segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A CIGANA DO LEBLON

A CIGANA DO LEBLON
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL
A curiosidade fez-me permitir que uma cigana lesse a minha mão. Tinha menos de trinta anos e tomava chope no Leblon. Ouvi misérias. Alvo de uma despacho avassalador, estaria vivendo meus últimos dias.  Estava escrito. Uma mulher, que teria sido negligenciada, era a autora desse vaticínio funesto. Pneumonia galopante estava a caminho. Com a vida  por um fio, tive chance de reverter. Jogaria fora minha última oportunidade de sobrevivência ao recusar-me  pagar uma quantia para comprar cinquenta velas sete-vidas.
Devia minhas cismas a um conto de Machado de Assis, lido na adolescência. Com efeito,  O “Bruxo do Cosme Velho” relata que um sujeito, frequentador dos saraus de um casal,   pressentira que a dona da casa, uma jovem senhora de rara beleza, lhe lançava lânguidos olhares, surpreendentes para os modos de uma cortês anfitriã.
Nosso herói  pertencia ao castíssimo parlamento brasileiro Ele era místico e republicano, a despeito de amigo pessoal do conde D´Eu.
Como todo político que se preza, tornara-se íntimo de uma  cigana famosa. Madame X pertencia a uma casta de imigrantes europeus, todos dedicados ao ofício de encontrar os segredos do passado e os enigmas do porvir decifrando as reentrâncias anatômicas da mão. Debruçar-se-ia nos cultos religiosos africanos. Era um plus de garantia para os seus serviços, que, diga-se de passagem, eram gratuitos. Recebia honorários apenas quando era impelida a eliminar mandingas que “atarrancavam” a vida de  sua seleta clientela.
Não foi, portanto, sem razão que o  parlamentar consultou a vidente. A resposta foi clara. Podia ir em frente, a anfitriã estava apaixonadíssima. Viveria então intenso e profundo relacionamento, até que um dia, teria intuído que o esposo da amante estava reticente. Afastou-se do casal. Temia escândalos.
Tempos depois, receberia uma carta de sua amada marcando um encontro no local habitual. Mais uma vez procurou sua guru.  Mostrou-lhe a carta.
Desconfiava que o marido estava por trás daquilo. E mais uma vez,  Madame X foi incisiva. Podia ir sossegado viver esse grande amor. Previdente,  chegou ao local uma hora antes do combinado. Ao abrir a porta do aposento, foi recebido à bala pelo marido.

Esta semana voltei a lembrar-me da cigana do Leblon. Derrubado por dupla pneumonia (seria a mandinga?), maldisse a minha misantropia e o ceticismo por conta de míseras  cinquenta velas.

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