domingo, 9 de dezembro de 2018

TARRAFA E A COOPERATIVA BOA PESCA


TARRAFA E A COOPERATIVA BOA PESCA
RONALD MENDONÇA

No Bebedouro da minha infância, situado na Rua Cônego Costa, perto da emblemática ponte e da estação ferroviária, havia um terreno baldio com cerca de vinte metros de frente e não sei quantos de profundidade. Os fundos desse terreno davam para o mangue e consequentemente para o braço da lagoa Mundaú, cuja aparente mansidão lambe o lado austral do bairro. Aquele pedaço de terra que nos meus tempos de menino frondeava uma formidável castanheira, fora sede de dois empreendimentos que movimentavam a saúde financeira do arrabalde. Durante algum tempo um posto de gasolina ali pontificava, tendo como proprietário o dinâmico Genésio Carnaúba, sisudão, no seu medonho bigode, não obstante um grande empreendedor. Algum tempo depois, uma outra atividade ali florescera: um entreposto de caranguejos e sururus.
O entreposto de crustáceos, segundo relatos orais e apócrifos de antigos bebedourenses, tentava modelar-se nas cooperativas. Havia um líder quase lendário, um velho pescador mal-criado que tivera um dos membros inferiores amputados. Cordial, quase humilde, de quando em vez agitava-se, sobretudo depois que ingeria algumas lapadas da “aguardente de cabeça” do alambique de seu Cabral, meu padrinho de vela. Cabral era um senhor de uma distinção de lorde. Morava na mesma calçada alta onde habitávamos. Até hoje, tento encontrar uma justificativa plausível, patrocinada pela direção do Colégio Bom Conselho, para a demolição desse acidente geográfico (a calçada alta), um dos cartões postais do bairro.
Como estava a relatar, o pescador “Tarrafa”, cujo nome era Antonio, ao embriagar-se causava vexames na família e nos moradores. Vernizes de política faziam-no um caricatural Lênin de bengala e muletas. Era nessas horas que a molecoreba o provocava:”Tarrafa, eu vou?” O deficiente altercava – “Pra minha muleta pequena, venha!” As provocações continuavam: “Tarrafa, eu vou?” O pobre homem apelava –“Para o C de sua mãe, pelanco de corno, vá!” E a procissão seguia, o velho à frente bêbedo, como um Cristo desfigurado carregando e sendo carregado pelas suas toscas órteses de madeira lavrada, seguido por impiedosos garotos, tais quais as turbas enfurecidas que xingavam o crucificado do Monte Calvário.
Poucos sabiam que aquele velho cambaleante e decadente, desmoralizado na sua embriaguez, um dia já havia liderado um movimento societário, cooperativista que durara cerca de sessenta anos. Nos seus eitos solitários, montando uma canoa à vela, singrando com ímpar elegância e lepidez a lagoa Mundaú (muitas vezes, adentrando-se em mar aberto), ao ver o desperdício dos frutos enterrados nas lamas da laguna, idealizou e fez nascer um dos maiores e mais duradouros empreendimentos do bairro de Bebedouro.
Fácil não teria sido. Pescadores, sururuzeiras e outros que tais escutavam suas preleções com desconfiança. Como humildes pescadores enfrentariam os grandes conglomerados pesqueiros, que àquela altura já abarrotavam mercados e feiras com seus produtos congelados, vindos dos mares de Santa Catarina e até das frias águas do Mar do Norte e dos mares Barent. O audacioso e sonhador Tarrafa, ainda com o cabedal físico intacto, mostrava-lhes mapas. Certo dia chegou a levar um globo geográfico iluminado por dentro. Os candeeiros teriam se apagado e a voz tonitroante cuja imagem iluminada pelo globo metamorfoseara o agigantado pescador, assemelhando-o a um Moisés planificando a fuga do Egito.
O terreno existia. Genésio abrira mão, depois de desistir do posto de combustível. Como paga, semanalmente, algum fruto da lagoa era entregue em sua residência, à leste da Matriz de Santo Antonio.
O velho Tarrafa era um intuitivo. Pouca leitura, muitas vezes lia só os comentários iniciais e já desvendava mistérios que grandes inteligências levavam décadas para compreender. Num passe de mágica, a fome acabara entre os pobres da orla lacunar. Na época do defeso, o respeito pelo ambiente, que lhes dava sustento e educação aos filhos, era minuciosamente respeitado. Frigoríficos acumulavam víveres para os tempos de recesso na pesca. Como chefe desse clã, Tarrafa também prosperava. Família de muitos filhos, aos poucos, o velho líder foi cedendo às demandas familiares. Chegaria a dar o seu próprio posto de comando a uma das filhas, acreditando num potencial que se derretia em contato com ar.
 A irresponsabilidade da filha iniciou o processo de autodestruição. Os cooperados já não recebiam pelo que produziam. Os contratos de abastecimento das redes hoteleiras e hospitalares foram suspensos pela falta de compromisso da irresponsável e incompetente dirigente. O velho Antonio Tarrafa mantinha contratos pétreos com os barzinhos da orla, em franca expansão turística. Até Marechal Deodoro, nossa antiga Madalena do Sul, desistiu de participar da Cooperativa Boa Pesca, denominação aprovada pelo Conselho Diretor da empresa. Os gordos goiamuns e as patas de uçá perderam a qualidade, exalavam odor amoniacal, muitas vezes eram entregues congelados, mas deteriorados. Os pescados passariam a ser devolvidos com admoestações. Magros e desenxabidos, os comerciantes buscaram os velhos fornecedores da Bahia e de Sergipe. Outros empreendedores, de olho no sucesso da Boa Pesca, invejavam e torciam pelo fracasso.
Tarrafa, ainda com as duas pernas voltaria ao mar aberto. Resolvera salvar a empresa com algo espetacular. Já havia decidido: a filha irresponsável e truculenta, que havia posto no seu lugar, seria defenestrada. Munido de uma dúzia de garrafas da Azuladinha de Coruripe atravessou cautelosamente a Barra Nova.
Já saíra de casa meio chapado. Era uma noite tenebrosa que meteria medo em qualquer um, menos no velho Tarrafa. Uma meiota da Azuladinha já havia sido devorada quando algo monstruosamente grande e escuro, celeremente, aproximou-se de sua frágil embarcação. Num último lampejo, pensou estar diante daqueles monstros marinhos cujas histórias ouvira na infância mas que nunca dera fé.
Tarrafa daria por sí muitos dias depois. Estava no Pronto Socorro Municipal, na Rua Dias Cabral. Ninguém, nem o próprio, sabia dizer como chegara vivo e sangrando na Praia do Sobral. Uma das pernas estava esfacelada, faltavam-lhe partes, talvez mordidas de peixes. A lenda quis dizer que Tarrafa fora salvo montando algum velho peixe marinho amigo e solidário, que o pusera no dorso e o jogara no Sobral. O poderoso peixe teria afastado os predadores do mar.
Endividada, desmoralizada, o epílogo da Cooperativa Boa Pesca era inescapável. Tarrafa arrastou a sua dor enquanto pôde. Num dia de maré alta, humilhado, desprender-se-ia das muletas e saltou para a morte nas turvas e turbulentas águas sob a sua querida ponte, onde milhares de vezes ali quedava-se para assistir a morte temporária e crepuscular do avermelhado sol poente.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

neurocirurgia

domingo, 25 de novembro de 2018




SONHOS E DORES
 RONALD MENDONÇA – médico e membro da AAL.
                                                                      

SONHOS E DORES

A eleição (e a posse) do poeta Jucá Santos para uma cadeira na Academia Alagoana de Letras resgata uma dívida moral. Com efeito, o eterno presidente da Academia Maceioense de Letras era uma ausência doída na vetusta AAL, uma lacuna que precisava ser preenchida urgentemente. Repito o que alguém disse aos pares, em informal cabala de adesões: “Os velhos têm pressa”. De fato, chega-se a determinados estágios em que praticamente nada pode ser adiado para o dia seguinte. Aos oitenta anos, não há pospores...

Não fora a liturgia do cerimonial, não obstante o inflamado discurso de Ricardo Nogueira, que, em nome da Academia, deu as boas-vindas ao empossado, Jucá Santos tem tanta e tamanha visibilidade no meio cultural da Província que dispensaria a formalidade da apresentação.

Dispenso-me gastar o meu enferrujado latim para dizer que Jucá tem uma respeitável obra literária. “Produto” resultante da mistura de um poeta com uma pianista, trazendo no genoma a imorredoura marca do consagrado avô Cipriano. Está assim explicada a força criativa dessa conspícua figura que há tantos anos passeia entre as musas e as encanta  e seduz.

Quis o destino que no exato dia em que Jucá Santos concretizava o sonho de adentrar-se triunfalmente no oratório literário da Praça Deodoro, uma outra figura despedia-se da vida deixando um legado de coragem e determinação. Falo de Nelson Mandela. 

Em rápidas pinceladas foi traçado o perfil do grande líder, um exemplo para os que se arvoram de líderes e não passam de incorrigíveis picaretas. Presidente do seu país com quase 80 anos de idade, após vinte e sete anos confinado num cubículo de cinco metros quadrados, apesar de comunista, Mandela recusou-se sentar na cadeira presidencial eternamente. O recado foi claro: há prisões em que o sujeito sai maior. A segunda mensagem  é que, mesmo comunista, o cara pode não sonhar com partido único, jornal único e pensamento único. Lições que poderiam inspirar Genoino, Zé Dirceu e companheirada.

Condenado à prisão perpétua, era um comuna que respeitava os antagônicos; que costurou o fim do apartheid com um adversário ferrenho, branco e rancoroso, cinco anos antes de livrar-se das algemas. Feridas da alma (e na augusta fronte) certamente o grande líder as sepultou. Sua digna esposa, recalcitrante, ao chifrar o nosso herói, não tenham dúvidas, magoou o mundo. Sobretudo o masculino.

Não há sonhos sem dores.

sábado, 13 de outubro de 2018

LUTAS ARMADAS


LUTAS ARMADAS
RONALD MENDONÇA
Quando A Luta é armada faz vítimas de ambos os lados. A desvantagem dos que tentaram trocar a ditadura militar de 1964 por uma comunista era grande. Foi mais um equívoco de avaliação do comunismo na gana pela instalação de uma ditadura. Prestes, em 1935, cometeria o mesmo erro. Mas, a partir de 67-68, garotos da classe média identificaram-se com o charme revolucionário de Che Guevara. Virou o sonho de consumo da meninada, estranhamente  fascinada por um repugnante criminoso sanguinário, mas que divulgava frases de efeito. Um detalhe: o comunismo na Europa já dava sinais de esgotamento. O mundo queria dançar e cantar com liberdade e os países comunistas amputavam esse direito das pessoas.
 O fato é que, aqui no Brasil, tudo concorria para a Luta Armada não dar certo. Alguns garotos da minha adolescência embarcaram nessa fria. Inicialmente, mera curiosidade, reuniões secretas, de repente estavam de armas na mão fazendo sequestros, roubando bancos, invadindo residências, planejando envenenar a caixa d´água do quartel... Dias atrás conversei justamente  com o Beltrão e o Verçosa. Eu falei exatamente isso. Foi um mergulho fundo demais para quem queria tão somente discordar, desafiar e nadar. Penso que muitos arrependeram-se. Até porque o paraíso socialista não existe.
Antes dessa decisão ensandecida, houve uma dissidência nas hostes  comunistas. O próprio Prestes desaconselhara a luta armada, mas havia um Marighella, destemido, diria até irresponsável na sua coragem.... Do nada, despontaria um incendiário Lamarca, capitão desertor, apaixonando-se por Iara Iavelberg, uma psicóloga paulista...
Quando um cara pega em armas, vai para a clandestinidade e participa de guerrilhas, de confrontos com forças numérica e estrategicamente superiores já sabe o que o espera. Certamente não é a glória. Brincar de comunista com um livro de Marx debaixo do braço, no Bar do Chopp, é uma coisa , fazer parte de um bando armado comandado por um desertor surtado é outra. Lamarca levaria a sonhadora burguesinha judia ao trucidamento. A eclipse da guerriha do Araguaia ocorreria com a delação de Genoíno.
Desculpe, Prof. Marcelo Bastos. Os que pegaram em armas sabiam de tudo isso. Havia, além do mais, uma população que apoiava o regime militar. O julgamento sumário de um tenente, capturado como refém  do grupo de Lamarca, morto cruelmente a coronhadas, deu o tom de violência de ambas as partes. Nesses embates não havia orquídeas. Herzog e Fiel foram mortes terríveis...
Li um livro que os amigos de Manoel Lisboa (estudante de medicina da Ufal) escreveram. O Lisboa descrito (que eu não conheci) era ódio da cabeça aos pés. E avisava aos companheiros: "se eu for preso vou ser morto. Não delatarei".
 Estendi-me muito, amigo. Perguntei por vc., na  Pata. Ah, quanto a Bolsonaro, não há clima para intervenção militar. Ou ganha no voto ou bota o rabo entre as pernas e volta pra casa. O povo já o escolheu. Na linguagem chavão comunista, o povo é "reacionário". Quanto a Haddad, o mínimo que se pode dizer: um grande pulha! Abraços

quinta-feira, 11 de outubro de 2018


ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Ronald Mendonça

Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção mal-assombrada, resquícios do que fora um dia uma monumental barbearia. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e até de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram à idade adulta.
 Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Mané Barbeiro ficava todo cheio quando o renomado festeiro marcava um corte. Chegava na hora aprazada, cumprimentava a todos e ao seu Mané dedicava-lhe uma saudação especial: “Ó grande fígaro!”
Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor.
Contudo, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da tricotomia. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão.
O tempo passara rápido, Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas do Major Bonifácio Silveira.
 Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra, enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer unhas. Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, e aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João, mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica, tratava os clientes nos cascos.
 Fora essa herdeira que pusera tudo por água abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo misturado aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se. Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita , formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro. Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal, mesmo sem trabalharem, E o mais estranho, invejavam os irmãos que davam duro na barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela.
O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a falência, matara-se com Nitrosin.

Maceió, 2018



sexta-feira, 18 de maio de 2018

ANJO ALADO DAS BALIZAS

Anjo Alado
(De Ronald para o neto Caio)

Ah! meu querido Cainho
Que insana pressa em crescer
Apesar desse tamanhão que está a completar-se
Você nunca mudou.
Trocava as plumas a cada ano
Mas ficava igual
Bonito e generoso
O seu avô o reconheceria entre milhões.
Contrariando o meu desejo
A numeração do seu tênis o denunciava...
Assim como a das camisas
Sua coragem no retângulo enredado
O arrojo nas bolas rasteiras...
Nada o assustava
"Chute mais forte, vô, eu não sou mais criança...
O estilo elegante logo compôs o perfil alongado
Pernas compridas num corpo esbelto
Mãos avantajadas.
Os braços são como asas
Agora, distante do saudoso velho avô
Voa e encanta o Velho Mundo
Como um anjo alado das balizas.
ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção "mal-assombrada", resquícios do que fora um dia uma monumental  barbearia. Altas horas, noctívagos e outros seres noturnos relatavam costumar ouvir estranhos ruídos, talvez soluços, gemidos e até, quem sabe, sorumbáticas gargalhadas. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e depois de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram à idade adulta. Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e  D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor. Contudo, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da tricoplastia. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão. O tempo passara rápido, as crianças cresceram com um ritmo que desagradou ao fígaro bebedourense.Queria-os sempre crianças... Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas. Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra, enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer unhas.  Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, ouvindo lorotas de senis. Aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João,  mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica e alcoólatra tratava os clientes nos cascos. Fora a incúria dessa herdeira que pusera tudo por água abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os  alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo  misturado aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se. Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita , formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes  envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro. Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal, mesmo sem trabalharem, E o mais estranho,  invejavam os irmãos que davam duro na barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela. O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a falência, matara-se com Nitrosin.

domingo, 22 de abril de 2018

ascenção e queda da catedral de beleza

ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção mal-assombrada, resquícios do que fora um dia uma monumental barbearia. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e até de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram à idade adulta. Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor. Contudo, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da capilaridade. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão. O tempo passara rápido, Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas. Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra, enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer unhas. Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, e aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João, mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica, tratava os clientes nos cascos. Fora essa herdeira que pusera tudo por água abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo misturado aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se. Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita , formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro. Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal, mesmo sem trabalharem, E o mais estranho, invejavam os irmãos que davam duro na barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela. O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a falência, matara-se com Nitrosin.

MEMÓRIAS: SÃO PAULO E EU



MEMÓRIAS, SÃO PAULO E EU
Seria presunçoso se dissesse que nasci para ser médico. Mas vou dizer. Não vou repetir exatamente o poeta que afirmara ter nascido para ser artista. Mas o fato é que desde cedo entrei em contato com a medicina. Meu saudoso pai era um típico médico de bairro. Entendia de tudo. Até de parto. Com efeito, partejou os onze filhos. Quando a irmã mais velha nasceu, ele estava a seis meses da conclusão do curso médico, em Recife. Pensei em ser irmão marista, fui até Apipucos, no Recife, vi, olhei e não gostei. Tudo isso aos 12 anos, antes de decidir-me, irrevogavelmente, pela medicina.
 Éramos onze irmãos. O Robson, mais velho que eu um ano, foi aprovado no vestibular de Medicina, de 1965. A essa altura era, para mim, medicina ou nada. O “nada” não existia. Foi nessa época de cursinhos e outros que tais,  justamente quando botei na cabeça que iria casar com a Nadja, colega de cursinho de Química, cujo professor, José Gonçalves, viria a ser pediatra da nossa primeira filha. Como não existisse plano (B),.esforcei-me razoavelmente e fui aprovado.
 Lá pela metade do curso médico apaixonei-me pela cirurgia, não obstante morar e respirar 24 horas por dia a Psiquiatria. Antes, apaixonadíssimo, casei no meio do curso com a linda cearense de lábios de rubi, Nadja, que também havia sido aprovada para medicina.. Dois anos se passariam até que, em 1971, nasceu a princesinha Lavínea, nossa primeira filha. Mas eu não me negligenciei da Psiquiatria para ser um “cirurgião de barriga”, posto que já tinha muita gente boa no pedaço.
Queria a Neurocirurgia. Foi aí que São Paulo entrou na minha vida. Já residente do Hospital São Camilo, em SP, aos sábados, dávamos voltas pela cidade, foi quando nos deparamos com o apaixonante prédio do Hospital do Servidor do Estado. Achei aqueles vitrais azulados lindos. Daí eu disse de mim para comigo: "você vai estudar para ser residente desse hospital". Ser residente do Hospital do Servidor de SP era um desafio e tanto. Não havia um só residente médico de Alagoas neste hospital. Claro, havia outras opções, como a USP, a Santa Casa, a Escola Paulista.
Em 1973, juntei a fome e a vontade de comer. Número de vagas restrito, entrei no Servidor pela porta da frente, sem pistolão, competindo com colegas de todo o Brasil. Ali estava São Paulo aos meus pés. Doravante nada iria impedir as futuras conquistas. Senti-me Cesar atravessando o Rubicão.
Nadja entrou na residência da psiquiatria do Hospital São Paulo, minha filhinha Lavínea logo foi estudar no Pequeno Príncipe, fez amizade com outras crianças e ia tomar banho de sol na Praça Buenos Aires. Tudo perto da nossa moradia, mais ou menos próximo ao Pacaembu. Levei a Lavínea para ver o Timão várias vezes. Chegamos, (meu irmão Robson e eu) a rachar um salão no Clube de Campo da APM.
 Durante a residência, uma vida de quase escravidão diga-se de passagem,, rodei em várias clínicas. Tive orientadores do nível de Angelita Gama, Fábio Goffi, Mário Cinelli, Erasmo Castro de Tolosa, Prof. Chiaverini, dentre tantos. Mas foi na Neurologia e na Neurocirurgia que encontrei o que procurava. Cheguei ao zênite das minhas aspirações ao lidar com o Prof. Roberto Melaragno Filho, que determinava a doutrinação neurológica a ser seguida, ele próprio cioso herdeiro de uma das mais famosas escolas neurológicas do mundo, simplesmente a Escola Francesa de Charcot. A Neurocirurgia do Servidor carregava na sua certidão de nascimento a Escola do Prof. Rolando Tenuto da USP. O Dr. João Teixeira, Diretor do Serviço de Neurocirurgia, era um dos seus mais caros pupilos, formando no Servidor uma tropa de elite onde destacavam-se, Dr. José Zuleta, Dr. Clemente Augusto Pereira, Dr. Páris, Dr. Takaaki Yonekura, o mago japonesinho da Neuroradiologia,.Dr. Sidney, Dr. Paulo May...
Três anos depois, residência concluída, ainda quis mais, uma pósgraduação em Neurocirurgia no Rio de Janeiro. Aproveitei esse período para consolidar minha doutrinação. O rientador da PósGraduação foi o Prof. Murillo Côrtez Drummond, conceituado neurocirurgião carioca e oficial superior da Marinha de Guerra do Brasil.Dentre os amigos,dessa fase carioca, homenageio o meu guarda-marinho Moreira, hoje almirante Moreira. Nesse ano, 1976, fui aprovado em vários concursos, para neurologista da Secretaria da Saúde de São Paulo, para neurocirurgião do próprio Servidor e para Neurologista do Ministério da Saúde, logrando o primeiro lugar. Foi no Rio, sob as bêncãos do Cristo Redentor que Nadja engravidaria do nosso segundo filho, Roninho.
 Voltei a Sâo Paulo inúmeras vezes. Tenho contatos frequentes com o chefe atual do IAMSPE, Prof. José Marcus Rotta, Dr. Clemente e outros colegas. Meu particular amigo e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Dr. Modesto, não se conforma de eu ter sido aprovado no concurso de neurocirurgião do Servidor e haver negligenciado a nomeação...
 Fiz várias reciclagens no Brasil (e no exterior) com Marcos Ferreira e com meus amigos Hélder Tedeschi e Evandro Oliveira.Estou sempre aprendendo aqui e alhures. Destaco entre os meus diletos amigos e orientadores, o eminente Prof. Óscar L. Alves, neurocirurgião português e cidadão do mundo. São Paulo continua uma espécie de Meca. Muito ensinou e eu fiz-me fértil para brotar bons frutos e depois semeá-los

quarta-feira, 18 de abril de 2018

um conto de férias


UM CONTO DE FÉRIAS
Ronald Mendonça
Neurocirurugião e Professor de neurologia da Ufal

A carona de um colega de faculdade fez André chegar um dia antes em casa, contrariando a idéia inicial de voltar de avião. O velho casarão estava quase às escuras, o silêncio rompido apenas  pelo som da televisão, cuja  luminosidade o atraiu até o quarto do seu pai, que cochilava numa preguiçosa. Aproximou-se com cuidado e alisou sua cabeleira branca e farta fazendo-o despertar meio assustado. O abraço comovido selou aquele reencontro, depois de quase um ano em que não se viam. O velho pai estava saudoso  do caçula. Mal começaram a conversar e a voz da mãe se fez ouvir, determinando ao motorista onde deveria guardar as compras.
Foi uma surpresa muito agradável. Gentil  e bonita como sempre, mais magra,  a mãe pareceu-lhe muito jovem, sobretudo quando comparada ao pai que, a seus olhos, muito envelhecera.   A elegância materna contrastava com o despojamento  do velho que, além de tudo ,  tinha um ar melancólico.
Achou legal rever o seu amigo de infância Zé Luiz, hoje motorista da família. Filho da falecida lavadeira da casa, praticamente cresceram juntos.  André, três anos mais moço, nutria grande afeição  e lamentava sinceramente o fato de o amigo  haver desprezado as oportunidades em relação aos estudos. Chegaram a freqüentar o mesmo colégio particular, mas Zé Luiz gostava mesmo era de jogar bola e pegar passarinho na pequena mata próxima à casa.
Logo cedo do dia seguinte, André acordou com disposição de dar uma volta no sítio. Queria rever tudo. Eram saudades imensas. Tudo o emocionava. Os exatos cem coqueiros que cinco anos antes o pai havia plantado, ali estavam. Os patos, as galinhas, os porcos... Até festa fizeram ao vê-lo. O cheiro da marisia da lagoa penetrava nas suas narinas e o inebriavam de satisfação. Enquanto se detinha em cada pezinho de mato, lembrou-se do pai. Que estaria acontecendo para ele andar tão triste? Iria tentar descobrir.
A lâmpada da suspeita acendeu ao voltar do sítio.  Presenciou, de longe, sem ser notado, o seu amigo de infância Zé Luiz dirigir-se a sua mãe sem o respeito esperado. Parecia que o motorista falava com inusual insolência. Que diabo estava acontecendo? As pessoas daquela casa enlouqueceram? Para completar, o cara entrou no carro e sair arrastando os  pneus.
André não ficou feliz com o que viu. Sob tensão, voltou aos aposentos dos pais para sondar alguma coisa. Remexendo o guarda-roupa  encontrou, surpreso,  o velho punhal enferrujado de cabo de madre pérola que pertencera ao avô. Supunha-o perdido. Instintivamente o escondeu dentro da camisa e o guardou no seu quarto, sob o travesseiro.
O ambiente da casa não era o mesmo. Os empregados mais antigos davam a impressão de estarem fugindo dele. Decidido a tirar tudo a limpo, passaria a desconfiar de todos. Na adolescência adorava contos policiais e era leitor recorrente de Sherlock Holmes. Sim, era verdade: às vezes sentia-se perseguido, observado... Dizia que convivia bem com a sua paranoia. Procurava livrar-se desses excessos, mas agora as impressões eram mais fortes que ele. Imaginou até seus pais sendo chantageados pelo motorista, por algum motivo que precisava descobrir. Para aumentar o clima de suspense, o velho punhal de madre pérola sumira de sua cama.
Não se consentia pensar  em qualquer atitude que denegrisse a imagem da mãe. Era uma santa. Além da sólida formação moral, era de uma religiosidade a toda prova. 
A despeito de, rigorosamente, nada ter visto de concreto, a última semana das férias foi  de puro sofrimento. Estabeleceu uma estratégia. Faltando apenas um dia para voltar para a faculdade,  no domingo, espalhou  que iria ao Trapichão, assistir a partida decisiva do campeonato. Na última hora, conseguiu o carro de um colega emprestado e fingiu dirigir-se para o estádio. Ficou na espreita, perto de casa. Intuía que alguma coisa importante iria acontecer.
Às cinco da tarde, cautelosamente, acompanhou o automóvel da família que ganhara a rua, Zé Luiz no volante. Foi com extremo alívio que, de longe,  avistou a mãe descer na porta da Igreja. André não arredaria  de onde estava. Quinze minutos se passaram até ver  o carro do pai novamente em movimento. Com o coração aos pulos,   segui-o em direção à periferia da cidade.
Não havia certeza de que a mãe entrara naquele carro. Indeciso, esperou intermináveis minutos próximo à entrada de um motel, onde o automóvel da mãe se escafedera. Deus, o que era isso... Pensou em desistir. Decididamente, não tinha condições emocionais de presenciar o que estava a antever. O que  imaginava estava muito além do que poderia suportar. De súbito, veio-lhe à mente a grave fisionomia paterna séria e tristonha. Daí em diante,  André não saberia mais narrar o ocorrido, se assim possível fosse. Suas últimas impressões, após arrombar a porta do quarto do motel,  teriam sido a dolorosa visão da sua mãe assustada, tentando esconder a nudez. Ele ainda tentaria dizer-lhe que a perdoava,  mas apenas gemeu alto pela lancinante dor de um punhal a rasgar-lhe  o peito e a faze-lo suspirar penosamente pela última vez.
Maceió, 1997.

domingo, 15 de abril de 2018


HUMOR REFINADO

Ronald Mendonça
Neurocirurgião. Professor de Neurologia da UFAL



Graças a uma austera administração comandada por meu pai, o psiquiatra  José Lopes de Mendonça, a clínica por ele fundada em  1960, conseguiu sobreviver às intempéries de toda natureza, até dezembro de 2017. Ainda com vida, o velho sentiu-se recompensado ao ver que o seu hospital estava entre os melhores do País.
Especialidade médica, presente no currículo obrigatório do curso médico, a psiquiatria  vem avançando de forma extraordinária, pari passu com as in -cessantes  pesquisas e descobertas em torno do cérebro.
O psiquiatra,   hoje, já não divaga às escuras pelas tempestades das psicoses, num labirinto de frases de efeito, jargões pseudocientíficos, como um pescador à deriva em mar revolto. Sobre o sólido alicerce teórico montado pelos  mestres alemães e franceses sobretudo, vem se erguendo um arsenal terapêutico ainda limitado, mas respeitável.
Apesar dessa condição, inadvertidamente, médicos de outras especialidades tentam meter o  bedelho sem o devido conhecimento, criando situações que põem em risco os pacientes. Pior:  não médicos imiscuíram-se na psiquiatria, alguns de forma solerte, tentando –e muitas vezes conseguindo- ditar “políticas” e condutas terapêuticas para as quais não têm o suficiente preparo. Típico caso em que o sapateiro vai além da chinela.
A esse respeito,  a GAZETA DE ALAGOAS do dia 12/11/00 publicou reportagem sob o título “Hospitais psiquiátricos devem existir ?” em que foram ouvidos uma psicóloga e dois psiquiatras. É claro que a primeira - não sendo exatamente a sua praia - teve dificuldades para argumentar em condições  de igualdade.
Não há o que retocar sobre as opiniões emitidas pelos ilustres psiquiatras. De fato é uma rematada loucura pretender-se, nesse momento,  acabar com os hospitais psiquiátricos. Há, sim, necessidade de um constante aprimoramento e de fiscalização. Essa fiscalização, que costuma ser tão rigorosa na capital, precisa se estender a todos os hospitais, sem exceção.  Inclusive aos do interior. Por que não ?
Pontual  mesmo, na citada reportagem, foi a assertiva  da psicóloga de que “os leitos nos hospitais psiquiátricos são bem remunerados”. Achar que menos de 24 reais por dia, onde são incluídos honorários médicos, medicamentos,  enfermagem, atendimento com psicólogos, assistentes sociais, terapia ocupacional, nutricionista, lavanderia, estada, refeições e   uma média de 2 funcionários para cada 3 pacientes é pagar bem, reflete, antes de tudo,  um humor extremamente refinado.
Uma coisa pelo menos  parece certa: dia virá em que não mais existirão hospi- tais psiquiátricos, nem UTIs, nem muito menos médicos. Tampouco doentes.
Quem sabe, apenas  “um  só rebanho e um só pastor”. Sadios.

HOMENS-MORCEGOS


HOMENS- MORCEGOS
RONALD MENDONÇA
PROF. DE NEUROLOGIA DA UFAL


Numa coisa o presidente do PMDB,  Michel Temer, tem razão: de fato, é uma coisa inédita no País a cassação do mandato de um governador – o famoso Mão Santa,  do Piauí - e de seu vice, abrindo a vaga para os candidatos derrotados 3 anos antes. Vale ressaltar que o cassado era considerado pelo seus pares  uma  “figura exponencial do PMDB”.
 A notícia, apesar de  atraumática para a população não deixou de ser surpreen -dente. Primeiro, porque a maioria ignorava que existia um processo de cassação tramitando na justiça. Segundo, como salientou a nota do deputado Temer, pelo ineditismo do fato, e , terceiro, pelo imbróglio jurídico que disso deve decorrer.
Arrisco-me, como médico, a achar difícil avaliar juridicamente os atos do cassado enquanto exercia a função de governador, uma vez que a Justiça reconheceu ( tardiamente ?)  que Mão Santa cometera crime eleitoral e que , portanto, estaria desqualificado para tomar posse. É uma curiosidade, por exemplo, saber como ficam  salários e outros mimos recebidos durante o exercício  do cargo?  De qualquer forma,  a decisão do STJ não deixa de  ter salutares efeitos pedagógicos e profiláticos, deixando pulgas nas orelhas dos useiros dessas malfadadas práticas.
A fase não anda nada boa para alguns políticos. Os governistas, Serra e Tasso Jereissati estão com problemas. O primeiro teria alguém próximo fazendo caixa para a campanha. O segundo, junto com o “socialista” Ciro, dentre outras coisas, teriam se envolvido indevidamente com o banco do seu estado.
Tampouco está fácil a situação do prefeito Taniguchi, de Curitiba, enrolado com denúncias de gastos astronômicos durante a última campanha , que teriam sido escamoteados por sua assessoria. O prefeito, logicamente, lava suas santas mãos.
Nessa maré de caça ás mãos, não escapou nem o quase octogenário Brizola.. Aqui pra nós, nada que se compare ao tigre do Pará, Jáder Barbalho.
Como na enxurrada é que o cururu bebe água,  lamentavelmente, o vestal PT – depois de superada a querela do lixo paulista x Marta Suplicy-  também abriu a sua ferida narcísica quando a turma da CPI da Segurança Pública do Rio Grande do Sul  descobriu indícios de espúria ligação do bicho com o governo. Os vastos bigodes de Dutra tremeram de “indignação cívica”. Lula esperneou e pediu respeito. Mas, isso também não prova nada.
 Terminando esses comentários, fico pensando como o nosso País está cada vez mais  parecido com Gotton City, a cidade do Batman. Lá, como sabem, moram o Coringa, o Charada, o Pinguim, a Mulher-Gato... Aqui, temos as nossas versões tupiniquins, com sobras.  O Maluf, por exemplo, é o  Charada encarnado. Em cada banco o homem deixa um enigma e ninguém consegue pegá-lo. Os outros... Bem, os outros deixo entregue à criatividade dos  leitores.


quinta-feira, 5 de abril de 2018



MODELO DE PERÍCIA MÉDICA

INTRODUÇÃO
ESCLARECIMENTOS SOLICITADOS POR INTERESSADOS QUE COMPÕEM A CONTESTAÇÃO AOS LAUDOS, PRESCRIÇÕES E EVOLUÇÕES CLÍNICAS, ESTAS ÚLTIMAS VERIFICADAS NO PRONTUÁRIO MÉDICO DO SR QUICO PONTES, DURANTE INTERNAMENTO NA UNIDADE HOSPITALAR DE MOSSORÓ - RN
À GUISA DE PRÉVIA NOTA EXPLICATIVA
SOU EX-PROFESSOR DE NEUROLOGIA,  DURANTE QUASE QUARENTA ANOS. PORTANTO, ACEITEI A INCUMBÊNCIA DE POSICIONAR-ME NESSE RUMOROSO CASO, COMO ESPECIALISTA DIFERENCIADO, LAPIDADO NA ESCOLA NEUROLÓGICA DO PROF. ARANHA, DE SÃO PAULO.
 DESDE OS DOZE ANOS DE IDADE CONVIVO COM DOENTES MENTAIS. DURANTE CINQUENTA ANOS, INTERAGÍ COM PACIENTES COM TODAS AS FORMAS DE PATOLOGIA PSIQUIÁTRICA. SÃO EXPERIÊNCIAS QUE ME TORNARAM UM MÉDICO DIFERENCIADO.
 EMBORA FUJA AO ESCOPO DESSES ESCLARECIMENTOS, ADVIRTO AOS INTERESSADOS QUE ESTE LAUDO PODERÁ OU NÃO SER UTILIZADAS EM JUÍZO. AO CONTRÁRIO DO ENTENDIMENTO DE ALGUNS, QUE TENTA DESCONSTRUIR AS MINHAS SUSTENTAÇÕES,  O MEU TRABALHO NADA TEM A VER COM OS RESULTADOS FINAIS DE CONTENDAS JURÍDICAS. NÃO SE TRATA DE “CONTRATO DE RISCO” SEGUNDO A FALÁCIA DE CERTO OPERADOR DO DIREITO. ESSE LABOR É REMUNERADO, PORTANTO, CLARO QUE NEM DE LONGE CHEGAM ÀS FORTUNAS COBRADAS POR CERTOS PROFISSIONAIS. FICA CLARO, DESDE JÁ, NÃO ESTOU RENUNCIANDO AOS MEUS HONORÁRIOS, QUE DEVEM SER PAGOS TÃO LOGO ELE SEJA CONCLUÍDO. POR OPORTUNO, REPUDIO,  VEEMENTEMENTE, A PROCRASTINAÇÃO JUDICIAL. PARTICULARMENTE, CONSIDERO ESSA PRÁTICA UM EXERCÍCIO PERNICIOSO À APLICAÇÃO DA LEI. PODERIA MESMO DIZER QUE SE TRATA DE UM “ANTI-DIREITO”.
REAFIRMO, NÃO TENHO QUALQUER LIAME COM O RESULTADO FINAL DESSA DESAGRADÁVEL  E PÚBLICA CONTENDA FAMILIAR, QUE CHEGOU À IMPRENSA SENSACIONALISTA, ATRAVÉS DE FAMILIARES, QUE EXPUSERAM A FIGURA DO PATRIARCA DE UMA FORMA MUITO POUCO, DIGAMOS, CARIDOSA, DIREI MAIS, DE FORMA CRUEL,  DESRESPEITOSA, POR SE TRATAR DE UM PAI, “CAPITÃO DE INDÚSTRIA”, QUE ELEVOU, COM O SEU TRABALHO, DE UMA MANEIRA NOTÁVEL A UM PATAMAR DE PADRÃO SOCIAL E FINANCEIRO  MUITAS PESSOAS, ALÉM , É CLARO, DE FILHOS E INCONTESTAVELMENTE, DAS EX-ESPOSAS (TIVE ACESSO ÀS DECLARAÇÕES DE RENDA DO SR. QUICO PONTES).
O HISTÓRICO
Entrei em contato com o QUICO PONTES em 2011, quando foi marcada uma consulta em meu consultório particular. Naquele entrevista, o paciente, depois periciado, QUICO PONTES abriu-se relatando sua via crucis. Relatou-me que em 2008 teria estado deprimido por questões familiares – decepções e outras que tais. Em vista disso, teria procurado especialista em São Paulo, que chegara à conclusão de que estava com Doença de Alzheimer. Teria sido medicado com psicotrópicos cujo efeitos mostraram-se catastróficos. Inconformado, foi ao exterior, à Suiça, onde submeteu-se à bateria de testes clínicos e a exames por imagem. A Ressonância Magnética revelou-se compatível com a idade cronológica. Segundo parecer do especialista europeu, o consulente estava com D. de Parkinson em sua forma inicial. Voltou a Sâo Paulo, onde iniciou tratamento com dois médicos neurologistas muito conhecidos pelas publicações de trabalhos científicos, inclusive um opúsculo didático para os estudantes de medicina e profissionais médicos de uma maneira geral. Então, já naquela época,  os Profs. Dani AARiva e POBRE NitriLO descartaram patologia  demencial, concordando com o colega suíço. Ou seja, o quadro depressivo inicial, foi confundido com o início dos sintomas da D. de Parkinson. Restou aos precipitados a benévola sentença atribuída a  Cícero: quandoque bonus Homerus dormitat.
Inconformado, o já então periciado, fez-me saber que foi ao Rio de Janeiro onde mais uma vez submeteu-se a exame pericial conduzido por eminente perito carioca. Todos esses laudos e exames me foram entregues, inclusive documentos particulares extra-médicos, como as Declarações de IR.
Em MaRINGÁ, o periciado foi avaliado por vários profissionais da área da neurologia e da psiquiatria. Por sinal, foi uma médica perita psiquiatra, Dra. J AlmOFAda, quem indicou o meu nome.
Outras revelações estavam por vir: acompanhado pela esposa, a SRS p. Certamente, por recato, inicialmente, o periciado relatou superficialmente seus dissabores. Estava no curso de processo de interdição movido pelos filhos. Terminou relatando seus sofrimentos morais, inclusive com ameaças de morte advindos desses parentes. Sem querer imiscuir-me na vida privada do periciado, até porque conhecia, embora sem aproximações de amizade, alguns de seus parentes e aderentes. O fato é que a partir desse “destravar”, o periciado contou-me sobre seus prazeres. Disse-me que muitas vezes saía para trabalhar, olhava aquele Aguaceiro do Pantanal, voltava pra casa, vestia-se num calção e ia nadar e tomar sol. E paquerar. Falou-nos da cupidez dos familiares nos seus bens, segundo ele, despreparados que viveram à vida toda à sua sombra. Relatou-me que adorava viajar. A propósito, apresentou-me fotos e vídeos de recente passagem por Mônaco. Eu próprio fiquei admirado pelo seu andar firme, vestido como um “boy”, atravessando a rua, aguardando o sinal de pedestres sair do vermelho. Enfim, uma série de provas relatadas e documentais (fotos, vídeos, opiniões de uma das irmãs solidária a ele e denunciando a ”sordidez moral”, segundo ela,  de alguns parentes).
Concluí aquele LAUDO PERICIAL afirmando, consoante com minha experiência de quarenta anos de médico, consultando inúmeros trabalhos relidos, além de outras opiniões de especialistas de nomeada, afirmando que o periciado QUICO PONTES NÃO APRESENTAVA PATOLOGIA DEMENCIAL. TRATAVA-SE DE DOENÇA DE PARKINSON (DP), que por si só, é uma doença degenerativa do Sistema Nervoso Central, progressiva e incurável.
 A Doença de Parkinson caracteriza-se por tremores, rigidez, bradicinesia e alterações posturais. No periciado, percebi a hesitação, como um freezing (Congelamento), ao aproximar-se da porta do consultório. Já era uma pista para o diagnóstico. Enfim, alicercei a minha opinião depois de acurada escuta e detalhada semiótica neurológica. Adverti que sua condição física, motora, comprometida pela DP, o déficit auditivo e até a sua libido focada em outros alvos seriam fatores que dificultariam sua vida de empresário, “boss” de um grande empreendimento. Sublinhei que numa mente lúcida pairava  o sombrio destino de um inexorável declínio motor.
Sempre premido pelas circunstâncias judiciais adversas, fui instado a realizar outros exames periciais. É evidente que as pressões externas, além da progressão natural da doença, refletiam-se num agravamento progressivo das limitações motoras e invadiam o seu psique angustiado e maltratado.
Nunca fui o seu médico assistente. Consultava-se em São Paulo com os citados especialistas, NitriLO e DaniellA AAiva. Submetia-se à fisioterapia e a tratamento psicológico. Uma manifestação de progressão da Doença de Parkinson começou a tornar-se exuberante: o comprometimento do “nucleus coeruleus” estrutura do sistema nervoso central responsável pela produção de outro neurotransmissor: a noradrenalina. Com efeito, o periciado entrava num estado de hipersonia, que lembrava a narcolepsia. Conversando amenidades comigo, de súbito uma sonolência intensa o invadia, tornando suas respostas como as de um sonâmbulo. Contudo, quando estimulado vigorosamente, despertava e “acordava”. Tal cortejo sintomático já havia sido percebido por seus médicos paulistas, que passaram a prescrever uma medicação importada, específica para tentar corrigir o problema. Nesse aspecto, foi uma das poucas interferências medicamentosas que me permiti invadir. Prescrevi uma marca específica de medicamento para estimular o estado de vigília. Um detalhe terapêutico relevantíssimo merece ser citado: seus médicos assistentes jamais prescreveram drogas colinomiméticas ou assemelhadas (substâncias utilizadas para demência). Drogas psicotrópicas, nem pensar. Com efeito, os conspícuos NitrITO e DanieLA ARiva, nunca se inclinaram para o diagnóstico de Alzheimer ou a fantasiosa “Demência dos Corpos de Lewy”).
Na última avaliação, cerca de 10 dias após ter sido admoestado em  sua residência na Barra Mansa, invadida de forma sorrateira, voltei a periciar o Sr. QUICO PONTE. Estava perturbadíssimo. Os sintomas da D. de Parkinson agravaram-se de forma aguda. Sua marcha ”à petit pas” estava intercalada por freezings. Havia disartria e rigidez mais acentuada. Tinha uma escoriação em uma das pernas, em fase de cicatrização. Não havia afasia. Há uma diferença semiológica entre disartria e disfasia. A primeira é uma alteração na articulação da palavra, enquanto que a segunda é um distúrbio da linguagem, de muito maior gravidade, posto que revela uma perda na compreensão do valor semântico da palavra. Muitos clínicos e até neurologistas envelhecem e não conseguem  fazer essa distinção.
 Como estava a dizer, estimulei o periciado a relatar fatos e a emitir juízos de valor. Fiz uma breve consideração sobre a fisiopatologia respiratória e a encefalopatia por acúmulo de gás carbônico nos mergulhadores (tema NO quAL o periciado é craque). Ainda que mal saído dessa “letargia”, o periciado narrou com detalhes a morte de um sobrinho mergulhador, filho de um dos irmãos, tragédia familiar conhecida de todos. Mais uma vez, abordei a sua falta de investimentos nos terrenos da Barra Mansa. Ao que ele me disse: “estão caros; e eu já avisei ao Fulano (proprietário dos terrenos)”.
Faço um interregno para dizer que acompanhei o periciado numa audiência com a desembargadora VITORIA COMUM, na época presidente do Tribunal de Justiça de Madalena do Norte. Apesar da situação tensa, o periciado respondeu coerentemente a todas as perguntas formuladas pela desembargadora. Houve um momento em que a autoridade judicial perguntou sobre sua saúde. Nesse momento, ele virou-se pra mim e disse: ”isso que a senhora está perguntando, quem sabe melhor do que eu, é o Dr. Ronald”. Aproveitei e fiz um relato sobre a patologia que afligia o interrogado.
Dias depois do diálogo registrado no parágrafo anterior ao interrogatório da desembargadora VITORIA,  assisti nos noticiários o “resgate do cativeiro” do Sr. QUICO. Foi uma espetacularização. Fiquei pensando sobre o verdadeiro amor dessas pessoas. Pelas fotos e vídeos, QUICO estava à beira do lago de Caronte, o barqueiro da morte. Curiosamente, quinze dias antes, uma das filhas fez chegar à imprensa e às redes sociais que encontrou o pai abandonado. Que teria sido um comovente encontro; que QUICO havia lhe pedido “me tirem daqui”; que comentara que estaria “com saudades da netinha”, fulaninha de tal.
Mas o que se viu no aludido “resgate do cativeiro” foi um paciente comatoso, paralisado, indiferente. Pelo risco de vida, teria sido levado à Unidade FaroFA. Pela gravidade alardeada, pensei de mim para comigo: o QUICO vai para a UTI e não resistirá a tantos anos de “cativeiro”. Tive acesso ao protocolo de admissão no Hospital l, aos registros médicos relativos à evolução do QUICO PONTES nesse internamento. Há coisas curiosíssimas, quase inacreditáveis. Só não é cômico porque embute uma tragédia familiar e humana. Contudo, é patética a evolução de um neurologista, acionado pela família. Vou reproduzir: “Fui chamado pela família, para avaliar este paciente (QUICO)”.
“Segundo os familiares, o início do quadro foi com alterações cognitivas e comportamentais, além de delírios e alucinações visuais. Em seguida apareceram as alterações motoras. Além disso, ocorrem flutuações no status neurológico ao longo do dia.” E prossegue: “O paciente se encontra vigil, com intenso bradipsiquismo e bradicinesia global, acentuadamente desorientado no tempo e no espaço; respondeu corretamente seu próprio nome, porém não soube dizer sua idade nem quantos filhos tem; não reconheceu a própria filha,, presente à consulta (disse que era sua noiva); são 9;45hs e ele não lembrou que tinha tomado o café da manhã, nem o que havia comido nessa refeição; ao ser perguntado pela data de hoje, respondeu laconicamente que não sabia; ao ser indagado sobre alguma queixa da saúde, respondeu “que não tinha nada”.
Continua o neurologista: “Ao levantar com ajuda de terceiros, apresenta importante instabilidade estática já de olhos abertos; a marcha se faz com ajuda e é claramente de pequenos passos; apresenta uma exuberante rigidez plástica generalizada e um tremor de repouso no dimidio corporal direito; reflexo glabelar inesgotável; reflexo de preensão persecutória bilateralmente; reflexo de Hoffman e reflexo palmomentoniano bilateralmente ausentes; reflexo cutâneo plantar indiferente; reflexos profundos universalmente diminuídos (+); não conseguiu demonstrar a coordenação  e a diadicocinesia, provavelmente devido aos comprometimento cognitivo e a uma apraxia; não percebi assimetria dos déficit
défices motores, apesar do tremor ser dimidiado”.
“A minha conclusão diagnóstica, independente de qualquer exame complementar, é de que se trata de uma síndrome demencial avançada, provavelmente no curso da doença dos corpos de Lewy. Por este motivo, não apresenta condições neurológicas de gerenciar a própria vida, nem de responder pelos seus atos”.
“Esta é uma doença degenerativa do sistema nervoso, progressiva e incurável, portanto não há perspectivas de recuperação”
“Do ponto de vista neurológico, não há indicação de internação hospitalar e necessita de cuidados de saúde multidisciplinar. CID F02.8”.
COMENTÁRIOS
Meus comentários sobre esta evolução médica não são agradáveis. A priori, cumpre-me dizer que alguém contornou a verdade. Quinze dias antes dessa avaliação, uma das filhas proclamou para quem quisesse ouvir que o pai pediu para sair dali (do “cativeiro”) e que expressou suas “saudades da netinha”. Acrescento que QUICO, depois desse encontro emocional com a filha, esteve com a psiquiatra-perita Dra. JALMOFADA e depois foi reavaliado por mim, conforme descrito acima. Longe de mim pensar que o colega neurologista,  Dr. FP, autor dessa peça, tenha tido algum tipo de interesse, a não ser fazer seu trabalho. No entanto, chamo a atenção para suas frases iniciais em que a família relata delírios, alucinações, para em seguida falar em alterações motoras e cognitivas. Ao expressar-se com tal desenvoltura, quero crer que estamos a lidar com uma família que retém um conhecimento invejável da nosologia médica, até para os esculápios generalistas. Ora, falar em cognição, delírios e alucinações, remetem a um conhecimento psiquiátrico que, creio, nem o neurologista que escreveu essa evolução tem treinamento psiquiátrico para tal dissertação. Sigamos em frente. Não há registro, na evolução do preclaro neurologista de disartria e disfasia. Disfasia não existe, posto que o paciente disse como se chamava. Ponho em dúvidas a veracidade do reconhecimento da filha, uma vez que uma quinzena atrás, ...... sabia exatamente onde estava (“cativeiro”) e confessava até “saudades da netinha”. Essa saudade é extremamente significativa: revela um dos sentimentos mais humanos e lúcidos do ser humano. Recordar da netinha, com a qual não tinha contato há muito tempo, traduz uma memória incomum, até mesmo para os senis sem D de Parkinson.
Como assinalei acima, os médicos assistentes de São Paulo, que dele cuidaram anos a fio, jamais sentiram a necessidade de prescrever medicamentos para demência e antidepressivos, alertados  pelo histórico do paciente ter demonstrado efeitos paradoxais com tais classes de substâncias. Há uma distorção entre o relatado pela  filha à imprensa e nas redes sociais com as descrições registradas no prontuário do QUICO. Por fim, como professor de Medicina, não poderia deixar de registrar, e lamentar,  que numa evolução clínica, no curso de um internamento hospitalar, o profissional aja com tamanha irresponsabilidade e estranha arrogância ao expressar que “independentemente de qualquer exame, o paciente teria uma demência de Lewy, incurável”. Acrescenta ainda que "não precisa de qualquer exame para confirmar o seu diagnóstico". Tão grave quanto, foi sua conclusão de sugerir incapacitar o paciente. Afinal, tratava-se de um parecer médico ou de uma perícia? Por um triz não afirmou: “É um traste inútil que não serve para nada”.

CONCLUSÃO
Concluo, portanto, que  a avaliação do neurologista Dr. FP, e também as recentes avaliações  a que  submeteu-se em São Paulo, com psicólogos e com os neurologistas Drs. P e M, são desprovidas de méritos, são nulas do ponto de vista médico-legal, posto que o periciado estava sob efeito de psicotrópicos (Deus sabe mais do quê) e colinomiméticos, drogas que desde o início dos sintomas da Doença de Parkinson mostraram-se lesivas ao seu cérebro. Finalmente, sejamos objetivos: que se mostre de uma vez por todas o laudo histopatológico que confirme a etérea “Doença dos corpos de Lewy”.

MOSSORO, É O M, 05 de maio de 2017

                                                           



ANEXOS
Cópias de folhas avulsas do internamento de  na Unidade Hospitalar de MOSSORÓ.
Documentos diversos de depoimentos, manuscritos, B.O, Declarações de renda e outros que tais, inclusive documentos iconográficos, em pendrive, que demonstram a performance do periciado no convívio social.

sábado, 10 de março de 2018

terça-feira, 6 de março de 2018

O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA FRIA



Não sei exatamente quando conheci o Sr. Milton Dario. Ele era do ramo de medicamentos e amigo do meu tio Ruy Mendonça. Logo soube que ele tinha umas filhas bonitas. Uma delas, particularmente, mexeu sem cerimônia, com os meus objetos internos mais profundos. Era uma morena muito inteligente, bonita, de corpo, a meu ver, que deveria ser a cópia de sua conterrânea Iracema, “a virgem de lábios de mel” de Alencar.

Gostava de conversar com seu Milton. Ele era um teórico marxista muito informado. Amigo dos Moreira, convivia com a nata do socialismo tupiniquim. Ainda hoje, Jailson Boia me diz que seu Milton teria sido o seu grande mentor. O lendário Jaime Miranda era seu interlocutor habitual. Há relatos asseverando e testemunhando ambos sentados no meio-fio, em frente à casa do meu futuro sogro, adentrando-se pelas noites. Não alcancei essa época.

Quando arrastei asas para Nadja, filha mais velha do casal Inês- Milton, esforcei-me para fazer uma espécie de média ao fingir interesse pela Intentona de 1935. Na verdade, estava de olho na bela morena de lábios de fogo. O sogro discutia alguma coisa de política. Se ele tentava me seduzir, me politizar, perdia o verbo e o tempo, já fazia tempo que conhecia o genocídio lenin-stalinista. Estava pouco me lixando se o acordo entre Hitler e Stalin era uma farsa, posto que ninguém confiava em ninguém. A exploração capitalista e a escravidão comunista se equivaliam. O paredón guevarista-fidelista ainda ressoava nos nossos tímpanos. Mas era o tipo de papo que eu não queria levar com o pai da minha paixão.

Não estava a fim de criar área de atrito. Fazia caras e bocas de indignação pelo que os sórdidos imperialistas americanos estavam tramando para o Brasil.

Mas meu negócio era outro. Dois objetivos guiavam meus instintos burgueses. Terminar o meu curso de Medicina e conquistar de uma vez por todas o coração daquela Iracema da Praça Sinimbu. Imaginem se eu queria saber se tinha sido Béria, o valet de chambre de Stalin, o grande homicida soviético. O que eu queria mesmo era manter uma atmosfera de simpatia e ter a confiança do sogrão de poder sair com aquela menina moça que definitivamente trucidara a minha adolescente e apaixonada mente. Os primeiros e os últimos pensamentos do dia eram para Nadja.

O velho Milton, matreiro de tantas guerras, driblava com maestria os patrulheiros que queriam dar palpites no namoro de sua filha mais velha, uma menina de ouro que passou a vida escolar obtendo notas que o enchiam de orgulho. O novo (e único) namorado da Nadja tinha um senão que desagradava profundamente a militância. Ronald era filho do Zé Lopes, discreto médico de Bebedouro que tinha um defeito imperdoável: votava nos candidatos da antiga UDN.

Quando interrogado pelos camaradas sobre minhas posições políticas, seu Milton não se prolongava em detalhes. Simplesmente respondia que o candidato a genro era um “um liberal-democrata” e mudava de conversa. Quase cinquenta anos se foram desde aqueles interrogatórios que as esquerdas adoram fazer. Digo a vocês: em lugar nenhum do mundo eu ia conseguir namorar com uma comunistinha mais linda que Nadja. Doutra parte, ela jamais teria a seus pés um burguês que a amasse mais e melhor do que eu.


DEBUT
Surpreendido com o convite. Essa Turma da Ufal  foi a primeira classe de universitários que dei aulas de Neurologia, em 1977. Agradeço pela lembrança, muita generosidade.