sexta-feira, 9 de maio de 2014

TARDES FAGUEIRAS



TARDES FAGUEIRAS
RONALD MENDONÇA
MÉDICO. MEMBRO DA AAL
Na nossa infância, pelo menos duas vezes ao ano, iam a nossa casa o médico Cláudio Sarmento, o representante Ivon Sotero, o vizinho Walter Souza e os tios Francisco, Ruy e Breno para uma buchada. A despeito de  outros regalos, le plat de résistance era mesmo a buchada. Os carneiros eram presentes. Chegavam magros e eram conduzidos ao sítio da Casa de Saúde Miguel Couto, onde meu pai era médico, para uma engorda. 
No dia, havia um ritual. O meu tio Ruy dava umas pauladas na testa do animal, que já ficava meio bambo. A seguir, era pendurado, de cabeça para baixo, numa linha do telhado da lavanderia que ficava fora do corpo da casa. Depois, era sangrar, retirar o couro e esquartejar o bicho. Havia cuidados especiais para não lesionar as tripas. A minha mãe se encarregava da buchada e do assado. Circulavam um “Sangue de Boi”, outros vinhos melhores, muita cerveja e comida até umas horas.
 Costumeiramente, esses almoços terminavam em um show particular, à capela, propiciado pelo cantor aposentado Walter Souza. Não raro, o jornalista Marcus Vinicius, o Ícaro, colunista da Gazeta, comparecia. Aí era desmantelo. O Ícaro tinha um vozeirão e um repertório vastíssimo. De vez em quando, tomava um gole e mordia indefectível cenoura crua.
 Acho que minha paixão pela música nasceu naquelas tardes fagueiras, ouvindo velhas canções. Nervos de Aço,  Nancy, Pajuçara, “lindo berço de sereias que nos deu o Criador”, eram peças obrigatórias, numa homenagem ao dono da casa. Dissecavam-se Noel, Pires Vermelho, Ataulfo Alves, Ari, Orestes Barbosa/Sílvio Caldas... Seu Walter, que pertencia à velha guarda da Rádio Difusora, era alucinado pelo Orlando Silva, até o imitava um pouco. (Que os dois não me ouçam).
Quando a cerveja minguava, remetia-me ao Ponto Final, cem metros da nossa casa, do mesmo lado. Descia a “calçada alta” pela escada oposta à nossa, dava mais umas passadas e, meio desconfiado, adentrava-me no bar. Território até então inexplorado, enquanto esperava no balcão, espiava de soslaio e sentia a curiosidade. Mais de uma vez ouviria alguém comentar, “o doutor hoje tá na farra...”. As expressas recomendações paternas eram no sentido das bebidas estarem geladas e contidas em “casco escuro”. Havia outra opção, o “casco verde...” Às vezes, numa mesma tarde, com igual missão, repetidamente  retornava.

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