UM CONTO DE FÉRIAS
Ronald Mendonça
Neurocirurugião e Professor de neurologia da Ufal
A carona de um colega de faculdade fez André chegar um dia
antes em casa, contrariando a idéia inicial de voltar de avião. O velho casarão
estava quase às escuras, o silêncio rompido apenas pelo som da televisão, cuja luminosidade o atraiu até o quarto do seu
pai, que cochilava numa preguiçosa. Aproximou-se com cuidado e alisou sua
cabeleira branca e farta fazendo-o despertar meio assustado. O abraço comovido
selou aquele reencontro, depois de quase um ano em que não se viam. O velho pai
estava saudoso do caçula. Mal começaram
a conversar e a voz da mãe se fez ouvir, determinando ao motorista onde deveria
guardar as compras.
Foi uma surpresa muito agradável. Gentil e bonita como sempre, mais magra, a mãe pareceu-lhe muito jovem, sobretudo
quando comparada ao pai que, a seus olhos, muito envelhecera. A elegância materna contrastava com o
despojamento do velho que, além de tudo
, tinha um ar melancólico.
Achou legal rever o seu amigo de infância Zé Luiz, hoje motorista
da família. Filho da falecida lavadeira da casa, praticamente cresceram
juntos. André, três anos mais moço,
nutria grande afeição e lamentava
sinceramente o fato de o amigo haver
desprezado as oportunidades em relação aos estudos. Chegaram a freqüentar o
mesmo colégio particular, mas Zé Luiz gostava mesmo era de jogar bola e pegar
passarinho na pequena mata próxima à casa.
Logo cedo do dia seguinte, André acordou com disposição de
dar uma volta no sítio. Queria rever tudo. Eram saudades imensas. Tudo o
emocionava. Os exatos cem coqueiros que cinco anos antes o pai havia plantado,
ali estavam. Os patos, as galinhas, os porcos... Até festa fizeram ao vê-lo. O
cheiro da marisia da lagoa penetrava nas suas narinas e o inebriavam de
satisfação. Enquanto se detinha em cada pezinho de mato, lembrou-se do pai. Que
estaria acontecendo para ele andar tão triste? Iria tentar descobrir.
A lâmpada da suspeita acendeu ao voltar do sítio. Presenciou, de longe, sem ser notado, o seu
amigo de infância Zé Luiz dirigir-se a sua mãe sem o respeito esperado. Parecia
que o motorista falava com inusual insolência. Que diabo estava acontecendo? As
pessoas daquela casa enlouqueceram? Para completar, o cara entrou no carro e
sair arrastando os pneus.
André não ficou feliz com o que viu. Sob tensão, voltou aos
aposentos dos pais para sondar alguma coisa. Remexendo o guarda-roupa encontrou, surpreso, o velho punhal enferrujado de cabo de madre pérola
que pertencera ao avô. Supunha-o perdido. Instintivamente o escondeu dentro da
camisa e o guardou no seu quarto, sob o travesseiro.
O ambiente da casa não era o mesmo. Os empregados mais
antigos davam a impressão de estarem fugindo dele. Decidido a tirar tudo a
limpo, passaria a desconfiar de todos. Na adolescência adorava contos policiais
e era leitor recorrente de Sherlock Holmes. Sim, era verdade: às vezes
sentia-se perseguido, observado... Dizia que convivia bem com a sua paranoia.
Procurava livrar-se desses excessos, mas agora as impressões eram mais fortes
que ele. Imaginou até seus pais sendo chantageados pelo motorista, por algum
motivo que precisava descobrir. Para aumentar o clima de suspense, o velho
punhal de madre pérola sumira de sua cama.
Não se consentia pensar
em qualquer atitude que denegrisse a imagem da mãe. Era uma santa. Além
da sólida formação moral, era de uma religiosidade a toda prova.
A despeito de, rigorosamente, nada ter visto de concreto, a
última semana das férias foi de puro
sofrimento. Estabeleceu uma estratégia. Faltando apenas um dia para voltar para
a faculdade, no domingo, espalhou que iria ao Trapichão, assistir a partida
decisiva do campeonato. Na última hora, conseguiu o carro de um colega
emprestado e fingiu dirigir-se para o estádio. Ficou na espreita, perto de
casa. Intuía que alguma coisa importante iria acontecer.
Às cinco da tarde, cautelosamente, acompanhou o automóvel da
família que ganhara a rua, Zé Luiz no volante. Foi com extremo alívio que, de
longe, avistou a mãe descer na porta da
Igreja. André não arredaria de onde estava.
Quinze minutos se passaram até ver o
carro do pai novamente em movimento. Com o coração aos pulos, segui-o em direção à periferia da cidade.
Não havia certeza de que a mãe entrara naquele carro.
Indeciso, esperou intermináveis minutos próximo à entrada de um motel, onde o
automóvel da mãe se escafedera. Deus, o que era isso... Pensou em desistir.
Decididamente, não tinha condições emocionais de presenciar o que estava a
antever. O que imaginava estava muito além
do que poderia suportar. De súbito, veio-lhe à mente a grave fisionomia paterna
séria e tristonha. Daí em diante, André
não saberia mais narrar o ocorrido, se assim possível fosse. Suas últimas
impressões, após arrombar a porta do quarto do motel, teriam sido a dolorosa visão da sua mãe assustada,
tentando esconder a nudez. Ele ainda tentaria dizer-lhe que a perdoava, mas apenas gemeu alto pela lancinante dor de
um punhal a rasgar-lhe o peito e a
faze-lo suspirar penosamente pela última vez.
Maceió, 1997.
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