sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O ENCANTO DOS MOMENTOS



RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

 

Quando meus pacientes me regalam com um mimo, mesmo os mais singelos, agradeço a generosidade e lembro o velho pai. Com efeito, doutor Zé Lopes,  também curtia ser presenteado. Havia alguns que eram particularmente bem vindos, como galinhas de capoeira, perus e (menos frequentes) carneiros.

Meu pai trazia no DNA as marcas do menino de engenho. Decididamente, não puxei a ele. Detesto cachorros. Não gosto do cheiro, das lambidas, das tentativas mastubartórias nas pernas...  Os grandes metem medo e os pequenos são um saco.

Odeio gatos. Manhosos e traiçoeiros, esses felinos  só têm alguma graça na televisão. Além das antipatias pessoais viscerais e irreversíveis, como os cachorros e os pombos (e os papagaios e periquitos) são transmissores de doenças. Tudo bem que os seres humanos também transmitem doenças – mas o contato é inevitável.

Não obstante, criei vários cães. Até rothweiller. Tive um pastor alemão. Era o xodó dos meus filhos pequenos. Noblesse oblige, participei de concursos onde o meu pastor foi premiado. Com um pedigree de dar inveja aos Bourbons, meu King do Castelo de Prata tinha doença genética gravíssima. No auge da juventude tornou-se paraplégico.

Relação mais duradouro e íntima ocorreria com um poodle. Artur, nome dado por minha filha,  tinha lá seus encantos.  Contudo,  as velhas manias de esfregar-se nas pernas era uma dos seus pontos altos. Com muito esforço tentei condescender.

Num supremo despojamento, dava uma volta na rua com ele. De palmo em palmo, Artur parava, farejava os pés dos coqueiros e levantava a patinha traseira naquela conhecida postura. Dava uma seringada e partia para outra. Havia todo um ritual para a defecação: agachado, rodava sobre o seu eixo duas três vezes até eliminar alguma coisa parecida com dejetos.

Que o ecologista Lulinha Filho me perdoe: Artur tinha traços obsessivos compulsivos. Ao chegar em casa, mal liberto da  coleira, corria para o sofá e despejava, incoercível, todo seu conteúdo represado. Uma bagaceira. O bom
Deus ouviria nossas preces. A idade avançada, doenças na próstata e outros que tais, em boa hora, tiraram o cãozinho do nosso convívio.

Ninguém é completamente mau. Na minha casa de Ipioca crio fantásticos animais: cágados. Passo meses sem vê-los. Nossos esporádicos e silenciosos reencontros são sempre carregados de fortes emoções. Qualquer palavra ou gesto quebraria o encanto do momento.

A MAIS MARAVILHOSA DA MORTES


A MAIS MARAVILHOSA DAS MORTES

RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Essa semana, o escritor Carlito Lima fez a entrega da nona edição do Prêmio Espia. Peço licença  para, em sua homenagem, transcrever esse texto extraído do O Amante de Lady Chartterley, de DH Lawrence, de 1927.

“Tiveram uma noite maravilhosa de paixão sensual; Constance, um tanto amedrontada, mas ao mesmo tempo assustada,  conheceu vibrações de sensualidade ainda mais fortes que das outras vezes. Vibrações diferentes, mais agudas, mais terríveis que as causadas pelo amor ternura e, no momento, mais desejáveis. Apesar de um pouco atemorizada, não se opôs a coisa nenhuma – e uma sensualidade sem freios e sem vergonha a sacudiu no mais fundo de si mesma, e a desfez dos últimos véus, revelando nela uma mulher nova. Não era propriamente amor. Não era volúpia. Era uma sensualidade aguda e ardente como o fogo que lhe transformava a alma em brasa.”

“E esse fogo destruía as mais velhas e profundas vergonhas das suas partes mais secretas. Custou-lhe certo esforço deixar que o amante usasse dela ao sabor de seus caprichos, reduzindo-a a simples coisa passiva, complacente como uma escrava – como uma escrava física. A paixão a devorava com chamas consumidoras e quando a violência dessas chamas alcançou o mais íntimo de suas entranhas, julgou estar morrendo – embora da mais maravilhosa das mortes.”

“Perguntava-se a si mesma que quereria significar Abelardo ao dizer que, durante o seu ano de amor com Heloísa, haviam passado por todos os estágios e por todos os requintes do amor. Agora compreendia. Era aquilo. Há mil anos antes! Já representada nos mais antigos vasos gregos. Os requintes da paixão, as extravagâncias da sensualidade! E era coisa necessária para destruir as falsas vergonhas e refinar em pureza o grosseiro minério do corpo.”

“Quanto não aprendeu nessa noite! Se lho contassem, teria admitido, seria coisa para matar uma mulher de vergonha – mas quem morreu foi a vergonha. A vergonha que não passa de medo; a profunda vergonha orgânica, o velho medo físico que se oculta nas raízes do corpo e que só pode ser expurgado por esse fogo sensual. Ao fogo da investida fálica do homem ela pôde alcançar o coração da floresta do seu ser.”

“Que mentirosos os poetas e toda a gente! Fazem-nos crer que só precisamos de sentimentos. Mas, na realidade, o que imperiosamente precisamos é dessa penetrante, ardentíssima e terrível sensualidade.”

 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A ÚLTIMA HOMILIA DA CATEDRAL


A ÚLTIMA HOMILIA DA CATEDRAL

RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Há alguns anos,  entusiasmei  um tio a comemorar o seu aniversário. Afinal, não é todo dia que alguém consegue completar oitenta anos. No nosso caso, essa  razoável longevidade é irisada pelo fato de – talvez – carregarmos algum gene manco e preguiçoso  que nos impede de caminharmos nesse vale de lágrimas por mais tempo.

O velho tio organizou uma festa bonita e tudo levaria a crer, pelo vigor daquele momento, que finalmente aquele gene miserável estava definitivamente preso e amordaçado. Doce ilusão! O sonho de chegar aos noventa não resistiria a uma prosaica diarreia. Com a genética não se brinca.

Longe de mim  genéticas mágoas. Até pelo fato de haver vencido a barreira de seis decênios sem muitos sustos. Evitando foguetes, nesse janeiro comemorei o aniversário lavando o espírito com um belo  livro de memórias.  Lamentei não ter tido tempo de cumprimentar o autor, meu ilustre colega de Academia Alagoana de Letras, Humberto Gomes de Barros.

A ingratidão é um dos mais graves defeitos.. Talvez por isso haja no inferno uma coleção de suplícios especiais para esses espíritos canalhas. É justamente por isso que me apresso a agradecer Sexta-Feira 13 – Setembro de 1957, generosamente doado pelo irmão do autor, o médico Arnoldo G. Barros.

Juiz Federal e Ministro do STJ, filho de um deputado, HGB é testemunha quase ocular do atentado contra o pai, no famigerado tiroteio na Assembleia Legislativa de Alagoas, em 1957. É um banho de História.  Além de dissertar sobre fatos relevantes que culminaram no processo de impeachment contra o governador Muniz Falcão, o autor revela particular sensibilidade ao se fixar nos tipos humanos e nos costumes que marcaram a Província naquele período.

Populares quase esquecidos são alvos de suas análises. Negra Odete, a sensual e inesquecível orientadora sexual dos meninos da Avenida... O temido regateano Mário Braga, versão alagoana do João Valentão de Caymmi,  desaforado e terno, a ensaiar passos de rumba com famosa dançarina... Papa-Capim, o jornalista cara de pau que o introduziu na casa de Abraão Moura sendo divinamente recebido por D. Alaíde Moura...

Em meio ao desmantelo da política, Gomes de Barros, como que aliviando as dores, disseca o puteiro de Jaraguá. Ponto de encontro das elites culturais e políticas, no velho “Duque de Caxias”, conversava-se sobre tudo, “até sobre a última homilia da Catedral”.

 

 

sábado, 11 de janeiro de 2014

DE DEUSES E DE HOMENS


DE DEUSES E DE HOMENS

Por: » RONALD MENDONÇA – médico e membro da AAL.

Grávida, a bela Coronis apaixonar-se-ia por um sujeito que não era o pai
do concepto que abrigava no seu ventre. Até aí, como cantava Reginaldo Rossi, era mais um caso banal de traição. O problema é que o pai biológico da criança se chamava Apolo, uma das divindades que habitavam o Olimpo. Não se trai um deus impunemente. Castigada pela audácia de chifrar o belo Apolo, a criança sobreviveria. Criado por um centauro, o menino, Asclépios ou Esculápio, demonstraria desde cedo especial dom para cuidar de doentes. Assim nascia o mito. O deus da medicina.

 Hipócrates, celebrizado no mundo leigo pelo Juramento, descende de Asclépios. De alguma maneira, o “Pai da Medicina” carregava no seu DNA genes da divindade Apolo. Talvez por isso os discípulos de Hipócrates sejam, por extensão, considerados “deuses”, sobretudo quando os casos dão certo.
E, naturalmente, antes de apresentarem os honorários, instante em que se transformam em “vis mercenários”, que só pensam em dinheiro.

 Falo de deuses e do Olimpo e logo me vêm exemplos de Olimpos da era contemporânea. As Casas Legislativas, as Assembleias, a Câmara, o Senado... São “céus na terra”, eventualmente ocupados por seguidores de Hipócrates. Recordo do professor Mello Mota, um dos mais notáveis homens públicos que essa terra gerou. Na verdade, não me ocorre nenhum parlamentar médico que tenha envergonhado Hipócrates ou Apolo. Jorge Quintella, Chico Arlindo, Oceano Carleial, Ulisses Botelho, Jurandir Bóia, dentre tantos, honraram Asclépios.

Houve uma época que havia mais médicos na Assembleia Legislativa do
que em qualquer reunião do CRM: Zé Bernardes, Oscar Fontes Lima, Moacir Andrade, Fernando Duarte, Galindo, Délio Almeida e outros que me escapam.

Ser parlamentar-médico, às vezes, pode revelar-se uma atividade de altíssimo risco. Marques da Silva, obstetra em Arapiraca, não obstante a índole pacífica, tombaria sob a mira de Cacheado. Seu pecado foi ter dezesseis votos a mais do segundo colocado. Ainda está para se descobrir: qual a falta do professor de anatomia Luiz Ferreira, um modesto vereador de um município miserável, para merecer ser metralhado tão covardemente? A morte de Ceci Cunha foi outra odiosa ignomínia.

 A lenda assegura que ao abandonarem a carcaça perecível, os espíritos dos médicos vão habitar a constelação do Serpentário, habitat de Asclépios. Por essa via, Oscar Fontes Lima, Cícero Canuto Arapiraca e Zé Bernardes estariam se reencontrando.

 

sábado, 4 de janeiro de 2014

AS ÚLTIMAS LÁGRIMAS

 
 
Ele voltou ao velho bairro da infância. Sentou-se na praça. Avaliou a Matriz de Santo Antonio. Lembrou-se que os sinos foram doação de um dos moradores: Jacintho Nunes Leite. Portuguesinho arrojado! Montaria a primeira fundição no Estado. Botou água encanada no Centro da cidade, antes em Bebedouro. Foi concessionário do serviço de bonde à tração animal...
 
JNL era abolicionista. Cumpriria aquele ritual que dos abolicionistas endinheirados se esperava: comprava escravos e os alforriava. Fazia algo mais, como, por exemplo, dar-lhes emprego. Humanista e humanitário,  a Fábrica Carmen, de Fernão Velho, era uma das grifes do saudoso comendador.
 
O visitante também sabia que, naquela praça, onde agora mergulhava no seu passado, funcionou um cemitério. Inconformado com um sepulcrário naquela localização, Nunes Leite promoveria uma das mais radicais mudanças em um bairro. Para consolar os recalcitrantes, doaria os portões de ferro do novel campo-santo. Com direito à inscrição latina feita por ninguém menos que o jovem latinista Aloísio Galvão.
 
 Meu amigo de infância tinha pressa. Com os dias  de vida contados, jogava os últimos minutos de uma prorrogação com “gol da lua”. Reviu-se menino implorando vaga num time de feras. Não era craque, apenas um esforçado. Conspiravam a seu desfavor os fatos de ser negro, pobre e morar a oeste da “Praça”. Ou seja, além da estação ferroviária, fatal marco divisório entre “os ricos da Praça e os outros”.
A mãe era lavadeira. O pai, um negrão imenso e arredio, pescador, vozeirão de cantor de soul, de indefectível presença nas procissões. Estimado membro da Congregação Mariana, nas horas vagas, um incorrigível raparigueiro. Os lendários apetrechos masculinos do piedoso cristão, para desgosto do filho, a genética lhos negara. Para completar, em vez do tom abaritonado paterno, herdara ridículo vocal de intérprete de bossa nova. Mesmo assim, garantia, não dava vexames ao eleitorado feminino.
 
Era discriminado. Contudo, a performance do pai apararia arestas na convivência com a turma da “Praça”. Bolsista do Colégio Guido, embora medíocre, seria mais um credencial para participar
dos bailinhos no 29 de Junho, o clube do bairro...
 
 Aos prantos, segredou-me: tinha tudo para dar errado. Após algumas cabeçadas, fez carreira na Marinha. Hoje, comandante aposentado, depois de navegar pelos sete mares, antes de sua iminente morte física, quis, neste primeiro de janeiro, banhar-se de saudades.