De um certo viés, a recente morte da polêmica comediante Dercy Gonçalves nos remete à falecida cantora francesa Edith Piaf, até pelo tipo físico. Ainda razoavelmente jovem, com a saúde debilitada e a carreira em declínio, Piaf estouraria as bilheterias dos teatros com o grande sucesso “Je ne regrette rien” (Não me arrependo de nada), espécie de canto do cisne a fechar en grand stylo extraordinária vida artística. Nos últimos anos, a brasileira Dercy costumava repetir: “Não tenho mágoas de nada. Vivo o hoje.”
Laureada em vida e depois de tantas emocionadas homenagens póstumas, pode soar como imperdoável heresia admitir publicamente não compartilhar com o humor de Dercy (assim como não via graça em Grande Otelo), ainda que seja inegável que ela tenha sido fiel a um personagem. Com efeito, o grande papel de Gonçalves foi o dela própria, script do qual não se afastou um milímetro, até o último suspiro.
A par de incomum lucidez para a faixa etária, acho que parte da mídia, sobretudo os programas de auditório, usavam a Dercy somente para explorar seus destemperos semânticos, a arrancar lúgubres gargalhadas das platéias. Certamente o seu lado mais conhecido, não obstante o menos brilhante.
Sob o manto de secular vivência, testemunha ocular de fases tumultuadas do País, nunca soube que a atriz tenha sido instada a dar um depoimento sobre a Revolução de 32, por exemplo, ou sobre a ditadura Vargas. No máximo, era provocada a recontar à exaustão suas “espertezas” para driblar censores da ditadura militar. No fundo, quem sabe, intencionava-se transformá-la em mais uma mártir política do arbítrio. É claro que havia um discurso pronto e coerente. Afinal de contas, vai-se ao teatro ouvir palavrões quem quer. Por outro lado, imoralidades bem maiores são a fome, o desprezo pela saúde e educação, a corrupção, a impunidade...
De qualquer modo, algumas vezes me perguntei se era uma coisa realmente engraçada estimular uma senhora de 100 anos a soltar verbos, adjetivos e substantivos impróprios, sobretudo os dois últimos, com o intuito de se constatar sua grande forma.
Evidente que a comediante construiu vivenda de destaque no cenário artístico nacional. A biografia, desde uma infância sem recursos, a fuga para acompanhar modesta trupe de artistas, o relato de estupro, as recorrentes participações nas célebres chanchadas, não deixam dúvidas sobre sua capacidade de superação, garra e muito talento profissional.
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