesma e
era amparada pelas companheiras. O cabelo era solto e ela desaparecia do salão
de danças. Os comentários dos amigos seriam no sentido de uma suposta visita a
um altar instalado em um cômodo contíguo, sob a supervisão do Babalorixá.
II
Mas agora está mudado. Um asfalto substituiu o barro. As
adjacências da casa do meu amigo transformaram-se num conjunto residencial. O
que ainda não mudou foi a bela e nostálgica visão da lagoa e a bonita fachada
do “Asylo das Órfãs”.
Enquanto descia vagarosamente a Ladeira do Calmon, busquei mais
retalhos da minha longa convivência no bairro. Atravessei a linha férrea e
vislumbrei, à esquerda, a Igreja Batista. Não posso passar por essa construção
sem me lembrar do pastor Plácido, um carrancudo cidadão, cuja simpática filha,
Nancy, era amiga das minhas irmãs. Mas foi ali, sacrossanto sítio onde pastor
Plácido pregava o evangelho, que o Major Bonifácio, anos antes, associar-se-ia
a amigos intelectuais e amantes das profanas tragédias gregas (seu Teles, seu
Anísio Costa e outros) para fundar um teatro, segundo consta no livro da
escritora Ilza Porto sobre o avô Bonifácio.
A Rua José Bruno Ferrari, muito familiar, posto que lá
moravam a avó Moreninha e a tia Margarida, na minha infância e adolescência
denominava-se 25 de Dezembro. Hoje, via obrigatória para quem desce o Calmon, é
o traço de união entre a Rua Passos de Miranda e a Praça Bonifácio Silveira.
Sua continuidade na direção oeste terminava
na casa construída pelo pioneiro Jacintho Nunes Leite, anterior e lateral à Matriz. Com o redesenho
para ampliação da praça, o tráfego em
frente à igreja foi interrompido. O logradouro tornou-se um prolongamento
externo do templo. Por isso, os veículos que descem pela Ladeira do Calmon com
destino a Maceió não podem seguir em frente pela Passos de Miranda até à R.
Cônego Costa, a rua principal do bairro.
Houve um tempo em que
o bonde elétrico era um dos meios de transporte mais ativos do bairro. Sem que atentasse
para o fato, testemunhei os estertores desses veículos. Em Bebedouro, o bonde
morreu aos poucos. Primeiro, deixou de circular na Praça Bonifácio Silveira.
Depois, passaria a parar cada vez mais distante da Matriz de Santo Antonio.
Seus últimos pontos finais ocorreriam nas “Mangueiras”, em frente à Vila
Lilota, mansão da família Leão, hoje Clínica de Repouso Dr. José Lopes de
Mendonça.
Os bondes tiveram sua época áurea. Durante as principais
festas do ano, sobretudo no Natal, os bondes de Bebedouro tiveram singular
importância. Com efeito, durante cerca de duas décadas, as festas promovidas
pelo lendário Major Bonifácio Silveira eram o que de melhor havia de festejos
na capital e, provavelmente, no interior. Descrevia-se a presença de caravanas
até de outros Estados, atraídas pela criatividade e animação nos folguedos.
Quando eu me entendi de gente, havia no ar uma nostalgia, uma
orfandade do Major Bonifácio Silveira. Há algum tempo, busquei conhecer melhor
o mítico festeiro. Ao debruçar-me na sua história, deparei-me com outra figura
que é pouco lembrada: Jacintho Nunes Leite. De fato, Nunes Leite foi um
imigrante português que por aqui aportou em 1860. Apaixonar-se-ia pelo arrabalde.
Naquela época, havia águas correntes claras e abundantes, como as do Rio Silva.
O braço da lagoa era um manancial aparentemente inesgotável de alimentos,
sobretudo do sururu. Por sinal, ainda alcancei uma pesca abundante, ali mesmo
às margens da lagoa, perto da ponte. Bebedouro era um sítio de muitas
fruteiras, de clima agradabilíssimo, refrescado por brisas suaves vindas do
sul.
JNL era um empreendedor atento. Graças a isso, o bairro
sofreria profundas transformações. A começar pela transferência do cemitério,
primitivamente localizado na praça onde se situa a Matriz. Não é fácil mudar
esse equipamento. Afinal, restos humanos não podem ser tratados de qualquer jeito. Mas
o fato é que o ousado imigrante promoveria a mudança. Idealizador da primeira
fundição do Estado, garantiria os portões de ferro da novel necrópole.
Sob a influência de Nunes Leite, a Matriz de Santo Antonio
teria nova roupagem. As paredes internas da igreja foram revestidas de azulejos
de Portugal. Os velhos sinos seriam substituídos por novíssimos, confeccionados
na fundição do benemérito. Com loja na R. do Comércio, JNL colocou em Bebedouro
uma fábrica de vidros e, em Fernão Velho, instalaria o que viria a ser a
Fábrica Carmen, de tecidos. Várias picadas seriam abertas, desde a Cambona,
para permitir a circulação de bondes por tração animal, cuja concessão adquirira.
Foi de sua iniciativa botar água encanada em Bebedouro e no centro da cidade.
Politicamente, JNL era influenciado pelos ideais
abolicionistas. Comprava escravos e os alforriava, iniciativas que causavam
incômodo aos industriais da cana de açúcar. O fato de possuir uma fundição à
altura das necessidades do mercado, inibia retaliações de forma mais aberta. A
casa mais emblemática do bairro foi construída por ele. Ainda está de pé, bem
conservada, habitada por um dos descendentes, na Praça Bonifácio Silveira.
Com a morte de JNL, no segundo decênio do século XX, a figura
impressionante de outro abolicionista reluziria: Bonifácio Magalhães da Silveira.
(Não tenho dados suficientes para afirmar se essas duas grandes personalidades
mantinham relações de amizade e cooperação.) Silveira era pernambucano de
nascimento. Cedo transferiu-se com a família para Alagoas. Funcionário público,
major da Guarda Nacional, político, escritor, memorialista, ator, era,
sobretudo, um “agitador cultural”. Tratava-se, sobretudo, de um festeiro nato.
Na minha infância e adolescência conheci pessoas que conviveram intimamente com
o Major, como era chamado. Entre os parentes de Bonifácio da Silveira cabe
destacar seus irmãos Luiz, fundador da Gazeta de Alagoas e Faustino, professor
de matemática e pai da psiquiatra Nise da Silveira.
Um dado histórico notabiliza o Major além do seu pendor para
organizar festas populares: ele participou com inflamado discurso das
comemorações pela assinatura da Lei Áurea. Em 1938, seria convocado a integrar
o comitê comemorativo do cinquentenário
dessa Lei, na condição de testemunha da História.
O fato é que a fama
de Bebedouro como um “bairro de elite”
vem dessa época. Ainda não havia o
hábito da beira mar. Com a arrumada na casa promovida pelo industrial Nunes
Leite, o arrabalde despertaria a
atenção, justamente depois que o Major decidiu retirar o bairro do “marasmo”.
Bebedouro sairia da condição de simples “corredor viário” em direção ao
interior e passaria a ser visto como um polo de festejos, onde os folguedos
eram interpretados, reinventados, e as pessoas podiam divertir-se de forma
sadia, com a comodidade de transportes por trilhos (bonde e trem) e rodoviário.
Não obstante, a via principal de acesso não ser calçada. Ainda havia a opção
fluvial, lacustre, desde o Porto das Balsas, na Levada.
Pessoas que frequentaram as festas de Bebedouro referiram grandes
dificuldades para se conseguir alugar uma casa para permanecer no bairro,
durante esses períodos. Datam do segundo decênio do século XX as construções
das mansões no Mutange, quando famílias mais abastadas ou erguiam esses
casarões para morar definitivamente ou, simplesmente, para veranear. O
carro-chefe dos festejos de Bebedouro era o Natal. O São João também era
animadíssimo. Tudo leva a crer que os folguedos carnavalescos eram partilhados
com o centro da cidade. Lá, havia os corsos, os bailes nos clubes sociais, os
desfiles de escolas e os banhos de mar à fantasia. Era difícil mesmo competir
com tanta pluralidade.
Nasci na Rua Cônego Costa, 3863, tendo o meu pai como
parteiro. Aliás, todos os filhos nasceram em casa, sob a assistência paterna.
Minha avó materna, Moreninha, assumia o papel de assistente. Poucos anos depois, fomos morar vizinho ao
Asilo Bom Conselho, no número 3703 da mesma rua, num imóvel antigo do começo do século. Ficava
numa calçada alta. Três casas ocupavam essa elevação. Era uma espécie de cartão
postal do bairro. Havia outra calçada
alta em frente. Com essa disposição topográfica ficava evidente que o morro havia sido cortado para permitir a
continuidade da via. Ao nosso lado, à esquerda, morava um casal de idosos,
Olímpia e Pedro Fernandes, uma irmã de Olímpia, Bulú, e ainda Rosália, uma
negra esquisita, despenteada, queria parecer inimiga de banhos. Para completar,
Rosália falava sozinha. Na casa
seguinte, meus padrinhos Adalberto Cabral, Bilinha e os filhos, Luzinha, Ilma e
Albani. O rapaz, caladão, trabalhava com
o pai no alambique. Algo taciturno, circulava montado em indefectível bicicleta
preta. Pedro Fernandes, com fama de namorador, era chefe da Estação. Adalberto
era um senhor elegante, não muito alto, trajava sempre terno branco. Tinha um
alambique de cana. Meu padrinho, impreterivelmente, no meu aniversário,
presenteava-me com cinquenta notas novíssimas de um cruzeiro. Independentemente
desse mimo, era um homem manso e bom.
Entre os moradores da calçada alta de frente, recordo do
sapateiro Pedro e da esposa, Marinita, professora de um dos grupos escolares.
Seu vizinho era uma família enorme, de onze filhos, cujo chefe da casa era
marceneiro. Exatamente em frente às nossas janelas, ficava a casa de Anísio
Costa e dona Áurea, ele funcionário público aposentado, pai de duas jovens,
Dadá e Dena, muito gentis e alegres, gente finíssima, mais velhas que nós.
A casa de uma das esquinas da R. Cônego Costa com a Rua
Passos de Miranda era ocupada pela família de Lucila Pinto Barreiros. Viúva de
um descendente do arquiteto italiano Luigi Lucarini (idealizador dos prédios
mais bonitos de Maceió, dentre outros o Teatro Deodoro, o Tribunal de Contas e
a Associação Comercial), Lucila tinha um
cartório de registros de nascimentos. Morava com uma irmã mais velha, Aurora, os filhos Val e Ari e as lindas
filhas, mais velhas que eu. Uma delas, Yara, já citada anteriormente, foi minha
professora de catecismo. Tereza Barreiros Barbosa, outra das filhas, gentil
amiga, é uma das minhas consultoras para assuntos do bairro. Mais adiante, em
direção ao centro, morava uma viúva com três filhos mais velhos que nós, Elba,
Hebel e Ari (“Cavalo”). O jornalista Jorge Assunção ocupava o imóvel seguinte.
Todas essas casas são em frente ao hospital psiquiátrico Miguel Couto. Um pouco
mais para frente ficavam duas casas iguais. Numa delas moravam uma viúva e dois
filhos – amigos de infância – Gilson e Maurício; na outra, o casal Viveiros,
cujo filho, Otávalo, hoje conhecido psicólogo, era também nosso amigo.
Pela casa dos Viveiros transitava um córrego que cruzava a
rua e ia desembocar na lagoa, depois de percorrer o terreno da Miguel Couto.
Evitava-se qualquer contato com essas águas, pois, dizia-se, vinha com os
refugos orgânicos do Sanatório. O córrego era o marco divisório com o terreno vizinho cujos moradores
incluíam minha primeira professora, o marido e os filhos. Finalmente, vizinho à
escolinha, ficava a casa do coronel Saraiva, sombrio criador de seriemas.
São poucas as lembranças da casa onde nasci. Das raras - é possível estar enganado-,
quero crer que uma babá, generosa e espontaneamente, oferecia os jovens e fartos
seios desnudos para um trabalho de treinamento muscular oral do futuro
neurocirurgião. Esta moça, “negra como as asas da graúna”, muitos anos mais
tarde, seria minha cliente no Hospital Universitário. Tinha uma sequela de
paralisia facial. Nas entrevistas era
falante, exibida, e terminava revelando aos meus alunos que havia sido minha
babá. Aguçava a curiosidade da estudantada ao relatar que eu era muito
danado... Convenientemente, evitava
entrar em pormenores “mais cúpidos”.
Na minha visão de criança, a nova casa, vizinha ao Asilo, era grande. Certamente mais espaçosa que a
anterior. Sem dúvida, mais iluminada por janelas laterais que davam para o
jardim. Tinha quatro quartos e uma varanda/jardim lateral delimitada pelo
paredão do Asilo. Havia um coqueiro central
e um pé de jasmim colado ao muro da frente. Eu ficava admirado como de uma árvore
tão ressequida poderia brotar aquela profusão de alvas flores tão cheirosas... Minha
mãe cultivava roseiras, mas as inclementes saúvas faziam grande estrago. Um
pequeno portão lateral mantinha a circulação entre a minha casa e o colégio. O
imóvel era alugado ao Asilo e tinha sido moradia do Monsenhor Tobias, um
educador muito influente. Capelão do colégio, era gago e um emérito contador de
anedotas nem sempre piedosas.
O quintal, que eu também achava grande, terminava em outro
muro do Asilo. Não tínhamos, pois, acesso à lagoa, característica da maioria
das casas situadas à esquerda da rua. Meu pai criava galinhas e patos,
consumidos pela família que aumentava a cada ano. A preocupação dessas criações
não era à toa. Naqueles dias, as mulheres no puerpério faziam uma quarentena
tendo o caldo de galinha como pièce de résistance. Alguns passarinhos
gorjeavam na nossa varanda. Eram poucos,
mas exigiam cuidados. Certo dia, a empregada, Maria das Neves, descuidou-se e o
sofreu de estimação nunca mais foi visto. Mesmo destino tiveram dois galos de
campina. Desta vez, o pai, pessoalmente, resolveu abrir as gaiolas. Inquestionavelmente,
passarinhos em cativeiro não eram o seu forte. Gatos também não faziam sua
cabeça.
Um vira-lata, Rex,
teria seus momentos de glória. Criado entre nós desde a mais tenra idade, era
um policial miscigenado, de abundante penugem negra e extremamente
desobediente. Latia com estranhos, o que parecia ser uma característica
aceitável. Nas inúmeras brigas entre os irmãos, Rex se agitava, latia, rosnava
e, finalmente, tentava interferir na contenda. O problema era que Rex só mordia
a mim. Um detalhe nos entristecia: Rex não era tão valente nas disputas com outros
cães. Certa ocasião, cobrir-nos-ia de
particular vergonha: o cão do jornalista e político JA, com quem meu pai
mantinha insalubre distanciamento, deu-lhe uma montada por trás, à moda dos
cachorros. O sacana do cachorro pareceu conformar-se... Por tudo, creio que Rex não nos orgulhava. Talvez essa
seja uma das múltiplas razões que me fazem manter prudente distância de todo
ser que rosna, late e às vezes morde.
Nossa avó paterna, Docinha, morava conosco. O marido, meu avô,
Francisco Cavalcante de Mendonça (“Chico do Brejo”), que não cheguei a conhecer,
falecera aos cinquenta anos. O irmão mais novo do meu pai, Breno, era uma
espécie de nosso irmão mais velho. Habitávamos o mesmo quarto, nosso tio, o meu
irmão Robson, mais velho um ano e meio, e eu. Nessa época, 1953-1954, já éramos
sete filhos. Desses, cinco eram meninas. Meu tio estudava no Colégio Guido onde
meu pai era professor de Química.
O Asilo Bom Conselho tinha sido fundamental na vida da minha
mãe, Rosinha. Nascida em Atalaia, ficou órfã do pai, Francisco Aureliano de
Medeiros Cabral (um espirituoso rábula), aos quatro anos. A apertada situação
financeira da viúva a impeliria a internar duas filhas no Bom Conselho: Rosinha
e Margarida. Minha mãe, Rosinha,
passaria nove anos no Colégio. Foi a oradora da turma. Provavelmente, pela
primeira vez, sairia do Asilo Bom Conselho uma turma com o título de
“professora rural”. Até então, as meninas estudavam português, matemática,
história, geografia, francês... Aprendiam a costurar, a bordar, cozinhar, lavar
chão e jardinagem. Ao saírem não tinham onde trabalhar a não ser como
domésticas. A opção B seria tornarem-se amantes de algum nababo até que a
velhice as transformassem em peças descartáveis. O paraninfo da turma da minha
mãe foi o Dr. Ib Gatto Falcão. Uma
maneira que as alunas tiveram para demonstrar a gratidão pelo seu empenho em
formalizar o curso do Asilo.
Minha mãe pouco exerceu o magistério. Apesar de sua natureza
mansa, os anos de reclusão entre as freiras provocariam algo de inaptidão para lidar
com alunos. Faltava-lhe uma certa dose de malícia. Breve foi sua passagem como
professora na Usina Brasileiro. Contou-me que numa ocasião os alunos foram queixar-se
de que um deles havia lhes “dado dedos”. Eram gestos desconhecidos, praticados num universo
do qual ela não tinha a exata dimensão do funcionamento. A aplicação como aluna
do Asilo, contudo, não fora em vão. Aprovada em um concurso para a LBA,
livrar-se-ia das pequenas pornografias infantis. Ao casar, a LBA seria página
virada. Voltaria aos estudos trinta anos mais tarde, onde concluiria, na UFal,
com brilhantismo, um curso de Letras.
O que eu queria dizer é que esse vínculo, essa gratidão em
relação às freiras sacramentinas, suas mães, no frigir dos ovos, perduraria
intocável na alma da minha genitora. Sua professora de piano, a esquálida Magdalena Queiroz, por exemplo, foi a mesma
que ensinou às minhas irmãs mais velhas. Quando uma freira adoecia, meu
pai era escalado para cuidar com consultas
e com amostras grátis. A influência foi
de tal durabilidade que minha filha Lavínea e meu filho Carlos Eduardo terminariam
o curso secundário sob a égide das sacramentinas do Colégio Sacramento. É claro
que outros fatores pesaram. Na época, o Colégio Sacramento era um dos melhores
da cidade.
O que teria levado meu pai a morar em Bebedouro é uma
pergunta que amigos me fazem. Certamente não foi atraído pelo dinheiro das
“elites”. O bairro estava em franca decadência. Nascido em Pilar, de família ligada
aos engenhos de açúcar, o menino José
Lopes passaria cinco anos interno num colégio religioso: o Diocesano. Ao vir de
Pilar para a capital, morou inicialmente com um tio, dentista e dono de uma
chapelaria no centro da cidade. Tinha onze anos. Matriculado no Colégio Diocesano,
poucos meses na casa do parente produziram ojeriza de tal intensidade que
decidiu pegar a balsa e fugir de voltar ao engenho paterno. Não se afinara com os
tios. Eles não mais com o sobrinho. Estava decidido: não queria mais estudar.
Diante da irredutibilidade em voltar à casa do tio, o caminho era o internato.
Concluído o curso secundário, em 1937, foi para Recife, onde
faria dois anos de complementar e o vestibular. O foco era a Medicina. Antes de
pegar o trem, o pai o advertira: “Cuidado com o chapéu novo. Quando botar a
cabeça fora da janela, segure com as mãos!” Após doze horas de viagem as
expectativas de uma nova realidade fariam o adolescente Juquinha, como era
chamado, esquecer as recomendações. Aos anúncios da chegada a Recife dentro de
poucos minutos, a curiosidade o impeliria a vislumbrar a nova cidade. Adeus,
chapéu. Matriculado no Carneiro Leão, morando numa pensão para estudantes,
economizar qualquer tostão para voltar para casa com um chapéu, era uma questão
de honra. Ao regressar em junho, sequer ousou arriscar colocar o apetrecho na
cabeça. O pai, meio desconfiado, enquanto batia suposto pó, comentaria: “Está
novinho. Não usou?” Juquinha teria replicado: “É que em Recife o pessoal está
abandonando esse costume”.
Foi aprovado, de primeira, no concorrido vestibular para
Medicina. Sabia que não haveria uma segunda chance. Em Recife, alguns fatos
foram marcantes para meu pai: 1) Convocação para servir o Exército – chegaria
ao posto de cabo padioleiro – no auge da conflagração; 2) A venda do engenho,
uma ferida narcísica que nunca chegou a cicatrizar completamente; 3) A doença
do pai, que ele adorava, culminando com sua morte; 4) O casamento com minha mãe
e o nascimento da primeira filha, Rosinete.
Meu pai estava
cursando o quarto ano de medicina e gozava férias, aqui em Maceió, quando o pai
dele, meu avô, passou mal. Ele diagnosticou que seu pai estava tendo um “Edema
Agudo de Pulmão”. Em casa, sem qualquer recurso, tentou uma “medida heroica”: a
sangria. Cortou uma das veias do braço do pai e salvou-lhe a vida. Meses
depois, novo Edema Agudo se instalaria. Não teve a mesma sorte. A morte do pai
ensejaria sua baixa no Exército. O fantasma de ir para o front na Itália estava
afugentado.
Finalmente formado, a decisão de morar em Bebedouro teria
sido influenciada pelo fato da sogra, minha avó, casada em segundas núpcias com
um fiscal de renda, morar no bairro. Além disso, não havia médicos na região. A
circunstância do meu pai ter passado boa parte do curso como interno na
Maternidade de Olinda foi fundamental. Mesmo levando-se em conta que os médicos
eram mais bem preparados, fixar-se numa cidade de interior (Bebedouro era quase
isso) sem prática em obstetrícia, aterrorizava o recém-formado.
E foi justamente isso que aconteceu. Clínico Geral, médico da
Casa de Saúde Miguel Couto, chefe do Serviço de Verificação de Óbitos, meu pai
era convocado com certa frequência para fazer partos em residências. Geralmente
para os casos mais complicados que as parteiras não conseguiam resolver. Alguns
eram remunerados. A imensa maioria, Deus os pagava. De qualquer forma, foi uma
vida muito rica do ponto de vista humanitário. De manhã cedo, meu pai tinha o
hábito de abrir a janela e dar uma olhada na rua. Aquela salutar mania de deixar
o ar da manhã entrar na casa... Não há como afirmar que ele estranhava a fila
que se formava. Eram pessoas de todas as idades, sobretudo mães com crianças
nos braços. Minha mãe contava que ele a chamava e dizia: ”Rosinha, veja isso!
Que quantidade de gente é essa? O que essas pessoas estão fazendo na minha
porta a essa hora?”. Todos sabiam o que elas queriam. Então, o meu pai, mais
uma vez, “surpreendia”. Depois de tomar um rápido café com dois ovos à la coque
e de fumar um Continental sem filtro, sentava no bureau que ficava no corredor
da casa, estetoscópio ao pescoço, e ia atendendo. Gavetas de amostras abertas,
explicava como fazer e recomendava: “Se não melhorar, volte amanhã”. Ninguém
saía de mãos vazias. O melhor da festa: tudo de graça.
Estava, há algumas linhas, em 1953-1954. Chegara, enfim, a
idade de aprender a ler. A alguns metros da nossa casa, uma distinta senhora
mantinha uma escolinha. Entramos os três
irmãos mais velhos, Rosinete, o Robson e eu. A professora dava aulas em casa. Havia um oratório bonito
na sala onde funcionava o curso. Uma peça de madeira anexa era o genuflexório.
Creio que nos momentos de enlevo espiritual nossa mestra prosternava-se
compungida. Durante as aulas, a severa educadora era partidária de técnicas
pedagógicas, digamos, mais ortodoxas, premedievais, se vocês me entendem. Era criativa. O genuflexório que testemunhava
seus emocionados encontros com Nossa Senhora, recebia uma cobertura de feijão
ou milho, onde os alunos (crianças de 5-8 anos) iam pagar seus pecados, expiar
suas culpas, ajoelhados sobre o milho ou o feijão. Não me lembro se alguma vez fui
aquinhoado. Meu irmão Robson, com certeza. Um dos mimos que recebi da minha
primeira professora foi ser chamado de “Olho de Pitomba Lambida”. Tenho zero de
trauma disso.
Quem não gostou de saber dessas coisas foi o nosso pai. Retirou-nos
da escolinha. Não fora esse clima de terror, até gostava. Jogava bola nos
intervalos. Era o goleiro. Com um pouco mais de cinco anos faria uma defesa tão
espetacular que fui chamado de “Nonda”, referência ao grande goleiro
Epaminondas, conforme aludi anteriormente. “Nonda” duraria mais que o “Olho de
Pitomba Lambida”.
Depois que saímos da escolinha, passaríamos a estudar em
casa. Minha mãe e minha avó, Docinha, tiveram a incumbência de nos preparar em
leituras, cópias, ditados e nas operações aritméticas. Não demos vexames. Em
1954, aos 6 anos, meu pai nos matriculou no Diocesano. Lembro dele na sala da
diretoria conversando com o Irmão Nestor, diretor do colégio. Queria um
desconto nas mensalidades. Recordo de dois argumentos. Num deles, papai dizia que
era ex-aluno interno do colégio. O outro argumento referia-se ao fato de estar
matriculando dois alunos. Passaria pela minha cabeça, em caso de
irredutibilidade do diretor em conceder a bonificação, se meu pai iria desistir
de nos matricular. Não me recordo se o desconto foi dado. Provavelmente, sim.
O orçamento doméstico
era apertado. Com o devido respeito, meu pai era um reprodutor incansável. Um
dos objetivos da abundante prole (estou presumindo) seria equilibrar a
quantidade de filhos homens com as filhas mulheres. Por insondáveis caprichos
da natureza, a cada novo parto espirrava uma menina. Foram onze filhos, três do
gênero masculino. Não possuíamos automóvel. Somente em finais de 1958, treze
anos após a formatura, foi que meu pai adquiriu um Jeep, cuja placa era 53-57.
Ainda hoje encontro pessoas que fazem referência a esse veículo. O que chamava
a atenção era a quantidade de crianças e adolescentes. Minha irmã mais velha,
Rosinete, ocupava o banco da frente. Eu e o Robson ficávamos nas “latas”
laterais e quatro irmãs mais novas (Rosete, Rosilda, Rosélia e Rosaline)
ficavam apertadas no banco traseiro. A coisa ficaria mais suave dois anos
depois, com a aquisição de uma Rural. O velho estava prosperando.
Fomos crianças de poucos brinquedos. Aos dez anos ganhamos
uma bicicleta Gulliver. Não tinha o charme da Monark, mas quebrava o galho.
Numa das primeiras voltas, apostávamos corrida pelas ruas quando uma flanela
amarrada no selim da bicicleta do Robson (para não manchar a roupa) escorregou
e enganchou entre a roda e o “garfo” traseiro. A peça entortou com tal
intensidade que os pedais não faziam mais o giro completo. Assustadíssimos
voltamos para casa. Era um dia de domingo. Meu pai, que ensaiava tentar
aprender a andar de bicicleta, pegou justamente a do Robson. Na primeira
pedalada em torno do coqueiro descobriu a deformidade. Foi desagradável. Era
uma situação que demandava levar o brinquedo de volta. Embora não houvesse
“garantia” para esse tipo de encrenca, pareceu mais lógico entregar na loja
para o conserto ser providenciado. Não possuíamos transporte próprio... Uma
chateação. Para aumentar os dissabores, o meu pneu traseiro baixava de palmo em
palmo. Acho até que ganhei uma certa musculatura enchendo até a exaustão aquele
miserável equipamento.
A cada dois anos, nas férias, doutor Zé Lopes chegava em casa
com um objeto enrolado debaixo do braço. A forma era arredondada e lembrava uma
bola. Para desgosto da torcida, às vezes era um queijo do reino. Algumas
meninas do bairro iam à nossa casa para brincar de “queimado”,
“rouba-bandeira”, “esconder-peia” e outros que tais. A coisa mais rara do mundo
era um amigo ser convidado para minha casa.
Na verdade, éramos instigados a ler. Pairava uma certa
cultura familiar alimentando o conceito de que se não estudássemos durante as
férias iríamos esquecer tudo que havíamos aprendido durante as aulas. Embora
não tivéssemos uma formidável biblioteca,
líamos o que estava na estante. Recordo bem da minha irmã Rosete, mais nova do
que eu um ano, mergulhada sob uma das camas, lendo Os Miseráveis, que nós, mais
velhos, já havíamos traçado.
Em 1955, recebemos uma inesperada visita. Tínhamos um tio que
havia saído para São Paulo, dez anos antes. Era portador de hanseníase, uma
temida doença, estigmatizante, amaldiçoada até nas sagradas escrituras. O tio
“paulista”, Francisco Lopes Cabral, era o irmão mais novo da minha mãe. A
doença, tudo leva a crer, fora contraída de uma ama de leite com quem mantivera
longa e próxima convivência, na infância. Com demorado período de incubação, a
moléstia manifestar-se-ia na adolescência. Um drama. Em Maceió, havia um
leprosário com bons médicos, mas a medicação parecia inócua. Com a ajuda de
parentes, o simpaticíssimo Cabral partiu, clandestinamente, para tratar-se num
leprosário em São Carlos, SP. Não se deu mal. Casou com uma jovem também valetudinária
para a mesma doença.
Ao receber alta, seria aprovado num concurso para
escriturário do IAPI, aposentando-se algum tempo depois. Meu tio, no IAPI, deu
sorte e azar. Ao fazer uma radiografia de rotina, um dos médicos observou
lesões que sugeriam doença crônica. Esse médico era ninguém menos que o Prof. Ricardo
Veronesi, autor de livros didáticos e um dos maiores especialistas brasileiros
em doenças infecciosas. Veronesi era da USP e funcionário do IAPI. Daí para a
aposentadoria seria um pulo.
Anteriormente, tio
Francisco fora funcionário das Indústrias Pignatari, que tinham “Baby”
Pignatari como sua estrela mais reluzente. Baby era um playboy, irremediável
conquistador. Sua conquista mais deslumbrante, seria a ex-esposa do Xá da
Pérsia, Soraya. Meu tio sentia imenso orgulho do patrão justamente por essas
coisas. Era como se fosse ele, Francisco, quem sentia os irresistíveis aromas
inebriantes emanados dos corpos em êxtase das divas que Baby levava para a cama,
e o ajudavam a dilapidar sua imensa fortuna. Pignatari era a versão paulista do
estroina Guinle, do Rio de Janeiro.
Nem todos tinham essa transferência positiva com o
industrial. Nosso primo, George Cabral, era um deles. Comunista juramentado,
casado com Julieta, George foi para São Paulo, corrido de Alagoas. Inicialmente
escondido na própria casa do sobrinho, Francisquinho, conseguiria empregar-se
na Indústria dos Pignatari graças ao conceito do parente. George era muito
visado. No dia em que se descobriu sua folha corrida, houve uma apoteose digna
de um grande líder. Ao despedir-se, seria demoradamente ovacionado. Faria um
discurso inflamado para uma imensa plateia de funcionários reunidos no
refeitório da empresa. Tio Francisquinho descrevia-nos o orgulho que sentiu
daquele sobrinho impetuoso e sonhador. Seu emprego também esteve por um fio...
George e Julieta foram morar na Tchecoslováquia. Eram
locutores da emissora oficial do PC. Faziam
um programa em português, onde relatavam as delícias dos paraísos comunistas, enquanto
denunciavam o imperialismo americano, as atrocidades do regime militar no
Brasil, a falta de liberdades, as torturas... Ao regressar, muitos anos depois,
esteve em Maceió nos visitando. Estava doente. Bom de uísque, tinha angina
pectoris de palmo em palmo. A cada crise, batia com a mão fechada, e com inusual
força, no peito e dizia: “este porra desse coração um dia ainda vai me foder”.
Parecia adivinhar. Estava separado da mulher. Saiu com meu irmão mais novo,
José Lopes de Mendonça Filho, para circular e conhecer alguma coisa da vida
noturna de Maceió. Seu entusiasmo pelo comunismo havia murchado. Se não me
engano, voltou a trabalhar em jornais. Um filho era editor de cultura de uma
sessão do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro...
Francisco Cabral, que era meu padrinho de crisma, era também um
cara irrequieto. Um mascate por excelência. Vendia joias, perfumes Avon,
tecidos, máquinas fotográficas, o diabo. Dizia ele que só a mulher e o menino
estavam livres das negociações. Até a sogra, “dependendo da oferta” era disponível. Viveria transitório apogeu financeiro
quando foi sócio de uma empresa de ônibus, o Expresso Pernambucano. Parecia
haver decolado de vez. O azar, no entanto, bateu-lhe impiedosamente à porta
quando, em uma semana de infelicidades, dois de seus ônibus capotaram na
inóspita “Rio-Bahia”, ainda em construção. Venderia os outros veículos para
pagar as dívidas e voltaria à escala zero, mais uma vez.
Mas, naquele 1955, meu tio estava com a carga toda. Tinha
trinta anos. Dera a volta por cima. Montava uma “baratinha” Mercedes,
conversível, carmim e linda, carregada de brinquedos. Não sabia muito bem a
idade dos sobrinhos. Era típico do seu Cabral. Ele ainda não tinha filhos ou,
talvez, já houvesse adotado uma criança. Havia a suspeita (equivocada) de que a
doença, ou os medicamentos –as demolidoras sulfonas – haviam-no esterilizado. O
fato é que os velocípedes já não faziam a nossa cabeça, até por serem muito
pequenos. Serviria para as irmãs mais novas. Traria também bonecas para as
meninas e presentes para os adultos. O cara era casa cheia, bem humorado,
piadista e... namorador. Seria, por esse
prisma, uma versão degradada do ex-patrão Baby Pignatari.
Aposentado do IAPI, tio Francisquinho, como nós o chamávamos,
retornaria inúmeras vezes. Pressentiu que havia possibilidades de bons
negócios. Era sempre uma festa. Adorava praia com chuva. Num desses passeios à Pajuçara,
a Kombi, estacionada em frente ao Iate Clube, seria arrombada. Um relógio Patek
Philippe foi junto de uma bermuda. Vimos o tio um pouco chateado. Duraria
pouco. Foi irônico: “O José (meu pai) vive dizendo que em Maceió não tem
ladrões...” Logo ele se refez e nos disse. “Nasci nu e estou vestido. Um dia eu
compro outro”.
Papai adorava viajar com ele. Eram duas personalidades díspares
que se completavam. Numa das viagens, estávamos no Hotel Guararapes, no Recife.
A televisão - uma novidade - distrairia meus pais além do esperado, no saguão
do hotel. Finalmente, vencidos pelo sono, recolheram-se. Vivi uma noite memorável.
Quase sorrateiramente (meu tio preocupava-se em não aborrecer o cunhado “José”),
nos mandamos para além de Boa Viagem, onde havia uma casa muito animada chamada
Samburá. Liso, seu Cabral financiaria um
affaire com uma garota que lembrava a Rita Pavone, uma jovem cantora italiana
que estava em evidência. No calor da paixão, um animado conjunto cantava a
plenos pulmões a famosíssima “La Bamba”.
Por insondável desígnio, seu Cabral morreria em nossa casa, em
1971, aos 45 anos. Chegou de madrugada, de São Paulo, trazendo o filho adotivo
surtado. Queria que ele se tratasse aqui, conosco. Ainda durante a viagem, numa
Toyota Furgão, começaria a passar mal. O rapazinho estava impaciente,
delirante. A pressão arterial do tio
batia na estratosfera. Era um descuidado crônico. Havia também um aperto no
peito e um grande desconforto na região epigástrica. Dormira com o filho num
quarto reservado para os dois. Ele e minha mãe se falaram bem cedo. Incomodado
pela dor mal pregara os olhos. Minha mãe garantiu que ninguém iria fazer
barulho, que ele descansasse da viagem. Deitou-se para nunca mais acordar.
Volto a 1958, ano em que ocorreu uma extraordinária guinada
na vida profissional do meu pai. É que surgiu a oportunidade de uma
especialização em Psiquiatria. Conforme assinalei, ao morar em Bebedouro, ele seria
contratado para trabalhar na Casa de Saúde Miguel Couto. Era um hospital
psiquiátrico que ficava a duzentos metros de nossa casa. O frenocômio, cuja
denominação primitiva era Santa Juliana (padroeira dos loucos) pertencera ao
Dr. Pedro Bernardes, que se transferira para Minas Gerais. Inicialmente, fora
arrendada ao psiquiatra Mário Morceff, um migrante mineiro meio descapitalizado
-mais velho que papai - que terminou adquirindo o imóvel. Consta ter sido o seu
sogro, Dr. Chaves, com seus infindáveis coqueirais nos Morros de Camaragibe, o
poderoso avalista da negociação.
O fato é que aqueles anos de trabalho e convivência com
doentes mentais tinham lhe dado uma respeitável vivência na área da
Psiquiatria. O curso patrocinado pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais, certamente,
encaixava-se como uma luva aos anseios paternos. Havia alguns obstáculos.
Naquele 1958 éramos nove filhos. Minha avó, Docinha, falecera dois anos antes e
meu tio, Breno, assumira um emprego no Banco do Nordeste, em Mata Grande. Uma
solução encontrada para ajudar minha mãe a administrar a “rebelde ninhada” foi
apelar para Vovó Moreninha, que se transferiu com malas, bagagens e o marido, o
“Velho Góes”, a essa altura fiscal de rendas aposentado. Foram quase seis meses
de ausência. Do Rio, meu pai se esforçava para manter a casa em ordem através
de longas cartas. Escrevia particularmente para cada filho e nós escrevíamos
pelo menos duas cartas por mês. Para minha mãe, eram longas e apaixonadas que
ela as relia solitariamente e não permitia que nenhum filho, mesmo os mais
curiosos, as acessassem. Meu pai tinha um bom texto e, a despeito da carranca e
de proverbial mau humor, sabia ser romântico. Eles se amavam muito.
Um tio paterno, Ruy Mendonça, que também, quando solteiro e
mais jovem, tinha morado conosco,
ligadíssimo ao meu pai, também fazia uma ronda periódica para ver como as
coisas estavam. As preocupações maiores eram justamente em relação aos três
filhos mais velhos, máxime Robson e eu. Nos finais de semana, nosso tio nos
levava para sua casa, no Farol, “para dar uma aliviada em casa”. Ruy Mendonça
tinha excentricidades, as gastronômicas eram uma delas. Depois de almoçarmos
uma montanha de comida, ele nos convidada ao pós-pasto. Geralmente bananas. Ele
próprio, um glutão sacramentado, impelia-nos a comer algumas bananas anãs, à
guisa de sobremesa. Dentre suas preocupações, constava a com nosso pai, que ao retornar, não nos encontrasse magros,
abatidos, sinalizando, talvez, que havíamos passado necessidades na sua
ausência. Decididamente, um excêntrico, aquele nosso tio.
Apesar de toda vigilância, durante os meses de ausência
paterna, tivemos mais folga para “maloqueirarmos” pelo bairro. Começamos a nos
entrosar mais nas peladas, nas andanças ao banho do Né Fragoso, nos jogos de ximbra,
peões, e até em alguns jogos de azar apostando castanhas (compradas). Luiz
Rijo, amigo do meu tio Manuel Góes tinha
uma roleta viciada e nos “roubava” os trocados que conseguíamos adquirir, nem
sempre por meios lícitos, em casa. Nesse aspecto, nossa mãe não era tão
diligente, posto deixar algumas moedas dando sopa sobre os armários.
Aos sábados, Bebedouro tinha uma feira muito animada. Com
10-11 anos, minha mãe me encarregava de comprar farinha e mais algumas pequenas
coisas. O segredo consistia em ir no final da feira, quando os comerciantes
baixavam os preços. O que eu conseguia de abatimento ia para a “caixinha”
pessoal...
Na infância e adolescência, nunca tivemos dinheiro fácil. Na
época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson e eu recebíamos, cada um, cinco
cruzeiros. Desses, sobrava apenas um cruzeiro. Não era suficiente para o lanche. Levávamos no bolso
um pão, cujo recheio variava da manteiga com açúcar ao doce batido de banana.
Raramente queijo. Não nego que ficava me lambendo quando via as filas, na hora
do recreio, para comprar sanduiche na cantina dirigida pelo Irmão Silvino,
tendo como balconista um garoto um pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”. (Esse
rapaz, era uma das “crias” do colégio. Estudava à noite, na Escola Padre
Champagnat, educandário gratuito que os maristas mantinham no próprio colégio.
Anos mais tarde, “Cabeleira” seria o dono da cantina no novo Colégio Marista,
da Av. Antonio Brandão, no Farol).
Não raramente, gastávamos o dinheiro do transporte para
comprar um daqueles sanduiches de mortadela, regado a uma Crush, que ao paladar
dos meninos que éramos, tinham o sabor do néctar e da ambrosia. Estarmos lisos
em pleno meio-dia na Praça dos Martírios, esperando uma carona, não era um
grande drama. Era difícil não passar alguém com destino a Bebedouro. Aguardávamos
no início da General Hermes. Nossas esperanças de não voltarmos a pé para casa,
concentravam-se, sobretudo, nos caminhões
vazios, dirigidos por conhecidos do bairro. Na curva, para entrarem na
General Hermes, reduziam consideravelmente a velocidade, permitindo que
galgássemos a carroceria. Ficamos craques: jogávamos nossas bolsas, segurávamos
na grade e apoiávamo-nos nos pneus (em movimento lento). Logo estávamos
sorridentes, vitoriosos, na carroceria exclamando: “Chame”.
Certa feita, coincidiu de minha mãe presenciar essas
manobras. Ficou estarrecida com o que viu, o perigo que nos espreitava. Talvez
Deus naquela época nos protegesse mais.
Havia uma certa decepção materna quando, crianças ainda, regressávamos com o pão
amassado e intacto no bolso, que ela embalara com carinho. Por que não
confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas almas suburbanas por não
termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar aquele pão crioulo maltratado,
desenxabido, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos humilhava
um pouco. Talvez por isso, compensássemos nossa quase “tragédia financeira”
sendo ótimos alunos.
Com efeito, durante os
primeiros anos de colégio não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a
estudar à tarde. A boa memória nunca nos abandonou. À noite, sabíamos que iríamos enfrentar o
doutor Zé Lopes, nem sempre no seu melhor fair play. Com ele não havia mais ou
menos. Ou as lições estavam na ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos
muito cedo) só depois de repetir “timtim por timtim, até o fim”. Ainda havia
aquelas poesias quilométricas que nos cabiam decorar para recitá-las nas
sessões do grêmio...
Volto agora ao primeiro dia no Colégio Diocesano. Depois da
etapa do chororô paterno, encaminhamo-nos eu, meu irmão Robson e meu pai até a
sala do Irmão Pedro, um “velhinho” que era o mestre de classe do segundo ano
primário. Os conhecimentos de casa foram testados e aprovados. O casulo estava
se abrindo. Não lembro se já tinha usado calça comprida. O sapato era especial,
feito por um sapateiro, sr. ML, um cidadão prenhe de caretas esquisitas, que frequentava o consultório do velho. No
bico e no salto eram colocadas chapas de
metal. Havia a crença de que o sapato duraria mais... Um entrevero marcaria o
primeiro dia de aula. Dois acanhados matutinhos num colégio grande causavam um
certo impacto. Talvez por isso, o pai resolveu nos apanhar dentro do colégio,
na sala de aula. Seguimos então para a porta principal. Meu pai na frente, o
Robson atrás. No meio, eu. De repente, ao atravessarmos o campo de futebol (com
os tradicionais oitizeiros) um menino me calçou. Um provocador. Acho que foi a
última vez que ele cometeu essa gracinha. O Robson agarrou o camarada e em dois
segundos ele estava no chão, com o Robson armando-se para aplicar uns
corretivos. Toda aquela malandragem precocemente apreendida da molecoragem
bebedourense eclodiria. Não fora a interferência de papai, que ao virar-se,
deparar-se-ia com aquela cena tragicômica, o nasal do menino iria ser detonado.
Em agosto de 1954, fomos para o colégio e demos com os burros
n´água. O presidente Getúlio Vargas havia se suicidado com um tiro no peito, na
véspera. Coincidentemente – ou até por causa disso?- um senhor, Sr. Freire, que
morava numa mansarda vizinha à Lilota, foi encontrado morto no seu sítio. Meu
pai foi chamado. Ele era chefe do Serviço de Verificação de Óbitos. Algo não o
convenceu de que a causa mortis tinha sido por um “colapso” ou coisa
semelhante. Convidaria o colega e compadre Mário Morceff (segundo papai, um
homem curioso), e ambos foram dar uma batida no sítio do falecido. Não chegaram
a se surpreender quando encontraram uma embalagem aberta de um poderoso
formicida...
A Copa do Mundo de 1954 teve episódio que me marcou. As dores
da derrota para o Uruguai, em 1950, no Maracanã, eram uma ferida narcísica do
tamanho do Brasil. (Em 1950, tinha dois anos. Mesmo assim, de tantou ouvir
falar consegui decorar a escalação do time: Barbosa, Augusto e Juvenal; Eli,
Danilo e Bigode; Jair, Zizinho, Ademir, Friaça e Chico.) Em 1954, o Brasil voltaria a disputar uma Copa
do Mundo, desta vez na Suíça. Era um bom time. Castilho, Pinheiro, Didi,
Zizinho, Índio... Zezé Moreira era um aplicado técnico adepto da valorização da
defesa. Era um conceito que predominava. O paroxismo desse esquema tático
estava materializado no célebre “ferrolho suíço”, rigidamente empregado pelos
donos da casa. Por infelicidade, tivemos que enfrentar o temido “escrete
húngaro” de Puskas & Cia, a equipe mais forte do certame.
Lembro-me do meu pai, solitário, ouvido colado ao rádio
Philips, no domingo que decretaria a desclassificação do Brasil. Enquanto
tentava ouvir, três ou quatro cervejas lhe faziam companhia. De quando em vez
ouvíamos um palavrão de descortesia à mãe do árbitro. O placar final seria de 4
x 2 a nosso desfavor. Passada a euforia, meu pai derrubaria um medonho “bezerro”
no quintal.
Nosso pai bebia pouco. Não tinha sequer o hábito de religiosa
cervejinha aos sábados, a não ser quando acompanhava os colegas no Bar Colombo.
Nessa época, trabalhava-se aos sábados, em meio expediente. Acho que o
presidente Juscelino encamparia a “semana inglesa”, de cinco dias. O fato é que
havia um grande amigo, Cláudio Sarmento, médico e compadre de papai, que vinha
de Porto Calvo doido para tomar umas. Era um dos mais assíduos companheiros do
velho. Até certo ponto.
Dr. Cláudio era filho
de um usineiro, Demócrito Sarmento. Começara os estudos de Medicina no Recife,
na mesma turma do meu pai, mas, abonado,
conseguiu transferência para Salvador. Viver na Bahia “de Todos os Santos e de
todos os pecados” era seu sonho. Era uma excelente companhia, sobretudo porque
não falava. Numa época em que os restaurantes e bares “familiares” fechavam
cedo, não se fazia de rogado. Continuava a cervejada no meretrício. Caladão,
parecia ouvir e refletir sobre o que se lhe diziam. O folclore em torno do seu
nome geraria histórias curiosas. Dizia-se, por exemplo, que ele, numa
farra, só abria a boca em momentos muito
especiais. Um desses momentos era quando alguém da mesa perguntava: ”Vamos
pedir outra cerveja, doutor Cláudio?” Ao que ele respondia: “É bom!”
Longe do perfil de um puritano, meu pai cumpria rígidos
horários. Não aguentava beber muito. Contudo, pelo menos duas vezes ao ano convocava
os amigos Cláudio Sarmento, Ivon Sotero, Walter Souza e seus irmãos Francisco,
Ruy e Breno para uma buchada. Embora houvesse
outras opções (minha mãe cozinhava bem), le plat de résistance era mesmo
a buchada. Os carneiros eram presentes dos pacientes. Chegavam magros e eram conduzidos
ao sítio da Casa de Saúde Miguel Couto, onde meu pai era médico, para uma
engorda.
Havia um ritual consagrado. O meu tio Ruy chegava em nossa
casa bem cedo. O carneiro já estava lá, seguro pelo Zé Nunes, funcionário da
Miguel Couto e muito ligado ao meu pai. O animal levava umas duas pauladas na
cabeça e ficava meio bambo. Às vezes convulsionava. A seguir, era pendurado, de
cabeça para baixo, numa linha do telhado da lavanderia que ficava fora do corpo
da casa. Depois disso, era sangrar, retirar o couro e esquartejar o bicho.
Cuidados especiais para não lesionar as tripas. A minha mãe se encarregava da
buchada e do assado. Dias adoráveis. Havia um “Sangue de Boi”, outros vinhos
melhores, muita cerveja e comida até umas horas.
Costumeiramente,
nossos almoços festivos terminavam em discursos (até eu, um fedelho, era
convocado) e um show particular, à capela, propiciado pelo cantor aposentado
Walter Souza. Houve uma época em que o jornalista Marcus Vinicius, o Ícaro, da
coluna social da Gazeta de Alagoas, comparecia. Aí, era desmantelo. O Ícaro tinha um vozeirão e um
repertório vastíssimo. De vez em quando, discretamente, tomava um gole de
aguardente e mordia, à guisa de tira-gosto, indefectível cenoura crua.
Acho que minha paixão
pela música nasceu naquelas tardes fagueiras ouvindo velhas canções. Nervos de
Aço, Nancy, Pajuçara, “onde o mar beija
as areias com mais alma e mais amor”, eram peças obrigatórias, numa homenagem
ao dono da casa. Ataulfo Alves, Ari Barroso, Pixinguinha, Noel, Pires Vermelho,
Orestes Barbosa/Sílvio Caldas... Seu Walter era alucinado pelo Orlando Silva,
até o imitava um pouco (que eles não me ouçam).
Às vezes a cerveja acabava. Tínhamos uma geladeira Clímax
média. Seria motivo de excitação familiar quando ela foi instalada. Antes dela,
nossa água potável provinha de um filtro. Nunca tivemos quartinhas,
diferentemente da casa da avó Moreninha. Acho que o velho achava a quartinha
menos higiênica. Bem, mas quando faltava cerveja, meu pai me dava o dinheiro,
eu levava os cascos vazios numa cesta de
feira e ia ao Ponto Final, cem metros da nossa casa, do mesmo lado. Descia a
calçada alta pela escada oposta à nossa, dava mais umas passadas e entrava no
bar. Território ainda inexplorado, proibido mesmo, enquanto esperava no balcão,
olhava de soslaio e sentia que era alvo de curiosidade. Mais de uma vez ouviria
alguém comentar, “hoje o doutor tá na farra”. Era compreensível. Jamais vi meu
pai numa mesinha de bar em Bebedouro. As expressas recomendações paternas eram
no sentido das cervejas estarem geladas, contidas em casco escuro. É que havia outra opção, o casco verde. Às
vezes, retornava repetidamente, com igual missão.
Tio Francisquinho
Mendonça, um dos irmãos do meu pai, era médico. Quando o meu avô paterno
faleceu, minha avó e os filhos reuniram-se em uma só residência. Tio
Francisquinho era um homem seriíssimo. Embora “na dele”, circunspecto, sempre
nos tratou divinamente. Casado com Gasparina
Calheiros Wanderley, foi morar na Rua 16 de Setembro, bem perto do cinema
Ideal. A velha falta de dinheiro nos perseguiu a vida inteira. Havia um agitado
comércio de revistas em quadrinho nas cercanias do cinema. Entre os irmãos, o
empreendedor era o Robson. Mas a gente precisava de um certo capital inicial.
Tínhamos as passagens (ainda circulava bonde), os ingressos e algum refugo de
revistas. Muitas vezes, quem garantiu o capital de giro foi o nosso tio Francisquinho. Naquela época, o casal
ainda não tinha filhos.
A mais velha, Soraya,
hoje médica e casada com o procurador Arecippo, nasceria cerca de 10 anos após
o casamento. Depois viriam Serginho e Simone. Sérgio W. de Mendonça é juiz
federal e Simone advogada. Tio Francisquinho era muito legal, atencioso, mas duro na queda.
Vivia também seus apertos financeiros. Enquanto estudava Medicina era
desenhista da CER (Comissão de Estradas de Rodagem). Olhávamos pela brecha da
fechadura e o víamos sentado numa cadeira de balanço, no fundo do corredor, com
um livro no colo. Entrávamos, pedíamos a bênção, bebíamos água e depois dávamos
a “facada”. Nem sempre funcionava. O tio rezava na mesma cartilha do doutor Zé
Lopes.
Acho que foi nesse mesmo período que Bebedouro passaria por
uma sacudida com a chegada do Padre Fernando Iório Rodrigues, substituindo o
velho pároco, padre Belarmino. Iório daria uma nova vida ao bairro. Sua
influência foi além dos umbrais da Matriz de Santo Antonio. As homilias tinham
a grife do intelectual diferenciado. Renovaria a participação dos fiéis nas
associações, Congregação Mariana, Filhas de Maria, Cruzada Eucarística... Um
alto-falante reverberaria além da Praça. Procissões ocupavam as ruas nas
comemorações sacras. Nessas alegorias destacava-se a figura de Domingão, um agigantado negro enfatiotado,
fita azul ao pescoço, símbolo da piedosa Congregação Mariana. Os inelutáveis
trejeitos do sacristão Argemiro integravam o espetáculo. Padre Fernando não
parava de puxar os hinos com abaritonada voz. Era também costume ouvirem-se, a
partir da Matriz, hinos de exaltação à pátria e ao Estado nas efemérides
oficiais. Deve-se ao Padre Iório, depois consagrado bispo de Palmeira dos
Índios, a criação do Ginásio Santo Antonio. Modesto, mas de basilar importância.
Anualmente, durante alguns anos, o Irmão Venceslau
(supervisor da Ordem Marista) percorria os colégios maristas em busca de
vocações. Nas salas de aula, havia a distribuição de um papel em branco onde os
alunos respondiam o que desejam ser. Havia a opção “indeciso”, justamente a que
assinalei. Tinha dez anos e estava concluindo o primário. Convocado pelo Ir.
Venceslau, expliquei que o “indeciso” queria expressar a dúvida entre ser
médico ou irmão marista. No ano seguinte, novamente Venceslau estava em Maceió.
Repeti a resposta. Acho que enfatizei maior tendência para a religiosidade. À
noite, o irmão marista foi na minha casa falar sobre o meu desejo. O cara pegou
na palavra. Minha mãe ficou feliz. Surpreso e, talvez, meio decepcionado
comigo, o pai me disse que “desconhecia aquele meu desejo de vestir saia”, cruel
referência à batina que os maristas ainda usavam.
Mesmo assim, em
janeiro de 1960, antes de completar doze anos, depois de rápido beijo no rosto,
estava num trem a caminho do Recife, especificamente do Juvenato N. Senhora da
Conceição, em Apipucos. Duraram exatos 30 dias minha vocação religiosa. No meu
regresso, meu pai expressaria menos satisfação do que eu esperava. Segundo ele,
efetivamente não queria que eu fosse “padre”, no entrementes, levando em conta
as despesas com a viagem e com o modesto enxoval, eu deveria ter aproveitado,
no Seminário, aquela oportunidade de crescimento intelectual, em vez da
“maloqueiragem” de Bebedouro, “que não levava a lugar nenhum”.
Independentemente das opiniões paternas, com Fernando Iório os
Natais reviveriam um pouco o lendário Bonifácio Silveira. Pastoris animadíssimos
marcariam aqueles memoráveis dezembros. Efervescente adolescente, investiria
parte das minhas parcas economias convocando “em cena” uma simpática primeira
pastora do azul, para fixar na blusa que recobria suas incipientes protuberâncias
notas de um cruzeiro. Os hormônios já começavam
a impor transformações no corpo e na
alma do ex-seminarista. Despedia-se o
tempo da inocência.
Durante muitos anos, o transporte coletivo de Bebedouro era
uma tragédia. Enquanto o Farol e a Pajuçara eram servidos por uma frota de
primeira qualidade, nosso bairro era castigado por refugos. Na época em que não
havia calçamento, em diversas ocasiões, tivemos que mudar de ônibus porque o
que nós viajávamos atolava no lamaçal por elementar falta de potência. Muitos
coletivos eram munidos de um pedaço de madeira preso na alavanca da marcha. A
função era apoiar no tablado para evitar que “saltasse de marcha”. Um dos
proprietários (havia vários), por conta dos sucessivos enguiços no seu veículo,
ganhara o sugestivo apelido de “Arroela”.
Aos poucos, esse item foi equacionado. Os irmãos Calheiros
(Ernande, Pedro, Bonifácio), durante um certo período, dominaram o segmento
oferecendo ônibus mais bem cuidados, com mais segurança e conforto. Também coincidiu
com a conclusão do calçamento, velha aspiração, que teve no lendário coronel
Lucena Maranhão, eleito prefeito de Maceió, um grande realizador. Tenho a
impressão de que Maranhão faleceu antes da conclusão das obras.
Nas folgas, principalmente nas férias, nossa vida era bater
bola. Na época das frutas, em dezembro, eventualmente, aventurávamos saltar
muros de sítios para roubar mangas e cajus. A Granja Conceição era um dos
nossos sonhos de consumo com seus
carregados pés de jambo. Temíamos o irascível vigia, um velho indócil
cujo apelido dizia tudo: “Jararaca”. Subir em árvores não era nosso pendor. Lá
em cima, olhava para baixo e era tomado por certo pavor. As poucas vezes em que
tentei subir num coqueiro tive que amargar um belo arranhão na barriga. Mesmo
assim, havia quem dissesse que “os filhos do Dr. Zé Lopes eram os piores
maloqueiros de Bebedouro”. Por vezes, chegava algum estranho na nossa casa
reclamando que havíamos invadido seus sítios. Disposto a arcar com os
prejuízos, embora chateadíssimo, meu pai perguntava se os filhos dele estavam
sozinhos. E se ele (o reclamador) já tinha ido na casa dos outros pais... Apesar dessas ressalvas, a coisa não saía
barato para nós. O velho não compactuava com esses tipos de traquinagens dos
filhos.
A partir de um dado momento ficaria proibido jogar num largo atrás do Mercado. Havia muita
reclamação dos moradores. Vidraças eram quebradas, palavrões impublicáveis eram
ditos sem a menor cerimônia. Em torno desse amplo espaço, várias famílias
tradicionais tinham suas residências. As famílias Graça e Liberal/Pessoa eram
de lá. Do outro lado, tendo o Beco do Camelo como referência, ficava o Grupo
Alberto Torres e a casa do sisudo doutor Paulo Omena, dentista e chefe de uma
família numerosa. Sem favor nenhum e sem deméritos para as demais garotas do
bairro, suas filhas eram lindas.
Descobrimos, então, uma clareira bem no coração da “Mata dos
Leões”. O “Sete Lobão” era um campinho
horrível, rigorosamente decadente. Irregular, em forma de bacia enladeirada,
tinha um chão áspero, que mesmo para os
nossos grosseiros solados, de pés acostumados a ficar descalços, produziam desagradável
queimação noturna, pelo desgaste da planta dos pés. Verdadeira lixa. Mas foram
rachas inesquecíveis. Durante muito tempo joguei de goleiro. Posição ingrata,
sobretudo porque a bola era de borracha. As mãos ardiam. Pior quando pegava em
cheio no corpo...
Desenvolvia-me a olhos vistos. Aos 14 anos tinha praticamente
o tamanho que tenho hoje. Já conseguia tocar no travessão. Cheguei a titular do
Juventus e até disputei algumas partidas pela segunda divisão, no campo do
Mutange. Jogamos em Capela, São Miguel, Utinga, Fernão Velho, Atalaia... Eles
davam o dinheiro suficiente para pagar a condução.
À medida em que as responsabilidades aumentavam como goleiro,
crescia a angústia dos entardeceres. É que a miopia em um dos olhos criava um
grande problema com a queda da luminosidade. Certo dia, no campo da Usina
Uruba, estávamos com uma vantagem apertada no placar quando o juiz (local) deu
uma “patriotada” marcando uma falta, no mínimo duvidosa, bem perto da grande
área, frontal. Já fazia algum tempo que o sol declinara. Via sombras. Fechada a
barreira, o sujeito resolveu chutar em minha direção. Vislumbrei uma sombra
escura aproximando-se. Só podia ser a bola. Encaixei-a. Mergulhei por sobre a
rala grama e demorei-me deitado escondendo a bola, ganhando tempo. Enquanto
isso, meus companheiros cercaram o árbitro exigindo o final da partida. Fui
ovacionado. Saí quase carregado. Seria a última vez em que joguei de goleiro. Passei
a ser centroavante, posição que já ocupava no time de baixo (“segundo quadro”).
Mudar de posição não produziu melhoras visuais, evidentemente. Troquei a
responsabilidade de ser acusado de ter levado uns frangos. Era bem mais ameno deixar
de fazer um gol.
As disputas futebolísticas entre os times de Bebedouro
geravam tensão. Havia rivalidades que iam além das quatro linhas. Basicamente
eram cinco times: Bebedourense/Juventus, da “turma da Praça”; Santa Cruz, do
Flechal; Bandeirantes, da Chã; Abrantes, da Rua do Banheiro e Vasco da Gama, do
Calmon e adjacências. Curiosamente, tidos como a “elite” do bairro, nosso time
era o único a não possuir campo próprio. Também jogávamos contra times de
outros bairros, do vizinho Bom Parto e do Prado... Havia, sim, mútuos
preconceitos entre os que moravam antes e depois da estação.
Surtos de tentativas de movimentos intelectuais podiam ser
vistos. Hoje revistos. Uma geração anterior à minha – exatamente aquela do meu
tio Breno Mendonça, certamente estimulada por iniciativas semelhantes em outros
bairros (e até no próprio Bebedouro, na época de Bonifácio Silveira), criaria O
Idealista. O semanário -pelo menos essa era a intenção- abrigaria produções
literárias daquela juventude e de pessoas mais velhas dispostas a colaborar com
artigos, poesias, contos etc. O hoje juiz aposentado Hamilton Carneiro, junto
com os irmãos Alves de Oliveira, Breno Lopes de Mendonça, os irmãos Ferreira de
Mello, os irmãos Bezerra, meu pai, o padre Fernando, o jornalista Jorge
Assunção e outros tantos davam suas canetadas. Tempos depois, Jorge Assunção
fundaria um jornal que circularia muitos anos, O Hoje.
Hábitos interioranos estavam profundamente arraigados. Seu Né
Fragoso, por exemplo, percorria toda Maceió montado numa charmosa charrete
puxado a égua. Pequenos rebanhos de vacas leiteiras do seu Graça e do vereador
Zeca Ferrari costumavam percorrer as ruas pelo menos duas vezes por dia.
Diariamente, as temidas seriemas do coronel Saraiva também davam passeios em
busca de alimentos e banhos. Não acho justo dizer que carroças sinalizavam nosso
atraso. Ainda hoje elas continuam sendo utilizadas como meio de transporte de
materiais de construção. Contudo, um dos carroceiros chamava a atenção: o Zé Camelinho, apelido
pouco generoso para alguém que tinha uma medonha deformidade nas costas. Trabalhava
para seu Né Fragoso. Nas festas do 29 de junho era barman. Tinha um fair play
incrível. Era desumano o que fazíamos com aquele coitado.
Entre os tipos populares, já citei o negro Domingão, um cara imenso,
piedoso membro da Congregação Mariana. Voz de cantor de soul, suposto
gigantismo sexual despertava risos maliciosos na meninada. O coveiro Camelinho
era uma figura sinistra, medonha. Atemorizava as crianças e causava mal estar
nos adultos.
Um pescador, Antonio Caiçara, que tinha um dos membros inferiores
amputado era alvo preferencial das brincadeiras. O deficiente nem sempre estava
sóbrio. Iracundo, brandia sua muleta e agitava-se com impropérios ao ouvir,
“Caiçara, eu vou?”. Nunca soube a causa de tanta irritação por uma frase tão
banal.
Seu Augusto tinha uma
quitanda muito surtida. Morava na mesma casa do seu empório. Era um sujeito
meio agalegado, fortão, com vários filhos cujos nomes iniciavam com a letra G. Havia
algo de rude. Dizia-se que gostava de tomar umas cervejas no Bar do Relógio, na
Praça dos Palmares. Seu tira-gosto era uma dúzia de ovos, ou mais. Ovos duros
com muito sal.
Seu Joaquim, o açougueiro, trabalhava sem camisa. Não era tão
delicado, abstraindo suposto prazer culinário por sapos e rãs, nada mais havia de notável. Afinal, alguém cuja
função é destrinchar costelas, fêmures e pescoços está isento do dever de ser terno, meiguinho...
O advogado Antonio Leite e sua esposa, d. Sinhá Leite,
formavam um dos casais mais antigos do bairro. Leite era filho do pioneiro
Jacinto Nunes Leite, referido em páginas anteriores. Morava na mais emblemática
casa de Bebedouro. Tinham um filho, Ricardo Leite, que ainda hoje ocupa a
residência avoenga. Lateralmente, de ambos os lados, como extensão da bela
residência, havia um pomar, quase um sítio, onde abundavam cajueiros que
carregavam bastante. Eram um desafio aos “maloqueiros”. Houve uma época em que
batíamos bola na própria Praça B. Silveira. Acho que o logradouro estava sendo
preparado para mais uma reforma...
O que quero dizer é
que a bola caía no sítio de Antonio Leite. Lá havia vigia e cachorros. Ambos
indóceis. Às vezes, meio de má vontade, cara trancada, o vigia devolvia a bola.
Outras vezes, o sujeito remanchava e alguém ia bater na porta da casa e apelar
aos próprios donos. Nas minhas memórias, o velho advogado era um homem
tranquilo. Quero crer, de compleição franzina. Dona Sinhá era altiva. Sua
vaidade estava presente nos maxilares, inescapavelmente ruborizados por algum
carmim. Dizia-se que ela, às vezes, poderia ser autora de algum comentário mais
acerbo. Alguém acrescentava: D. Sinhá nunca falou mal de Doutor José Lopes...
De fato, papai receitava pessoas da sua família, havia recíproco respeito. Eventualmente,
Sinhá Leite ia na nossa casa simplesmente para jogar conversa fora com mamãe. Ocasionalmente,
o casal nos presentava com algumas dezenas de amarelados cajus.
Figura de destaque na comunidade, Zeca Ferrari era compadre
do meu pai. Descendente de italianos, talvez houvesse um quê de escárnio no seu jeito. A esposa, D. Dolores, fora
professora de desenho e francês da minha mãe, no Bom Conselho. Uma senhora
alta, bonitona, distintíssima. Ferrari era dono de uma padaria e de umas
“vaquinhas” e também vereador pelo PTB. Consta ter havido um aborrecimento –
entre o médico Zé Lopes e o padeiro - por conta de um apoio que meu pai teria
dado a um seu adversário. As preferências políticas de meu pai (mesmo discretas,
embora firmes) nem sempre agradavam aos getulistas. Jorge Assunção foi outra
personalidade de destaque no bairro. Sua mãe, cliente do meu pai, morava quase
em frente a nós. Foi secretário de governo do Muniz Falcão. Por motivos
semelhantes ao do padeiro, estremeceria seu relacionamento com o médico de sua
genitora.
O seu Audálio era funcionário público, da Assembleia, se não
me engano. Cara bexiguenta, havia quem jurasse que era um mentiroso compulsivo.
Franzino, enquanto falava, tinha o hábito de suspender as próprias calças
usando os cotovelos numa coreografia um tanto ridícula. Dona Helena Pires, sua
esposa, era uma dama. Moravam em frente ao Mercado, numa das primeiras casas
depois do trilho. Helena nunca
engravidou. Era diretora e professora de uma conceituadíssima escola de
datilografia. Marcaria época. Ao final do curso, rotineiramente, convocava
professores de altíssimo nível para participarem da banca. Monsenhor Tobias era
um dos mais requisitados, o que conferia ao graduado um sabor todo especial.
Falo de mentirosos compulsivos e me chega a figura do
sargento Antonio. Não sei sua origem. Mas o militar aportou no bairro trazendo
na bagagem uma série de histórias que pareciam um tanto fantasiosas. Dizia-se
ex-combatente. Era verdade, posto que uma vez por ano vestia uma farda e
participava de desfiles como herói de
guerra. Inúmeras vezes eu o vi levantando a boca da calça para mostrar
cicatrizes adquiridas nos campos de batalha, na Itália. Conceituava-se que ele
seria todo remendado de platina...
As novas atribuições paternas não influiriam tanto nos
cuidados com os filhos. O velho Colégio Diocesano, da Rua do Apolo, mantinha
uma caderneta vermelha onde eram coligidas as notas das provas mensais. Mas
também havia folhas destinadas ao registro das atividades semanais, onde
constavam dois itens: Comportamento e Aplicação. Certa vez, um de nós chegou
com um acachapante e temerário “cinco e cinco”. Ou seja: “cinco em
Comportamento” e “cinco em Aproveitamento”. Não era tarefa das mais amenas encarar o velho com
semelhantes notas. A palmatória ainda funcionava bastante.
Contudo, nosso pai ficaria injuriado mesmo com o “cinco em
Aproveitamento”. Destarte, na própria caderneta, endereçaria um comentário em
que expressava seu desacordo com a avaliação. Digamos que se resignava com o
“cinco em Comportamento”, mas considerava descabida a perda de pontos referentes aos conhecimentos
(aplicação). Havia a absoluta certeza de que os filhos iam com as lições
aprendidas de “trás pra frente e da frente pra trás”. Na semana seguinte,
constaria um “10” em Aproveitamento, seguido de irônico ponto de interrogação.
O “frade” não apreciara os “considerandos” paternos
Não saberia dizer se foi esse mesmo irmão quem andou se
excedendo e puxado as orelhas do Robson. O fato é que o velho foi ao colégio
tomar satisfações. Não aceitou as ponderações do agressor. Encerraria a questão
aconselhando o Irmão a não repetir o gesto. Faria um adendo: se quiser puxar
orelhas de meninos desobedientes, que tratasse de ter filhos.
Anos depois, já mais maduro, ele retornava à Clínica pela
Fernandes Lima, quando tomou um susto ao visualizar nosso irmão mais novo, Zé
Filho, (José Lopes de Mendonça Filho), montado numa bicicleta emprestada. Zé Filho fora
impedido de assistir aula. Esquecera-se de levar a caderneta. Por isso, estava
voltando para casa para apanhá-la, conditio sine qua non. Injuriado, aboletaria
o garoto e a bicicleta e foi ao colégio, àquela altura, já na Av. Antonio
Brandão. Seria um diálogo áspero. Afinal, meu pai deixara, pessoalmente, o
garoto de cerca de dez anos, na porta do colégio. E se o garotinho fosse
atropelado...
Em determinadas momentos, não havia meias palavras. Logo nos
primeiros dias de Diocesano, nosso pai nos instruiu sobre quaisquer tentativas
de abusos sexuais, da parte de quem quer que fosse. Tolerância zero para alisadinhas em bunda, exibições de órgãos
sexuais ou assemelhados. A orientação era defender-se a todo custo, valendo-se
de chutes, pedaços de paus, pedras, facas, punhais... O diabo...
Por uma terrível coincidência, no ano que entramos no
Diocesano, um tal de Irmão Barreto seria transferido abruptamente. Esse sujeito
tomava conta de um dos internatos e fora denunciado por prática de abuso sexual
contra um dos internos... Um escândalo apenas parcialmente abafado.
Cursava pela segunda vez a quarta série primária. Repetia o
ano por falta de idade para ingressar no curso ginasial. Era um dos melhores
alunos da turma. Num dado momento, não sei se por inveja, passaria a ser
hostilizado por um garoto cerca de dois anos mais velho. Era um menino forte
(eu era magro), do sertão, que todas as vezes que passava por mim me dava um
encontrão com o ombro. Sentia-me encurralado. Literalmente amedrontado. Ao
mesmo tempo, o ódio ia crescendo dentro de mim. Ainda que o meu irmão Robson
fosse meu fiel escudeiro, e eu o achasse muito valente (e ele era mesmo),
evitei chamá-lo para me ajudar. É que o sertanejo era tão forte que eu temia que o Robson não fosse
páreo para ele. Um belo dia, na calçada em frente ao campo de basquete, o
sujeitinho esbarraria em mim, de propósito. Não tive dúvidas: enfiei-lhe a mão no
focinho com tal determinação que ele bambeou. Os dedos marcariam sua cara
acaboclada. Ao recuperar-se, tentou revidar. Usei a tática do boxe. Com os
punhos cerrados, mantive a guarda alta, mantendo-me longe do alcance dos seus braços.
Logo chegaria a turma do deixa-disso. Como castigo, passamos algum tempo de pé,
depois dos relatos de praxe. Um santo remédio. Nunca mais tentou nada. Nas
provas, rastejava-se pedindo auxílio para as questões. Eu ensinava. Jamais
confiei piamente que ele iria se conformar com o terapêutico tabefe.
Substituto do Dr. Paulo Netto (que fora assassinado) como
médico do colégio, duas vezes por ano, o tesoureiro do Marista ia acertar as
contas com meu pai. Visita noturna, o
Irmão aproveitava e “fazia a nossa cama”. Era uma ave agourenta. Ar enigmático,
mal nos cumprimentava. Parecia sentir prazer em encher a cabeça do nosso pai de
abobrinhas. Temíamos suas inconfidências. Nem sempre se deu bem. Relatava, por
exemplo, que nos trancávamos nas privadas (fétidas) para fumar, fato que papai
não se impressionava. Além dessas supostas transgressões, o cara nos descrevia como
hostis, beligerantes... Segundo o tesoureiro, tínhamos (grosseiros suburbanos)
o mau hábito de insultar os “meninos Fulano
e Beltrano”, quem sabe, garotos mais educados que nós, filhos de um
advogado famoso. O velho ficava mordido com essas insinuações que sugeriam
depreciação de suas crias. No fundo, talvez quisessem dizer que ele não era tão
diligente como pai. Não se conteve e perguntou ao “frade” qual era a idade
desses “meninos” que ele tanto protegia. O Irmão ficou meio sem jeito e
terminou admitindo que eles eram mais velhos...
A partir dos quatorze/quinze anos, estudava de manhã e à
tarde fazia as vezes de secretário/recepcionista do meu pai, no seu consultório,
na própria Clínica. Desde 1962 fomos morar na Lilota. Ao mesmo tempo em que os
andares inferiores, foram ocupados pelos pacientes. Seria uma prolongada convivência
que nunca nos incomodou.
A “Vila Lilota” era uma imponente mansão construída durante a
Primeira Guerra Mundial, sobrevivente da “Era de Ouro” do Bebedouro do Major
Bonifácio da Silveira. Estilo amouriscado, fora habitada por D. Iaiá Leão. Ela
era uma das beneméritas do Asilo das Órfãs. As freiras retribuíam a generosidade
levando as alunas para animarem festejos na própria Lilota.
Minha mãe, dentre outras, sob a vigilância das religiosas, fazia parte desses corais que, nos Natais,
enchiam de maviosidade e juventude os salões aristocráticos da mansão. Nos
devaneios mais fantásticos, mais de uma vez, a adolescente Rosinha quedava-se a
admirar as pinturas das paredes do belo salão, as escadas de “mármore de
Carrara”, os lindos vitrais, o corrimão da escadaria, e os requintados lustres,
deixando-se conduzir pelos sonhos, antevendo-se dona daquela joia
arquitetônica...
Com a morte de Iaiá, a casa ficara vazia, não obstante bem
cuidada por um prestimoso funcionário, seu José de Lima. Dois anos antes,
houvera marcante transformação na nossa família. Com a confiança e a
formalidade de um diploma de especialista na mão, meu pai dedicava-se cada vez
mais à Psiquiatria. Já não fazia partos. Seu canto de cisne como parteiro foi
em casa, em 1960, partejando a filha caçula, Maria de Fátima. Durante anos a
fio, sempre que tinha oportunidade, ele descreveria as dificuldades desse
nascimento. Entusiasmava-se. Nomeava a apresentação do concepto e as manobras
obstétricas que tivera que realizar para o êxito do procedimento. Mãe e filhas
salvas e sadias. Um relato emocionante.
Como queria dizer, em 1960, meu pai instalou uma pequena
clínica psiquiátrica na Av. Major Cícero de G. Monteiro 2079, no Mutange. A
fama de bom psiquiatra e de zeloso dono de hospital cresceu rapidamente. Em
pouco tempo, a Clínica de Repouso chegaria ao limite de sua capacidade:
quarenta pacientes. Urgia mudar-se. Foi quando surgiu a opção de compra da Lilota. A bem da verdade, um projeto quase
impossível. Depois de idas e vindas, os serviços psiquiátricos prestados a
graduados funcionários da Usina Leão, seriam fundamentais no êxito da
negociação. A utopia de minha mãe realizara-se.
Em Bebedouro, nem só do Clube 29 de Junho vivia a rapaziada.
Incursionávamos pela Chã e o Flechal. Estendíamos nossos tentáculos até Fernão
Velho e Rio Largo. Pessoalmente, sentia muita dificuldade de aproximar-me de
uma garota. Embora tímido, ganhei,
imerecidamente, diga-se de passagem, fama de abastado (e de garanhão). Era visto
com desconfiança pelos pais das mocinhas, que recomendavam manter distância
desse “perigoso e rico playboy”. Suas cabeças eram povoadas pela falsa
impressão de que só queríamos nos aproveitar das indefesas donzelinhas...
Aos poucos, Bebedouro ia ficando para trás. Deixaríamos de
frequentar o Clube 29 de Junho, com seus animados bailes de Carnaval, com suas
quadrilhas puxadas pelo polivalente Né Fragoso, onde pintariam as primeiras
paqueras. Ficamos indelevelmente marcados por essas lembranças. O Bar Ponto
Final, o “Bar do Dito”, em frente à Praça, tradicional reduto da boemia, onde “esquentávamos”
com algumas doses de “rabo de galo”, seria substituído. Passamos a participar das
festas de Carnaval da Fênix e do Iate. Era outro departamento. Dos discos de
Claudeonor Germano, no 29 de junho, tínhamos o celebrado cantor ao vivo, sob a frenética
musicalidade da orquestra Marajoara do Recife. No Iate, eram os famosos Fausto e Passinha que comandavam.
Show de bola.
Não obstante, continuava um bicho do mato, arredio, tímido,
desconfiado. Sem convivências diárias com as burguesinhas do Farol e da Pajuçara,
também tive inibições na hora das danças e das paqueras. Ficava mais à vontade
nos cabarés de Jaraguá. Cheio de moral pelos serviços prestados na Clínica, o
velho, depois de muitas cantadas, deixava que eu dirigisse sua Rural. Havia uma
rota: Bar do Chopp, onde encontrava colegas do colégio, regado a Ron Montilla,
e lá pras onze horas o puteiro de Jaraguá. Confesso que nem sempre “chegava às
vias do fato”. Começava a ter o critério de seleção. Até por não exagerar na
bebida. Ou seja, as mulheres feias e sem graça continuavam feias e sem graça.
Ao iniciar os estudos na Medicina, divorciei-me quase
completamente do meu querido bairro. A diáspora, na verdade, fazia já algum
tempo que começara. Os amigos de infância, a maioria com mais idade que eu, já
não tinham tempo. Muitos não continuaram os estudos. Biu Bala, um emérito
driblador, perdeu-se na poeira da estrada.
Nunca soube o exato destino de Mané Castanha, um dos maiores lentes da
ximbra. Certa vez, por sinal, Mané Castanha, cujo tamanho nada tinha a ver com
sua idade, acertou-me no nariz um murro que me faria sangrar alguns dias.
“Negro Gil”, irmão do “Negro Béu”, também tem destino ignorado. Zadir Moreira,
o maior craque do nosso time, foi trabalhar na Petrobrás. Alavacir Martins,
primo do Zadir Moreira, também mais velho, deixaria a convivência diária para
trabalhar. Péricles, cuja estatura
reduzida não chegava a interferir tanto no seu inquestionável pendor como ponta
direita, era comerciário e morreria cedo. Provavelmente por complicações
relacionadas a recalcitrante hipertensão arterial. Outro hipertenso na vida
adulta, Gilson, apelidado de “Pau Vestido” pela magreza, tornou-se excelente
vendedor de “A Radiante”. Titular
absoluto como volante, sempre foi um batalhador. Ainda garoto, morando com o
avô, de raquíticas posses, tinha um carro de mão que o ajudava a ganhar
trocados transportando bagagens a partir da estação. Mais tarde, montaria sua
própria loja de calçados, na Rua do Sol, e ainda um restaurante para almoços
comerciais, também no centro.
Recebi boas orientações de como me posicionar no gol com o
Gerson (Gereba). Ele já chegou em
Bebedouro praticamente adulto, mas integrou-se rapidamente. O futebol, digo
mais, o esporte, tem essa característica de reunir pessoas. Gereba chegaria a
ser goleiro titular do CSA. Revezava-se com Batista, um atleta de fraca saúde,
mas talentoso. Carregava um defeito
terrível para quem aspira fazer carreira nessa posição: reduzida estatura.
Conduzido pelo Gereba, treinei nos juvenis do Mutange, nos tempo do Ivon
Cordeiro. Envergonhado, evitei contar que tinha problemas visuais. Subitamente
larguei os treinos, até pelo fato de haver outros bons goleiros treinando, como
o Luiz França e o galego Guido, que não tinham queixas visuais.
Os irmãos Evaristo, filhos do seu João do SAEM, continuaram
estudando. José Evaristo, João e Jaime formaram-se em engenharia. Jairo, outro
irmão, é coronel reformado da PM. José Evaristo é da Fundação Getúlio Vargas,
em São Paulo. João, além de engenheiro, é coronel da PM. Jaime é professor da
Ufal e escritor e casou com uma amiga de infância, Salete Lamenha. Uma das
filhas do casal foi minha aluna na Ufal. Jadete, outra filha do seu João, é médica. Foi aluna aplicadíssima na Ufal.
Encontro com certa frequência Jonas Pessoa, frequentador de
caminhadas na orla. Era volante do time. Hoje destacado empresário. Klebel
Loureiro, o ponta esquerda do time, quer parecer que os anos não passaram para
ele. Continua com a mesma fisionomia. Quis o destino que nossas famílias se
cruzassem num casamento de minha sobrinha com um seu neto.
O galego Severino “Boca de Chuteira” quando foi morar em Bebedouro, vindo dos
sertões, nunca tinha jogado bola. Apaixonou-se pelo futebol. Já era um pequeno comerciante
e, portanto, ganhava dinheiro. As más línguas diziam que um amigo recebia grana
para ensiná-lo a chutar, driblar, fazer “pontinhos”... Com raro talento, em
pouco tempo o galego tornou-se titular do nosso time. Dificilmente era
driblado. Raçudo, com invejável preparo físico, contabilizava nunca haver feito
um gol. Ninguém é perfeito. Com mais de setenta anos, soube recentemente que o
Boca de Chuteira continuava a rachar com a saúde de touro reprodutor.
Alexandrão também aportou em Bebedouro por obra do destino. É
que o pai dele, Dr. Meuse Lopes, era agrônomo e foi ser administrador da Granja
Conceição. Ele, (Alexandre) e o irmão, Mário Jorge, rapidamente se entrosaram
na turma, graças, mais uma vez, ao futebol. Era altão, um pouco lento, mas sua
simpatia pessoal o levaria a titular do nosso time, como quarto zagueiro.
Formou-se em Odontologia, como o avô, o famoso Hipólito Lopes. Xandrão tinha
belas irmãs aloiradas que nunca foram vistas circulando pelo bairro.
Luiz Rijo, filho de um
militar reformado da PM, tinha inteligência privilegiada, foi estudar Geologia no Recife (os tempos da
roleta tinham passado). Sua irmã, Diva Rijo, era psiquiatra. Ambos irmãos
morreram precocemente.
Geoberto Espírito
Santo, bisneto do Major Bonifácio Silveira, foi criado com esmero pelos avós,
José Ovídio e d. Isaura. Os deliciosos rachas no seu quintal ficaram na
história. Reinava sozinho na residência avoenga. Além do futebol entre
frondosas fruteiras de cajaranas e buracos de caranguejos, era aficionado por
time de botão. Foi meu colega de turma no Diocesano/Marista. Era um bom
armador. Jogou pelo juvenil do CSA. Se não me engano, disputou partidas no time
principal. É um conceituado engenheiro. Tinha vários irmãos. Da minha geração
eram duas meninas muito bonitas, Gina e Geodete e um irmão, George, hoje reformado
da Marinha de Guerra do Brasil.
Joãozinho, filho do seu Vicente (vizinho de outro amigo, Ciço
Papagaio e do seu Antonio, meu alfaiate), cujo apelido era João Bobo, é a prova
inconteste de que quem vê corpo não vê cabeça. Gordinho desde sempre, tendendo
a balofa, garotinho de 10 anos, apreciava jogos infantis com uma vizinha
deficiente visual. Surpreenderia a todos quando, ainda garoto de 16-17 anos,
conseguiu entrevistar o Pelé, em Recife, no intervalo de um jogo, do Santos, se
não me engano. Ficamos boquiabertos com a esperteza do João. Tornou-se
combativo político de esquerda. Foi vereador. Era um jornalista muito querido.
Adotaria o sobrenome de Freitas Neto. Sua morte, num acidente de avião em Cuba,
foi muito sentida.
Mauro Guedes era afilhado do meu pai. Seu genitor, José
Sabido, tinha uma venda muito sortida. Esbanjava prosperidade. Morreu
precocemente, se não me engano de uma complicação da febre tifoide. Mauro foi vereador.
Entusiasmou-se pelas corridas de jegue, folguedo que o Major Bonifácio
prestigiava. Há quem diga que sua ascensão como político teria sido em
decorrência dessas brincadeiras. Foi meu aluno na Escola de Ciências Médicas. Goza
de prestígio como clínico, com consultório popular na antiga venda do pai, em
Bebedouro.
Manuel Góes, meio-irmão de minha mãe, fez carreira como
bancário. Formou-se em Psicologia. É um saudosista como eu. De vez em quando
nos encontramos. Habitualmente, objetos internos são revolvidos, muita vez de
forma pouco confortável para ambos. Não sei se já comentei antes, mas o Mané me
levou algumas vezes ao baixo meretrício, em Jaraguá, sob o consentimento tácito do meu pai. Posso dizer que ele me
ensinou o caminho das pedras (e do pecado). Chegávamos cedo. Sabia-se que antes
da “zona” abrir, as mulheres circulavam displicentemente pelos corredores dos
prostíbulos. Pagavam-se preços, digamos, mais justos. Mané Góes bebia
pouquíssimo. Com um copo de cerveja já passava mal, botava pra vomitar... Um
vexame. Ainda tinha a ressaca no dia seguinte. Além do parentesco muito
próximo, essas características, quero crer, aos olhos do meu pai, faziam do
cunhado a companhia ideal para os verdejantes filhos.
Os irmãos Carnaúba, filhos do comerciante Genésio Carnaúba (o
primeiro a colocar um posto de gasolina no bairro), são profissionais de alto
nível. O velho Carnaúba era um pouco irritadiço. Lula (Luiz Carnaúba), seu
filho, sempre foi diferenciado, culto, estudioso... Até Um pouco chato. Não é, pois, por acaso que hoje é um dos mais
brilhantes procuradores de Justiça. Genésio, mais velho, desde cedo
interessou-se pela fotografia. Teve no famoso Japson Almeida um mestre e
conselheiro. É consagrado fotógrafo.
Um grande amigo de infância foi o José Renaldo Lins. Tomava
conta da venda do avô, seu Jacinto. Esse estabelecimento, na esquina da 25 de
dezembro com a Passos de Miranda, era um ponto de encontro antes de partirmos
para os rachas no Sete Lobão. Renaldo estudou no Marista. Ainda hoje não sei a
razão do apelido “”Megatério”, que os colegas de colégio o batizaram. Era ruim
de bola. Ele e o irmão, Renan.
Antonio Luna também
era comerciante. Trabalhava da venda do pai. Mais velho, evitava o pândego,
fazia grupo com o Mané Góes. Casou com uma bebedourense, Jacione, e foi
advogado do Grupo Sococo.
Vadinho Saraiva era um goleador nato, em rachas. Canhoto,
chute fortíssimo, adorava ficar na banheira colado ao goleiro adversário.
Qualquer descuido ele marcava. A irmã, Edinha Saraiva, era amiga das minhas
irmãs. De vez em quando, na nossa casa, eu me envolvia nas brincadeiras
coletivas em que ela participava. É casada com o João Evaristo.
Os irmãos Motta, filhos do seu Motta da padaria e de Dona
Zelma, também tornaram-se profissionais destacados. Meu estimado amigo Marcelo
Motta, conhecidíssimo na cidade, um grande craque do passado, hoje gozando de
merecida aposentadoria, foi zeloso funcionário da Câmara Municipal de Maceió.
Marcos Motta, mais novo, é médico, urologista do HU. Ambos grandes figuras,
simpaticíssimos.
Paulo Omena, filho do odontólogo homônimo era mais ligado ao
Mané Góes, meu tio. Tinha muitos irmãos. Família de gente bonita, sobretudo as
recatadas irmãs, as lindas Marias e Luzia. Paulo Omena é engenheiro em Recife.
Contraiu núpcias com uma moça do bairro, descendente de Jacinto Nunes Leite.
Frederico e Francisco eram cunhados do Paulo Omena, também descendentes do
pioneiro. Fred foi juiz de Direito e faleceu recentemente. Casou com a Luzia,
também já falecida, irmã do Paulo Omena.
Meu tio-irmão, Breno Mendonça, a quem devoto especial carinho,
depois que se aposentou do Banco do Nordeste, foi aprovado em concurso para
Advocacia da União, função que ocupou até quando a saúde permitiu. Breninho é o
decano da nossa família, dos Lopes de Mendonça. É uma pessoa admirável, que serve de exemplo a todos nós.
Meu irmão Robson, creio, afastou-se antes de mim. Não era tão
ligado ao futebol. Jogávamos muito, às vezes só nos dois, em casa, na varanda
quase sem plantas, de ”rebatida”, ou então disputávamos partidas alternando as
posições. Uma vez, um era o goleiro e o outro o chutador e vice-versa. Por ser
um ano e meio mais velho, os interesses, num dado momento, não coincidiram. Por
pouco tempo. Senti o peso da responsabilidade aumentar quando ele foi aprovado,
de primeira, no vestibular de medicina.
Minha irmã mais velha, Rosinete, casou cedo. Sua convivência
no bairro não teve a mesma intensidade que a minha. Dançou pastoril, foi da
Cruzada Eucarística... Mas o doutor Zé Lopes não era partidário de filhos na
rua, sobretudo as meninas. Em 1960, estudando no Colégio Sacramento, seria
convocada a secretariar nosso pai, função, aliás, que seria ocupada por quase
todos os irmãos, sucessivamente. As irmãs mais novas que o trio mais velho –
Rosete, Rosilda, Rosélia e Rosaline, e mais velhas que o “segundo grupo”,
(formado a partir do nascimento do Zé Filho) também tiveram uma convivência
apenas razoável em Bebedouro. Aos onze anos estudavam em “colégio de Maceió” e
aí tudo mudava: novas amigas, outros interesses, outras cabeças... Algumas garotas
do bairro frequentavam nossa casa. Havia jogos de queimado, rouba-bandeira etc.
A meu ver, nossos pais, certamente pela quantidade de filhos circulando em
casa, impacientavam-se com mais crianças barulhentas. Não sei se estou sendo
injusto...
À guisa de recordações, voltei a Bebedouro poucas vezes, para matar saudades no tradicional
racha de Ano Novo, nas dependências do balneário do seu Né Fragoso. É com
grande tristeza que registro que seu disputado
banho acabou. A límpida água deixou de escorrer. Há quem diga que o desmatamento
à montante decretou a oclusão dos delicados mananciais que alimentavam a
“piscina do velho Né”.
A separação não quis significar menosprezo. Sirvo meu bairro,
meus amigos de infância e seus familiares como médico. Carrego na alma
responsabilidades intransferíveis. Tento mimetizar (sem o seu carisma) os trabalhos
comunitários que voluntariamente meu pai fazia. Esforço-me por retribuir, como
gratidão e respeito, os inolvidáveis momentos vividos naquele recanto, que me
viu nascer, crescer e até ser feliz.
Maceió, 06 de maio de 2014
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