domingo, 21 de março de 2010

Águas Rubras

Explicação:
Esse texto foi concluído há 6-8 anos. Há 3 anos fez parte de coletânea de autores alagoanos reunidos por Carlito Lima em "Conto das Alagoas ".


Matilde arrastou-se até à tosca janela estendendo o braço para conferir se ainda chovia. Trabalho dispensável uma vez que a água batendo forte na cobertura de palha não deixava dúvidas: desabava um toró daqueles. Protegeu o filho com um velho cobertor esfarrapado e sentou--se no girau.
José Ricardo, o filho de um ano e três meses, esvaía-se em diarréia. A febre castigava desde o dia anterior e não havia meio de baixar. De vez em quando vomitava. Estava encovado.
Inexperiente, primeiro filho, de uma pobreza indescritível, a mãe procurou auxílio na vizinhança, quase tão miserável quanto ela. Nesses tempos de chuva a flutuante clientela da rua das Palmeiras, foco da prostituição na Chã de Bebedouro, sumia de vez.
Matilde fez todos os chás recomendados até quase acabar o resumido estoque de carvão e não viu o filho melhorar. Para completar, o único posto de saúde do bairro estava fechado para reformas. Felizmente, era a madrugada da segunda-feira e ela iria para a “Saúde Pública” na Praça das Graças. Era só a chuva aliviar.
Enquanto aguardava, meditava sobre o seu destino. Não fazia três anos que sua existência transformara-se naquela desgraceira. Aluna do Asilo Bom Conselho, sua vidinha corria pacata. O pai era dono de uma movimentada banca de verduras perto da estação de Bebedouro e a mãe acumulava a função de dona de casa com a de vendedora. Moravam numa casinha, no Flexal de Baixo, onde levavam uma vida razoável. “Como pobres, nada nos falta”, costumava repetir sua mãe.
Lembranças nostálgicas. Guardava uma recordação muito viva do último Natal antes da tragédia: dançara no pastoril como primeira pastora do cordão azul. Tinha quinze anos incompletos e fez sucesso com a rapaziada. Por conta de natural beleza e graça foi a pastora que mais saiu “em cena”.
Poucos dias depois o golpe fatal: os pais esmagados pelo trem, fato inédito na cidade. Matilde ficou na casa dos vizinhos, seu Joaquim e dona Das Dores. O casal sem filhos, parecia ter encontrado a companhia ideal. Nos primeiros meses tudo dava a entender que a vida seguiria seu rumo. A adolescente continuou a freqüentar o Bom Conselho pela manhã e à tarde ajudava Das Dores a cuidar da casa.
Um dia, Matilde cismou que seu Joaquim a olhava de modo estranho parecendo querer atravessar seus vestidos de tecido ralo. Em certos dias chegou a pressentir a presença de alguém a observá-la pelas brechas da rústica porta do banheiro, enquanto se lavava. A coisa foi num crescendo, até que numa noite foi estuprada pelo dono da casa. A partir daí sua existência virou um inferno.

Literalmente apavorada, deixou-se entregar ao seu estuprador que, sob ameaças, a subjugava. Diante de Das Dores o amante a maltratava chegando a insinuar que sua presença estava se tornando pesada. A boa Das Dores ficava horrorizada com a atitude do marido, estranhando que isso partisse de um homem que pertencia à Congregação Mariana, além do fato da falsidade da afirmação. Na verdade sua ajuda era tão efetiva que chegaram a dispensar uma antiga empregada doméstica.
A órfã passara a ter sonhos horríveis. Neles aparecia se afogando na lagoa, ainda criança, implorando que seu Joaquim e dona Das Dores a ajudassem, mas eles ficavam indiferentes e apenas sorriam enquanto ela desesperada, sem poder respirar, sentia uma dor aguda no ventre como se um enorme peixe estivesse a mordê-la. Acordava sem fôlego com seu Joaquim a tapar-lhe a boca e a penetrá-la com seu membro descomunal. Um sofrimento que odiava relembrar.
Matilde avaliou que poderia ser de três para quatro horas da manhã. A chuva havia passado. O filho parara de choramingar, respirava rápido, estava com o corpo meio frio. O melhor era se apressar. Apanhou a mamadeira com água fervida, recobriu o pequeno moribundo e partiu para a rua. Queria chegar cedo na “Saúde Pública” e sabia que teria muito chão até lá.
Desceu cuidadosamente a ladeira da Chã de Bebedouro. A chuva deixara o velho e gasto calçamento ainda mais escorregadio. Quando chegou nas imediações da estação parou para descansar. Aquele ambiente era cheio de fortes lembranças. Fora ali que passara boa parte da sua infância tão recente e ao mesmo tempo tão distante. Não tinha ainda dezessete anos e já havia provado do pão que o diabo amassou.
Como num filme de terror lembrou-se, com uma ponta de felicidade, da noite em que envenenou o seu Joaquim com o formicida que dona Das Dores usava no jardim. O monstro, depois de se saciar no seu corpo, tinha o hábito de espichar-se na sua estreita cama e beber de um só gole um copo de água. No início ele mesmo o levava , depois passou a exigir que ela deixasse o copo, já cheio, debaixo da cama. Nessa noite, Joaquim sorveu de um só gole um volume de veneno que mataria um batalhão. O mal estar foi imediato. Pulou da cama e arrastou-se arquejando para o seu quarto. Um escândalo sem precedentes na pequena comunidade.
Quem imaginaria que o seu Joaquim, tão católico, tivesse um comportamento daqueles. Pobre Das Dores, com aquela menina com cara de santa dentro de casa... Quem poderia adivinhar misérias assim? O mundo estava mesmo perdido...
Matilde foi parar num reformatório para menores. Tornou-se o prato do dia dos monitores que usaram e abusaram da adolescente. Por qualquer motivo a castigavam isolando-a numa cela escura e o preço da saída era o seu corpo .
Após adquirir uma espécie de liberdade condicional, um órgão encarregado de cuidar de menores tentou, sem sucesso, colocar a jovem numa casa de família. Nessa altura, já não era mais aquela menina ingênua. O sofrimento calejara sua alma.
Desadaptada para uma convivência convencional, Matilde foi impelida à prostituição. Primeiro fez ponto na rua do Comércio, esquina com a Dois de Dezembro. Jaraguá veio depois.
Um dia, foi apresentada por uma colega a um sujeito alto e moreno chamado Benedito Mossoró. De fala mansa, seu Biu, como era conhecido o famoso proxeneta, farejando que a menina tinha “futuro” comprou remédios para curar as doenças venéreas adquiridas no reformatório.
Em Jaraguá, Matilde arrasou. De olho nos negócios, seu Biu a introduziu nas rodas dos seus clientes mais importantes. Eram, na sua maioria, desembargadores, políticos, empresários da cana de açúcar, profissionais liberais e grandes comerciantes. Houve até um senador que ficou babando por ela e, querendo exclusividade, propôs levá-la para uma das suas fazendas no interior. O homem bebia excessivamente e era quase impotente. Matilde recusou a proposta “por nojo”, como ela explicou às colegas.
Naquela época, Matilde apaixonou-se por um jovem estudante da Escola Militar de Fortaleza em férias na casa dos pais. Gostou do seu apelido, Carlito, mas gostou muito mais dos ensinamentos da arte de fazer amor, ofício ao qual o futuro oficial dedicava-se com insuperável aplicação. Nunca as férias passaram tão rápidas. A expectativa da separação inundou de tristeza as almas dos jovens amantes. Carlito adiou esse momento o quanto pôde. A pungente despedida foi regada a muitas lágrimas e gemidos, não faltando eternas juras de amor e fidelidade.
Daí em diante passaria a beber de forma exagerada e a consumir Pervintin, estimulante que a mantinha acordada, ao mesmo tempo que dava mais resistência ao álcool. Após alguns meses dessa vida desregrada, ao entardecer sentia o corpo quente e uma grande moleza. Tomava uma aspirina, alguns comprimidos de Pervintin e se sentia melhor.
Nesse momento retornou à realidade e percebeu que a chuva voltara a castigar. Abrigou-se na marquise do bar Ponto Final, em frente à Praça Bonifácio Silveira, avistando no fundo a matriz de Santo Antonio. Estava ofegante. O filho soltou um gemido mais alto e Matilde ofereceu-lhe o seio murcho que o menino agarrou sofregamente.
Ninguém nas ruas. Apenas com os seus pensamentos, voltou a lembrar-se do ano em que dançara no pastoril do padre Raimundo. Mas, a sua mente pesada não permitia ter alguma lembrança mais demorada daquela época feliz. Olhou para a Igreja e mais uma vez indagou-se o porquê de Deus ter feito tudo aquilo com ela. Que maldade teria ela cometido para merecer destino tão ordinário? Recordou-se que o padre Raimundo fora visitá-la no Reformatório e lhe dissera que Deus escreve certo por linhas tortas, que não tentasse compreendê-Lo pois Ele era o Senhor de todas as coisas, era bom e justo e sabia exatamente o que estava fazendo. Finalmente, que ela deveria rezar bastante para que Ele tivesse compaixão da sua alma envenenada pelo pecado.
A chuva novamente parou e Matilde retomou à caminhada e às suas lembranças.
Foi numa noite de sábado. Estava numa mesa da boite Tabariz em Jaraguá fazendo companhia a uns marinheiros gregos quando percebeu um rapaz a olhá-la e a fazer-lhe sinais insistentes. Sentindo-se atraída, desvencilhou-se dos rudes marujos indo sentar-se junto do desconhecido.
Chamava-se Remígio e estava ali porque brigara com a namorada e não tinha para onde ir. O papo duraria a noite toda. Ao contrário do que fazia com outros clientes, ela abriu o coração e narrou, sem retoques, os fatos mais marcantes da sua vida. Ele também não fez por menos. Disse-lhe estar no quinto ano de medicina. Contou que não tinha pai e que vivia com a mãe e mais quatro irmãos. A mãe era professora do Colégio Estadual; moravam no Prado, perto do cemitério velho. Meio envergonhada, ela confessou que o maior sonho da sua vida era ser médica e, rindo com malícia, lembrou dos tempos de criança quando brincava de médico com um menino saliente que morava próximo da sua casa.
Pareciam adolescentes jogando conversa fora. Nesse momento veio-lhe a lembrança de que nunca havia namorado de verdade, como as moças da sua idade. Nessa noite não falaram em sexo mesmo porque o rapaz não demonstrou o menor interesse. Apenas acariciou-lhe as mãos e a beijou nos lábios um beijo longo e doce que lhe aqueceu a alma. De repente, o convite que a deixou definitivamente apaixonada: “Que tal ir à praia de manhã “?
Encontraram-se no coreto da Avenida da Paz. Ficaram na areia conversando, de vez em quando um banho para refrescar. Ele voltou a falar do seu namoro. A namorada de tantos anos confessara-lhe assumida paixão por outro e dera o quase noivado por terminado.
Lá pelas três da tarde foram para a Sorveteria Sorriso, na Praça Sinimbú, onde tomaram sorvete até não poder mais. Há muito tempo Matilde não fazia um programa que não envolvesse álcool. As vezes que tinha sido convidada para sair com algum homem era para fazer bacanal ou ir a algum bar mal afamado. Estava simplesmente deslumbrada.
A caminhada pela Avenida Hermes da Fonseca, na Cambona, estava lhe tirando o fôlego. A chuva cessara definitivamente e agora um vento sul lhe triturava os ossos. As pernas ameaçaram fraquejar. Sentiu seu filho muito quieto, cuja presença era notada apenas pelo bico do peito doído, preso na boca da criança. Quem sabe, dentro de alguns poucos dias, se Deus quisesse, estaria recuperado.
O romance com Remígio duraria alguns meses. No início, chegaram a viajar juntos até Recife, de trem. A cansativa viagem de doze horas pareceu-lhe curta e o desconfortável trem um paraíso. Seus olhos sonhadores deliciaram-se com as verdejantes plantações de cana de açúcar. Cochilou tranqüila nos ombros do seu amado. Hoje seria capaz de nomear as inúmeras estações até chegar à capital pernambucana.
Quando Matilde contou a Remígio que estava grávida, o rapaz passou mal. Logo se refez e pensou que era alguma brincadeira sem graça. Depois achou que havia sido sacaneado, para finalmente chegar a conclusão de que era impossível saber-se quem era o pai, pelos óbvios motivos. Propôs-lhe abortar. Deixasse com ele que tudo seria arranjado. Irada, Matilde xingou-o com todo o seu vocabulário de prostituta. Foram aos socos e pontapés. Por um triz a coisa não terminou na polícia.
O rompimento catastrófico não fez a jovem desistir. Procurou o ex-namorado várias vezes em sua casa e na Santa Casa de Misericórdia, onde o rapaz estudava. Certo dia em que bebeu além dos limites, chegou a ir à casa da “outra”, cujo namoro havia sido reatado, justo na noite da festa de noivado do seu “ex”. Matilde tomara conhecimento do fato através de uma colega de trabalho que tinha ares de intelectual e que lera a notícia na coluna do Ícaro, do jornal Gazeta de Alagoas. Foi outro vexame.
Com a viagem de Remígio para Salvador onde, depois de formado, faria um curso de especialização, Matilde resignou-se mais uma vez. Emagrecida, com uma enorme e pouco atrativa barriga, a clientela diferenciada bateu em retirada. Voltou à degradação das ruas, terminando em Bebedouro na decadente Rua das Palmeiras. Ali pelo menos tinha um teto.
O raquítico José Ricardo nasceria na Maternidade Sampaio Marques. Mas o que chamou mesmo a atenção dos médicos foi o deplorável estado físico da mãe. Daí para o diagnóstico de uma forma avançada de tuberculose foi um nada. Estava explicada a febre diária de Matilde
Quase amanhecia. Na Praça dos Martírios, os esguichos da Fonte Luminosa, recentemente inaugurada, realizavam graciosas evoluções multicoloridas sob o compasso de uma valsa de Strauss.
Arquejante, Matilde sentou-se na beira da fonte, colocando os pés na água fria, depois de acomodar o filho imóvel ao seu lado. A febre alta entorpecia-lhe os sentidos. Viu-se criança tomando banho na lagoa, escondendo-se debaixo da ponte de Bebedouro. Ouviu a voz da mãe a chamá-la, “Matilde, Matilde, saia já daí, menina danada”! Prestou mais atenção: agora era a voz suave de Remígio insistindo para um mergulho e uns amassos no mar da Avenida.
Sentia um calor sufocante. Sem ar, com a garganta seca, não resistiu e bebeu daquela água. Ficou mais confusa ao sentir que a água não era salgada. Esboçou um sorriso sem saber de quê, que aos poucos virou gargalhada. Despiu-se enquanto cantava “boa noite meus senhores todos”, mergulhando fundo na fonte. Nesse momento, um acesso de tosse impeliu-a à superfície. Sufocada, tentava respirar, mas de sua boca só saíam golfadas de sangue. Estava morrendo.
Num derradeiro instinto de amparo maternal, Matilde agarrou o filho já sem vida e o levou consigo para o último mergulho nas, agora, rubras águas da Praça dos Martírios.

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