ASCENSÃO
E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Ronald Mendonça
Quase
em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção
mal-assombrada, resquícios do que fora um dia uma monumental barbearia. Os
antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro,
jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio.
O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e
até de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito,
sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram
à idade adulta.
Numa época de famílias numerosas, o casal Mané
Barbeiro e D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque
justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo.
Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a
Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima
barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no
bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major
Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no
quesito "agitador cultural". Mané Barbeiro ficava todo cheio quando o
renomado festeiro marcava um corte. Chegava na hora aprazada, cumprimentava a
todos e ao seu Mané dedicava-lhe uma saudação especial: “Ó grande fígaro!”
Tudo
leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais,
como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar
dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte
era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição
para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor.
Contudo,
carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser
cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da
arte da tricotomia. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes
sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos
davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente
apelidara seu salão.
O tempo
passara rápido, Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da
barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna
tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos
tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de
furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das
costeletas do Major Bonifácio Silveira.
Afastou-se do métier, não sem antes distribuir
funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra,
enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos,
apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer
unhas. Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento,
e aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém
costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João,
mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho
garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e
na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada,
pornográfica, tratava os clientes nos cascos.
Fora essa herdeira que pusera tudo por água
abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho,
chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As
confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As
preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas
perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os
alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os
fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e
baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes.
Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo misturado
aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se.
Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado
costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que
ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era,
segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e
nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita ,
formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o
fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes
envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro.
Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal,
mesmo sem trabalharem, E o mais estranho, invejavam os irmãos que davam duro na
barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela.
O
último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o
velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a
falência, matara-se com Nitrosin.
Maceió, 2018
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