sábado, 15 de setembro de 2012

AMA DE LEITE

AMA DE LEITE


RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Não fui contemporâneo das lutas de Monteiro Lobato pela nacionalização do petróleo, nas décadas de 30 e 40 do século passado. Nacionalista empedernido, certamente não foi essa sua mais importante bandeira. Com efeito, ainda muito jovem o autor de Reinações de Narizinho herdou do avô uma gleba de terra. Promotor público ficaria revoltado com a apatia do nosso campesino - fato que atribuiu a nossa ascendência miscigenada. Chegou a publicar contundente artigo no jornal O Estado de São Paulo "denunciando" nossa condição de inferioridade, digamos, "genética".

Algum tempo depois, o grande escritor (na época ainda não era) retratou-se num texto histórico em que reconhecia o erro de sua avaliação. Na verdade, o que considerava indolência geneticamente transmitida, não passava de graves distúrbios orgânicos causados por infestação crônica de parasitos de todas as denominações, decorrente de nossas precárias condições higiênicas, do nosso abissal analfabetismo. Nossos caboclos eram reservatórios, melhor dizendo, eram verdadeiros jardins zoológicos ambulantes.

Estava aí o ambiente perfeito para o surgimento do personagem Jeca Tatu. Mais tarde, essa figura ganharia ainda maior evidência com os caderninhos produzidos pelo Laboratório Fontoura, centuplicando a venda do lendário "Biotônico Fontoura", o elixir apontado como o responsável pela saúde do Jeca.

Os livros de Monteiro Lobato marcaram a minha transição para a adolescência. Admito que não me deixei seduzir pelas traquinagens de Emília, muito menos impressionar pelo singular intelectual Visconde de Sabugosa, um leitor compulsivo que armazenava letras no seu interior. Viajei absorto com toda a "família" do Pica-Pau através da Mitologia, antes tomando um banho de civilização pela Grécia de Péricles. Quanta saudade de Lobato, da adolescência e de Narizinho.

Tia Anastácia, a negra que compunha o universo lobatiano, me era particularmente cara. Companhia indefectível de Vó Benta, imensa nas formas e no conteúdo, Anastácia lembrava-me minha babá Adelaide, nas horas vagas, pressurosa ama de leite. Abro parêntese para dizer que Adelaide foi minha cliente na universidade. Nas aulas práticas de neurologia, fazia enorme sucesso ao anunciar aos alunos sua condição de "ex-babá" do professor. Tinha pejo em declinar sua outra função.

Descobriu-se que as obras de Monteiro estariam contaminadas, consumidas por nefasto preconceito racial. É o politicamente correto.





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