TARDES FAGUEIRAS
RONALD MENDONÇA
MÉDICO. MEMBRO DA AAL
Na nossa infância, pelo menos
duas vezes ao ano, iam a nossa casa o médico Cláudio Sarmento, o representante Ivon
Sotero, o vizinho Walter Souza e os tios Francisco, Ruy e Breno para uma
buchada. A despeito de outros regalos,
le plat de résistance era mesmo a buchada. Os carneiros eram presentes.
Chegavam magros e eram conduzidos ao sítio da Casa de Saúde Miguel Couto, onde
meu pai era médico, para uma engorda.
No dia, havia um ritual. O meu
tio Ruy dava umas pauladas na testa do animal, que já ficava meio bambo. A
seguir, era pendurado, de cabeça para baixo, numa linha do telhado da
lavanderia que ficava fora do corpo da casa. Depois, era sangrar, retirar o
couro e esquartejar o bicho. Havia cuidados especiais para não lesionar as
tripas. A minha mãe se encarregava da buchada e do assado. Circulavam um
“Sangue de Boi”, outros vinhos melhores, muita cerveja e comida até umas horas.
Costumeiramente, esses almoços terminavam em
um show particular, à capela, propiciado pelo cantor aposentado Walter Souza. Não
raro, o jornalista Marcus Vinicius, o Ícaro, colunista da Gazeta, comparecia. Aí
era desmantelo. O Ícaro tinha um vozeirão e um repertório vastíssimo. De vez em
quando, tomava um gole e mordia indefectível cenoura crua.
Acho que minha paixão pela música nasceu
naquelas tardes fagueiras, ouvindo velhas canções. Nervos de Aço, Nancy, Pajuçara, “lindo berço de sereias que
nos deu o Criador”, eram peças obrigatórias, numa homenagem ao dono da casa. Dissecavam-se
Noel, Pires Vermelho, Ataulfo Alves, Ari, Orestes Barbosa/Sílvio Caldas... Seu
Walter, que pertencia à velha guarda da Rádio Difusora, era alucinado pelo
Orlando Silva, até o imitava um pouco. (Que os dois não me ouçam).
Quando a cerveja minguava, remetia-me
ao Ponto Final, cem metros da nossa casa, do mesmo lado. Descia a “calçada alta”
pela escada oposta à nossa, dava mais umas passadas e, meio desconfiado, adentrava-me
no bar. Território até então inexplorado, enquanto esperava no balcão, espiava
de soslaio e sentia a curiosidade. Mais de uma vez ouviria alguém comentar, “o
doutor hoje tá na farra...”. As expressas recomendações paternas eram no
sentido das bebidas estarem geladas e contidas em “casco escuro”. Havia outra
opção, o “casco verde...” Às vezes, numa mesma tarde, com igual missão, repetidamente
retornava.
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