sábado, 23 de novembro de 2013

O LÁPIS


O LÁPIS

RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

E. Lisioff  não mais suportava tanta angústia. Estava certo de que um corpo estranho, entalado no seu tubo digestivo,  seria a causa de todos os sofrimentos físicos e morais. Já não conseguia se concentrar. Professor de economia na famosíssima Heidelberg, misturava alhos com bugalhos. No transtornado cérebro do delirante, os pioneiros fisiocratas franceses confundiam-se com os psiquiatras Kraepelin e Kretschmer. Nutria particular desprezo por K. Jaspers, seu colega de instituição.

 Um  lápis, supostamente alojado na alça sigmoide, tornar-se-ia a razão e o porquê da existência do maluco economista. Luterano inarredável, estava convicto de  que um complô, liderado pela Igreja Católica (“o papa em pessoa”), pela  burguesia e pelos psiquiatras da prestigiosa escola germânica, havia executado esse ato de “vandalismo sexual”, aproveitando um dos tantos momentos de contumaz bebedeira. Dormindo profundamente, nu, tal qual um Noé embriagado, seus orifícios naturais estariam vulneráveis a “leviandades e canalhices”. “Que mundo! Nem dormir despido o cidadão tinha mais direito”.

Percorreu a Europa em busca de solução. Embora sucessivos exames radiológicos negassem a existência do corpo estranho, exigia ser operado. Antiamericano, comunistóide, ainda assim esteve em Baltimore, com o célebre cirurgião Halsted. Saiu esculhambando com o homem: de insensível capitalista a burguês posudo. Ficou irritado porque pagou a consulta “para nada”.

Fracassariam seus  apelos ao espiritismo. O exotismo o levou ao candomblé baiano. Quase à socapa, teria vindo a Maceió. Consultou-se com o jovem cirurgião germanófilo Clemente Mariano que, sem mais rodeios, recomendou-lhe procurar um psiquiatra. Quem sabe,  até o Dr. Freud. “Não sei o porquê dessa insistência. Está mais do que comprovado: o senhor não tem lápis coisa nenhuma na sua barriga; estava bêbado e alguém deve ter introduzido outro elemento. Botou e tirou. Lápis é que não foi. Aprenda essa lição: um homem de bem (e precavido!) não dorme nu, seu Lisioff”, sentenciou, severo.

Doutor Clemente prosseguiria: “Retorne a  sua terra. Perdoe os chifres que sua mulher plantou na testa  e volte para ela. Deixe de beber. Está provado que a bebida não lhe faz bem. Sobretudo, não durma sem roupa”.  “Talvez, Dr. Freud consiga tirar essas ideias malucas da sua cabeça”. O alemão, que desde sempre odiava psiquiatras, quis malcriar-se, mas encontrou no reimoso alagoano osso duro de roer...  É! Talvez o lápis não fosse apenas um lápis...

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