quarta-feira, 23 de julho de 2014

NEM NEYMAR



NEM NEYMAR
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Forasteiro, contava o que queria. Na verdade, não era isso que havia planejado para sua vida, mas as coisas foram acontecendo e fugiram do controle. Reconhecia-se: não era um mau dentista. Embora nada tenha criado, procurou manter-se razoavelmente atualizado com os avanços da profissão.
Foi pioneiro em tratamento de canal. Lá pelos anos 80,  decidiu enveredar para a ortodontia e a radiologia, outras grandes novidades. Deitou e rolou. Tornou-se uma referência na Vila Pompeia, bairro de classe média de São Paulo. Era bom em marketing, de modo que além do boca-a-boca (literalmente) recebia clientes encaminhados por colegas. Bons tempos aqueles. Sua conta bancária causava inveja e os gerentes ansiavam sua presença.
O dia mais feliz foi quando conseguiu equipar sua bicicleta (“a magra”) com o que havia de mais moderno no mercado japonês. Certamente, de todas as paixões, a sua bike, disparadamente, ocupava o primeiro lugar. Sim, às vezes também gostava de mulher e de tênis, não negava. Sobretudo quando caladas e subservientes. Foi um psicanalista que o alertara: sua libido era quase toda consumida no selim de sua “magra”.
Adorava desconstruir suas ex-companheiras. Ele sentia espasmos gozosos pseudomelancólicos em afirmar que a mãe das filhas era uma vadia, uma messalina. Sobre a segunda, cujo relacionamento iniciado nas jornadas de bike fora um fracasso, espalhou (mas ninguém o levou a sério) que a companheira havia lhe surrupiado todos os seus bens. Ficara “pobre”. Não dera queixa a Polícia para preservá-la...
Estava na terceira mulher e de olho na quarta. As ex-mulheres encarregaram-se de contar como era conviver com um sujeito egoísta, preocupado com saldo bancário e mais interessado em trilhas de bikes do que nas curvas, nos vales e nos morros das esposas. Por isso, estenderia seus tentáculos a territórios que ninguém o conhecesse.
Financeiramente estável, oficialmente, estava vivendo com uma designer. Já não aguentava mais suas reclamações e vice-versa. Para o público, a mulher era uma fútil, que só pensava em supérfluos. “Viviam sob o mesmo teto, mas sem dividir lençóis”.
Agora, no leito do hospital, considerava a possibilidade de ter pisado em rastro de corno. Preparando-se pra uma longa viagem pelo Vale da Ribeira, onde tinha uma namorada, sofreu um tombo idiota que resultou em múltiplas fraturas de costelas e um achatamento de vértebra. Nem Neymar foi tão azarado.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

HALDOL PARA UM TORCEDOR

HALDOL PARA UM TORCEDOR
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL
Marcionílio sempre chegava antes da hora. Nesta quarta-feira, dia seguinte ao da humilhante derrota do Brasil por 7 x 1, foi seu psiquiatra quem chegou em cima da hora com ares de ressaca. Esquizofrênico “crônico”, “delírios encistados”, percebeu as decepções entre as rugas do seu cuidador.
Aposentado da Faculdade de Medicina, fora dedicado bedel de parasitologia. Atento às aulas do rigoroso Gastão Oiticica, de súbito, convenceu-se de que Carlos Chagas havia lhe roubado as pesquisas sobre o Tripanosoma X. No início, tornou-se estranho e grosseiro. Um belo dia, interrompeu a aula e disse que tudo aquilo era balela. Chagas não passava de um farsante. “O descobridor da doença era aquele preto que estava diante de vós...
O velho Gastão  conhecia Marcionílio de menino. Era filho de um vendedor de pipocas na Praça Deodoro. Tinha tuberculose e praticamente falecera nos seus braços. Ele, Gastão, financiara parte dos estudos do garoto. Por tudo, foi doloroso ter que internar seu bedel na Zé Lopes.
Marcionílio é um psicótico. Vozes perturbadoras tiram sua tranquilidade. Não obstante, é um homem culto. Num certo momento, ensaiou identificar-se com Pedro Archanjo, personagem de Jorge Amado, do livro Tenda dos Milagres.
Admirador de Plínio Salgado, vez por outra cumprimenta com um “Anauê”, saudação dos “galinhas-verdes”, como eram chamados os seguidores do integralismo. Anticomunista juramentado, transformou seu pequeno aposento, na Rua do Sopapo, num bunk eletrônico. É de lá que fala diariamente com Deus.
Mas o velho negro estava para dar conselhos. Seu psiquiatra, quase tão velho quanto ele, decididamente ressacado, deixou-se escutar. “Meu caro doutor, acompanhei seus últimos comentários no “face”, disse solene. “O senhor se expõe demais. Parece até que o esquizofrênico é o senhor. Cuidado! Esquizofrenia na velhice é confundida com Doença de Alzheimer. Capaz do senhor ser interditado”. ”Agora, os seus amigos, doutor, só faltam dizer que o senhor soltou a bomba do Rio Sul”.
“Claro que foi gozação quando escreveu que os juízes estavam a soldo do capitalismo. Mas é a pura verdade. Tenho me comunicado com a Angela Merkel, o Bush, o Obama. Até o Hollande está envolvido. Todos estão invejosos da honestidade e competência da Dilma. Essa Copa é da Alemanha”.

“Prescreva o meu Haldol, enquanto eu lhe conto um pecado imperdoável: vou torcer pela Argentina”.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

DIDA E SALDANHA



DIDA E SALDANHA
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL
Ídolo da maior torcida do País, nunca ficou  muito clara a substituição do alagoano Dida depois do primeiro jogo do Brasil, na Copa de 1958. Afinal, embora ele não tenha marcado, o Brasil derrotou a Áustria por 3 x 0. À sorrelfa diz-se que sua amizade com o armador Rubens, ambos do Flamengo, teria afrontado os preconceituosos dirigentes da CBD. Dida seria substituído por Mazzola, um centroavante. Pelé, o reserva oficial, só estrearia no terceiro jogo.
João Saldanha era uma das poucas pessoas no mundo que sabia o porquê dos times de futebol serem compostos por onze jogadores. Esporte bretão, o futebol teria se desenvolvido nos colégios ingleses. As turmas de garotos/adolescentes eram compostas por dez alunos.
Cada turma tinha o seu bedel, que ficava no frio assistindo o cotejo. Como ninguém queria ficar no gol, a “escalação” dos bedeis como décimo primeiro jogador seria um pulo. Além da função precípua de impedir os gols do adversário, havia uma outra, digamos, complementar e menos nobre: procurar a bola quando desaparecia nas matas que circundavam o campo...
Saldanha conhecia muitas histórias de futebol. Pertencia também àquela casta de “comunistas lights” que adoravam discutir as crises cíclicas do capitalismo na mesa de um bar, regado a um bom escocês.
Técnico de pouca experiência, em 1969, aceitou o convite para comandar a seleção brasileira numa fase complicada. É que o escrete vinha de uma participação bisonha na Copa de 1966, em Londres, quando foi derrotado por Portugal, em jogo histórico.
Saldanha organizaria a seleção dando nome aos bois. Depois de brilhar nas eliminatórias, as “feras” de Saldanha já não faziam mais o mesmo sucesso. Em jogo treino, às vésperas da Copa de 1970, as feras empatariam com o Bangu.
Pouco afeito a críticas, chegaria a invadir as dependências do Flamengo, revólver em punho, para tomar satisfações com o técnico Yustrich, um brutamontes que marcou época. A lua de mel de Saldanha com a torcida e a imprensa havia terminado.
Quando a seleção começou a não render o esperado, os milhões de “técnicos” espalhados pelo Brasil ofereceram sugestões. Um desses “técnicos” seria ninguém menos que o general Médici, o “ditador de plantão”.
Consta que Médici,  diante de resposta atravessada de Saldanha, teria envidado esforços para derrubá-lo do cargo. Ainda sob o impacto da demissão, JS justificou ter barrado o Pelé em um dos amistosos, sob a argumentação de que o “Rei” tinha sérios problemas visuais.
Hoje tenho dificuldade para aceitar que João Saldanha tenha sido demitido pelo fato de ser comunista. Se as convicções políticas fossem, de fato, decisivas, ele sequer teria sido chamado para ser técnico.

O CADUCEU E A SERPENTE



O Caduceu e a Serpente
Ronald Mendonça
Médico e Membro da AAL
Com o rosto sulcado pelo arado do tempo, tomando emprestado a metáfora de A. Herculano, com as escassas cãs orvalhadas pelas noites de vigília em intermináveis plantões, tenho a convicção  do meu modesto papel, nem por isso desimportante, na comunidade. Afinal, quatro decênios já foram vencidos.
Desnudado das vaidades mundanas, acho que o que se espera do velho esculápio é a infalibilidade. Não é por acaso que médicos encanecidos são convocados para tentar solucionar os casos mais complicados.
Vou repetir: o médico é um dos poucos especialistas nos quais os cabelos brancos conferem  credibilidade  e segurança. Daí, nós encontrarmos veteranos clínicos e cirurgiões com consultórios abarrotados, sem perder um centímetro do prestígio  amealhado.
Não me queixo. Apesar das dores das decepções, nos meus quarenta anos de profissão tenho tido motivos de envaidecer-me e emocionar-me com inesperadas demonstrações de carinho e reconhecimento.
Ainda médico jovem fui agraciado com casos de hérnia de disco que reconheceram absoluto sucesso. Lembro um  deles -tinha trinta e poucos anos- quando fui procurado por um casal de mulheres. Uma das moças tinha dores excruciantes na região lombar.
Concluída a cirurgia com  êxito, dias depois atendi o simpático casalzinho no ambulatório do SUS. Em estado de graça pela melhora das dores, a operada brindou-me com uma inscrição tatuada em dos  punhos. Era o meu nome. Lá está indelével.
 A companheira da minha paciente, uma ex-jogadora de futebol, me traria  algo “picante”. Abro parêntese para dizer que nossas amigas eram habituadas  a comemorar vivências  com tatuagens. Uma delas, romance outonal, tivera um caso tórrido com uma decadente e medíocre cantora de rock. Parece ter sido algo arrebatador.
Como recordação daqueles tempos, conserva carinhosamente,  nas nádegas, tatuagens dos Beatles “chapados”. A cantora amava mesmo a caderneta de poupança da namorada, os jantares caros, os vinhos encorpados, as roupas de grife e os motéis de primeiro mundo. A roqueira era mais exigente e caprichosa do que amante argentina.
O fato é que nossa amiga surpreendeu. Sem que tivesse dado qualquer pista do que se tratava, para gáudio das torcidas do Flamengo e do Botafogo, a ex-jogadora exibiu, de inopinado, próximo à prega inguinal, a tatuagem representando um caduceu envolvido por uma serpente. Hipócrates iria se assustar com a exótica homenagem.