sábado, 4 de janeiro de 2014

AS ÚLTIMAS LÁGRIMAS

 
 
Ele voltou ao velho bairro da infância. Sentou-se na praça. Avaliou a Matriz de Santo Antonio. Lembrou-se que os sinos foram doação de um dos moradores: Jacintho Nunes Leite. Portuguesinho arrojado! Montaria a primeira fundição no Estado. Botou água encanada no Centro da cidade, antes em Bebedouro. Foi concessionário do serviço de bonde à tração animal...
 
JNL era abolicionista. Cumpriria aquele ritual que dos abolicionistas endinheirados se esperava: comprava escravos e os alforriava. Fazia algo mais, como, por exemplo, dar-lhes emprego. Humanista e humanitário,  a Fábrica Carmen, de Fernão Velho, era uma das grifes do saudoso comendador.
 
O visitante também sabia que, naquela praça, onde agora mergulhava no seu passado, funcionou um cemitério. Inconformado com um sepulcrário naquela localização, Nunes Leite promoveria uma das mais radicais mudanças em um bairro. Para consolar os recalcitrantes, doaria os portões de ferro do novel campo-santo. Com direito à inscrição latina feita por ninguém menos que o jovem latinista Aloísio Galvão.
 
 Meu amigo de infância tinha pressa. Com os dias  de vida contados, jogava os últimos minutos de uma prorrogação com “gol da lua”. Reviu-se menino implorando vaga num time de feras. Não era craque, apenas um esforçado. Conspiravam a seu desfavor os fatos de ser negro, pobre e morar a oeste da “Praça”. Ou seja, além da estação ferroviária, fatal marco divisório entre “os ricos da Praça e os outros”.
A mãe era lavadeira. O pai, um negrão imenso e arredio, pescador, vozeirão de cantor de soul, de indefectível presença nas procissões. Estimado membro da Congregação Mariana, nas horas vagas, um incorrigível raparigueiro. Os lendários apetrechos masculinos do piedoso cristão, para desgosto do filho, a genética lhos negara. Para completar, em vez do tom abaritonado paterno, herdara ridículo vocal de intérprete de bossa nova. Mesmo assim, garantia, não dava vexames ao eleitorado feminino.
 
Era discriminado. Contudo, a performance do pai apararia arestas na convivência com a turma da “Praça”. Bolsista do Colégio Guido, embora medíocre, seria mais um credencial para participar
dos bailinhos no 29 de Junho, o clube do bairro...
 
 Aos prantos, segredou-me: tinha tudo para dar errado. Após algumas cabeçadas, fez carreira na Marinha. Hoje, comandante aposentado, depois de navegar pelos sete mares, antes de sua iminente morte física, quis, neste primeiro de janeiro, banhar-se de saudades.

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