O LÁPIS
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL
E. Lisioff não mais suportava tanta angústia. Estava
certo de que um corpo estranho, entalado no seu tubo digestivo, seria a causa de todos os sofrimentos físicos
e morais. Já não conseguia se concentrar. Professor de economia na famosíssima
Heidelberg, misturava alhos com bugalhos. No transtornado cérebro do delirante,
os pioneiros fisiocratas franceses confundiam-se com os psiquiatras Kraepelin e
Kretschmer. Nutria particular desprezo por K. Jaspers, seu colega de
instituição.
Um lápis, supostamente alojado na alça sigmoide,
tornar-se-ia a razão e o porquê da existência do maluco economista. Luterano
inarredável, estava convicto de que um
complô, liderado pela Igreja Católica (“o papa em pessoa”), pela burguesia e pelos psiquiatras da prestigiosa
escola germânica, havia executado esse ato de “vandalismo sexual”, aproveitando
um dos tantos momentos de contumaz bebedeira. Dormindo profundamente, nu, tal
qual um Noé embriagado, seus orifícios naturais estariam vulneráveis a
“leviandades e canalhices”. “Que mundo! Nem dormir despido o cidadão tinha mais
direito”.
Percorreu a Europa em busca de
solução. Embora sucessivos exames radiológicos negassem a existência do corpo
estranho, exigia ser operado. Antiamericano, comunistóide, ainda assim esteve
em Baltimore, com o célebre cirurgião Halsted. Saiu esculhambando com o homem:
de insensível capitalista a burguês posudo. Ficou irritado porque pagou a
consulta “para nada”.
Fracassariam seus apelos ao espiritismo. O exotismo o levou ao
candomblé baiano. Quase à socapa, teria vindo a Maceió. Consultou-se com o
jovem cirurgião germanófilo Clemente Mariano que, sem mais rodeios, recomendou-lhe
procurar um psiquiatra. Quem sabe, até o
Dr. Freud. “Não sei o porquê dessa insistência. Está mais do que comprovado: o
senhor não tem lápis coisa nenhuma na sua barriga; estava bêbado e alguém deve
ter introduzido outro elemento. Botou e tirou. Lápis é que não foi. Aprenda
essa lição: um homem de bem (e precavido!) não dorme nu, seu Lisioff”,
sentenciou, severo.
Doutor Clemente prosseguiria: “Retorne
a sua terra. Perdoe os chifres que sua
mulher plantou na testa e volte para ela.
Deixe de beber. Está provado que a bebida não lhe faz bem. Sobretudo, não durma
sem roupa”. “Talvez, Dr. Freud consiga
tirar essas ideias malucas da sua cabeça”. O alemão, que desde sempre odiava
psiquiatras, quis malcriar-se, mas encontrou no reimoso alagoano osso duro de
roer... É! Talvez o lápis não fosse
apenas um lápis...
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