quarta-feira, 18 de abril de 2018

um conto de férias


UM CONTO DE FÉRIAS
Ronald Mendonça
Neurocirurugião e Professor de neurologia da Ufal

A carona de um colega de faculdade fez André chegar um dia antes em casa, contrariando a idéia inicial de voltar de avião. O velho casarão estava quase às escuras, o silêncio rompido apenas  pelo som da televisão, cuja  luminosidade o atraiu até o quarto do seu pai, que cochilava numa preguiçosa. Aproximou-se com cuidado e alisou sua cabeleira branca e farta fazendo-o despertar meio assustado. O abraço comovido selou aquele reencontro, depois de quase um ano em que não se viam. O velho pai estava saudoso  do caçula. Mal começaram a conversar e a voz da mãe se fez ouvir, determinando ao motorista onde deveria guardar as compras.
Foi uma surpresa muito agradável. Gentil  e bonita como sempre, mais magra,  a mãe pareceu-lhe muito jovem, sobretudo quando comparada ao pai que, a seus olhos, muito envelhecera.   A elegância materna contrastava com o despojamento  do velho que, além de tudo ,  tinha um ar melancólico.
Achou legal rever o seu amigo de infância Zé Luiz, hoje motorista da família. Filho da falecida lavadeira da casa, praticamente cresceram juntos.  André, três anos mais moço, nutria grande afeição  e lamentava sinceramente o fato de o amigo  haver desprezado as oportunidades em relação aos estudos. Chegaram a freqüentar o mesmo colégio particular, mas Zé Luiz gostava mesmo era de jogar bola e pegar passarinho na pequena mata próxima à casa.
Logo cedo do dia seguinte, André acordou com disposição de dar uma volta no sítio. Queria rever tudo. Eram saudades imensas. Tudo o emocionava. Os exatos cem coqueiros que cinco anos antes o pai havia plantado, ali estavam. Os patos, as galinhas, os porcos... Até festa fizeram ao vê-lo. O cheiro da marisia da lagoa penetrava nas suas narinas e o inebriavam de satisfação. Enquanto se detinha em cada pezinho de mato, lembrou-se do pai. Que estaria acontecendo para ele andar tão triste? Iria tentar descobrir.
A lâmpada da suspeita acendeu ao voltar do sítio.  Presenciou, de longe, sem ser notado, o seu amigo de infância Zé Luiz dirigir-se a sua mãe sem o respeito esperado. Parecia que o motorista falava com inusual insolência. Que diabo estava acontecendo? As pessoas daquela casa enlouqueceram? Para completar, o cara entrou no carro e sair arrastando os  pneus.
André não ficou feliz com o que viu. Sob tensão, voltou aos aposentos dos pais para sondar alguma coisa. Remexendo o guarda-roupa  encontrou, surpreso,  o velho punhal enferrujado de cabo de madre pérola que pertencera ao avô. Supunha-o perdido. Instintivamente o escondeu dentro da camisa e o guardou no seu quarto, sob o travesseiro.
O ambiente da casa não era o mesmo. Os empregados mais antigos davam a impressão de estarem fugindo dele. Decidido a tirar tudo a limpo, passaria a desconfiar de todos. Na adolescência adorava contos policiais e era leitor recorrente de Sherlock Holmes. Sim, era verdade: às vezes sentia-se perseguido, observado... Dizia que convivia bem com a sua paranoia. Procurava livrar-se desses excessos, mas agora as impressões eram mais fortes que ele. Imaginou até seus pais sendo chantageados pelo motorista, por algum motivo que precisava descobrir. Para aumentar o clima de suspense, o velho punhal de madre pérola sumira de sua cama.
Não se consentia pensar  em qualquer atitude que denegrisse a imagem da mãe. Era uma santa. Além da sólida formação moral, era de uma religiosidade a toda prova. 
A despeito de, rigorosamente, nada ter visto de concreto, a última semana das férias foi  de puro sofrimento. Estabeleceu uma estratégia. Faltando apenas um dia para voltar para a faculdade,  no domingo, espalhou  que iria ao Trapichão, assistir a partida decisiva do campeonato. Na última hora, conseguiu o carro de um colega emprestado e fingiu dirigir-se para o estádio. Ficou na espreita, perto de casa. Intuía que alguma coisa importante iria acontecer.
Às cinco da tarde, cautelosamente, acompanhou o automóvel da família que ganhara a rua, Zé Luiz no volante. Foi com extremo alívio que, de longe,  avistou a mãe descer na porta da Igreja. André não arredaria  de onde estava. Quinze minutos se passaram até ver  o carro do pai novamente em movimento. Com o coração aos pulos,   segui-o em direção à periferia da cidade.
Não havia certeza de que a mãe entrara naquele carro. Indeciso, esperou intermináveis minutos próximo à entrada de um motel, onde o automóvel da mãe se escafedera. Deus, o que era isso... Pensou em desistir. Decididamente, não tinha condições emocionais de presenciar o que estava a antever. O que  imaginava estava muito além do que poderia suportar. De súbito, veio-lhe à mente a grave fisionomia paterna séria e tristonha. Daí em diante,  André não saberia mais narrar o ocorrido, se assim possível fosse. Suas últimas impressões, após arrombar a porta do quarto do motel,  teriam sido a dolorosa visão da sua mãe assustada, tentando esconder a nudez. Ele ainda tentaria dizer-lhe que a perdoava,  mas apenas gemeu alto pela lancinante dor de um punhal a rasgar-lhe  o peito e a faze-lo suspirar penosamente pela última vez.
Maceió, 1997.

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