domingo, 2 de dezembro de 2012

O BOM SELVAGEM

O BOM SELVAGEM
Por: » RONALD MENDONÇA – médico e membro da AAL.
Encaro, mais uma vez, a sacolejante travessia do Atlântico. O motivo não poderia ser mais nobre: a busca de novas técnicas neurocirúrgicas no Velho Mundo, especificamente na Alemanha, teoricamente, último reduto do selvagem capitalismo. Como anunciam nossos amigos socialistas, o capitalismo está moribundo. Respira com a ajuda de aparelhos, recebe alimentação por sonda e é estimulado por drogas vasoativas. A Prússia é exceção.

Não quero pensar nisso. Vivo ainda as emoções de quase 12 horas de voo. Onde eu estava com a cabeça quando resolvi ser neurocirurgião? Poderia ter atendido ao chamamento divino e ter abraçado a vida religiosa. Hoje, sexagenário, certamente estaria em vias de merecido recolhimento monástico. Prosaica bicicleta seria meu meio de transporte. Talvez fosse um monsenhor ou um gordo cônego.

Com sorte teria sido pároco da Matriz de Bebedouro. Minha inspiração laica seria o Major Bonifácio Silveira. Organizaria quermesses. O pastoril iria reviver. Lindas pastorinhas cheias de graça estariam defendendo suas cores. O São João voltaria a viver o apogeu. Para organizar o Carnaval convocaria ninguém menos que Carlito Lima.

Nas minhas homilias não faltariam Cícero e Aristóteles, Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Ensinaria que o mundo foi feito em uma semana. A modéstia, somente o excesso de modéstia divina fez com que o Criador demorasse tanto tempo.Reafirmaria que o Paraíso Terrestre foi bom enquanto durou. Infelizmente, Adão e Eva jogaram tudo fora. Tarados insaciáveis, não resistiram a uma rapidinha. A cobra levaria a culpa.

Enxotados a pontapés, mancharam o DNA da alma com uma tatuagem indelével. Como castigo, tivemos de suar para comer. Claro que essa medida não atingiu a todos. Membros e aliados de certo partido político foram dispensados dessa obrigação.

Nos meus sermões, não deixaria de bater nessa tecla: Deus misericordioso enviou seu filho unigênito, nascido de uma virgem, para nos livrar da mancha com que Adão e Eva melaram nossa alma.

Inevitavelmente, iria aos cemitérios encomendar almas desencarnadas. Umas poucas viveriam a glória dos céus. A maioria absoluta seria de uma horda de cafajestes que iria assar eternamente nas labaredas dos infernos.

O fato é que sobrevivemos. Nadja, minha esposa, o neurocirurgião Aldo Calaça e eu. No mesmo voo, o cacique Raoni, com seu sensual adereço labial, também ileso pisou em território europeu. Ignoro sua missão. Quem sabe, será entronizado nos saraus literários como o “bom selvagem”... Aquele que nasce bom, mas é corrompido pela sociedade consumista

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