sexta-feira, 30 de maio de 2014

ELA: TRAGÉDIA E ESPERANÇA



ELA: TRAGÉDIA E ESPERANÇA
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL
Stephen William Hawking é o mais famoso portador de ELA (sigla inglesa para denominar a Esclerose Lateral Amiotrófica), hoje com 72 anos, sua doença foi diagnosticada com apenas 21 anos de idade. É uma das longevidades mais espetaculares para essa moléstia.
Os primeiros contatos com portadores de ELA datam dos anos 70 do século passado, durante minha residência no Hospital do Servidor Público de São Paulo. Os Serviços de Neurocirurgia e Neurologia ocupavam o mesmo 12º andar e, por que não reconhecer, a luz que emanava do chefe da Neurologia, Prof. Roberto Melaragno Filho, ofuscava quem quer que circulasse em sua órbita.
 Melaragno pertencia à tradicional Escola Francesa de Neurologia, da Salpêtrière, que teve em Charcot, Babinsky, Pierre Marie, Garcin (o “Maître” de “Mon Maître”) linhagem do que existe de mais puro no cultivo das ciências neurológicas. A seriedade científica que irisava Roberto Melaragno impelia-nos a fugir da mediocridade. Por essa via, as gerações orientadas por ele seriam herdeiros espirituais de Charcot. Bisnetos, pois, do eminentíssimo cientista, inoculamos no nosso DNA a marca indelével de incondicional amor pela Neurologia.
ELA era uma das paixões do Prof. Melaragno. Semiólogo incomparável, era incrível o poder de interpretação dos sinais e sintomas. Transmitiam-se pesares quando identificava em seu paciente sinais de ELA. Não havia, pois, aquela vaidade (que, às vezes, teimam em caminhar junto de grandes médicos) ao acertar em cheio num diagnóstico mais complicado. Melaragno anteciparia  que a cura da ELA viria quando a ciência conseguisse  desacelerar os ponteiros que decretam a morte prematura dos neurônios.
Ao longo desses 40 anos, também amarguei dores ao acompanhar casos de ELA. Do rude trocador de pneus até conhecidos de infância, passando por amigos dos meus filhos, anônimas donas de casa, por uma doce criadora de galinhas, por estimados amigos ...
Ultimamente, Alagoas perplexa soube que o promissor cirurgião cardíaco, Hemerson Casado, era portador de ELA. Atingido em voo ascendente, o bravo colega esgrime em lutas quase quixotescas.
 Hemerson Casado tem pressa (os velhos e doentes a têm). Ele sabe que, de súbito, a alvíssara cura de sua doença sobrevirá. É com essa mesma convicção que peço ao estimado colega para desistir dessa anunciada e suicida greve de fome. Torço para o sofrido amigo nunca abandonar a serenidade.


domingo, 11 de maio de 2014

CRUEL SER HUMANO

O CRUEL SER HUMANO
RONALD MENDONÇA
MÉDICO E MEMBRO DA AAL

De vez em quando, hoje quase nunca, sentia-me compelido a ver documentários do mundo animal. Meus netos eram menores e os bichos despertavam incomensurável curiosidade. Por que não dizer? Paixão e compaixão. O mais velho, Caio, era fixado nos dinossauros. Fiquei triste quando ele demonstrou não estar tão interessado pelos lagartos prehistóricos. O clímax dessa tragédia foi ele desistir de ser veterinário.
Os vídeos traziam-me revoltas. O sangue me fervia quando bisões eram impiedosamente derrubados pelos leões. Canalhas! Não tinham coragem de encarar os chifres de frente e aí usavam de golpes baixos, atacando em bandos. Elegiam indefesos, deficientes físicos. A Natureza não perdoa solitários, mancos e fracos.
Finais previsíveis, os cercos a zebras e girafas geravam angústia. Afinal, as pescoçudas girafas estão entre os mais emblemáticos seres. O evolucionista Lamark, de tão impressionado, os incluiu como prova inconteste do seu enunciado que garantia que “a função faz o órgão”. Os leões faziam questão de ignorar esses detalhes.
Tendo a “cadeia alimentar” como modelo, biólogos, ambientalistas e palpiteiros esforçam-se para demonstrar tolerância nessa selvagem “lei do mais forte”, ou “lei da selva”. Assim, seria justo, o sacrifício de alguns para o equilíbrio da Natureza. Nada de maldade, sadismo, perversão, muito menos crueldade...
A propósito, em recente ensaio, registrei que um tio, antes de sangrar um caprino para uma buchada, aplicava-lhe golpes no segmento cefálico para tirar-lhe a consciência. Houve protestos. Só não concordo que tenha havido tortura. De fato, devem existir meios menos rudes de sacrificar essas criaturas. Quem sabe poderia ocorrer em ambiente cirúrgico, sob anestesia geral, com a, digamos, vítima intubada...
Diz-se que bovinos sacrificados em frigoríficos seriam espetados por um estilete que, através da nuca,  lhe atravessa a transição bulbopontina causando paralisia e morte imediatas. Não saberia dizer se esse meio é mais “humano”.
Penso nos animais aquáticos e nas aves. Creio não haver meio mais torturante que o empregado para matar os delicados peixinhos: a asfixia. Pinçados por traiçoeiro anzol, depois de árdua luta, são finalmente pinçados da água, onde  não respiram. Pergunto-me como alguém ainda tem coragem de comer um escabeche de peixe, ainda que sabendo de morte por tão vil processo.
Quando não são atropeladas, as simpáticas galináceas são sacrificadas através de golpes mortais no pescoço. Morrem por anemia e hipóxia. A agonia é breve, mas angustiante. Há convulsões. Nem todos têm estômago para assistir a essas cenas.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

TARDES FAGUEIRAS



TARDES FAGUEIRAS
RONALD MENDONÇA
MÉDICO. MEMBRO DA AAL
Na nossa infância, pelo menos duas vezes ao ano, iam a nossa casa o médico Cláudio Sarmento, o representante Ivon Sotero, o vizinho Walter Souza e os tios Francisco, Ruy e Breno para uma buchada. A despeito de  outros regalos, le plat de résistance era mesmo a buchada. Os carneiros eram presentes. Chegavam magros e eram conduzidos ao sítio da Casa de Saúde Miguel Couto, onde meu pai era médico, para uma engorda. 
No dia, havia um ritual. O meu tio Ruy dava umas pauladas na testa do animal, que já ficava meio bambo. A seguir, era pendurado, de cabeça para baixo, numa linha do telhado da lavanderia que ficava fora do corpo da casa. Depois, era sangrar, retirar o couro e esquartejar o bicho. Havia cuidados especiais para não lesionar as tripas. A minha mãe se encarregava da buchada e do assado. Circulavam um “Sangue de Boi”, outros vinhos melhores, muita cerveja e comida até umas horas.
 Costumeiramente, esses almoços terminavam em um show particular, à capela, propiciado pelo cantor aposentado Walter Souza. Não raro, o jornalista Marcus Vinicius, o Ícaro, colunista da Gazeta, comparecia. Aí era desmantelo. O Ícaro tinha um vozeirão e um repertório vastíssimo. De vez em quando, tomava um gole e mordia indefectível cenoura crua.
 Acho que minha paixão pela música nasceu naquelas tardes fagueiras, ouvindo velhas canções. Nervos de Aço,  Nancy, Pajuçara, “lindo berço de sereias que nos deu o Criador”, eram peças obrigatórias, numa homenagem ao dono da casa. Dissecavam-se Noel, Pires Vermelho, Ataulfo Alves, Ari, Orestes Barbosa/Sílvio Caldas... Seu Walter, que pertencia à velha guarda da Rádio Difusora, era alucinado pelo Orlando Silva, até o imitava um pouco. (Que os dois não me ouçam).
Quando a cerveja minguava, remetia-me ao Ponto Final, cem metros da nossa casa, do mesmo lado. Descia a “calçada alta” pela escada oposta à nossa, dava mais umas passadas e, meio desconfiado, adentrava-me no bar. Território até então inexplorado, enquanto esperava no balcão, espiava de soslaio e sentia a curiosidade. Mais de uma vez ouviria alguém comentar, “o doutor hoje tá na farra...”. As expressas recomendações paternas eram no sentido das bebidas estarem geladas e contidas em “casco escuro”. Havia outra opção, o “casco verde...” Às vezes, numa mesma tarde, com igual missão, repetidamente  retornava.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

VACA PREMIADA

VACA PREMIADA
RONALD MENDONÇA
MÉDICO. MEMBRO DA AAL
Pendurado na cruz, depois de comer o pão que o diabo amassou, sem muitas opções, Jesus olharia para os lados. O que Ele pensou antes de expressar-se é um dos  segredos mais bem guardados da História. Nunca li em nenhum exegeta tais ponderações. Por mais sábios que esses sujeitos sejam, nenhum arriscou qualquer palpite. A bem da verdade,  ninguém, de sã consciência ´seria capaz de afirmar categoricamente o que se passou na mente do injustiçado, naquele justo lapso de tempo. Como era Deus, é óbvio que logo sacou que aqueles sujeitos, seus companheiros de infortúnio no Monte Calvário, eram dois desqualificados morais.
Talvez aqueles mal encarados fossem agentes da CIA, certamente financiados pelo capital rentista internacional. Estariam os calhordas fingindo-se de mortos para aproveitar  momentos de divina fragilidade, simplesmente na caça de informações sigilosas? Vai-se ver, estariam a soldo da imprensa golpista e reacionária para captarem os últimos divinais suspiros.  O objetivo? Escandalizar e virar capa de Veja.  Imagino até a legenda da foto: “Jesus morre”. “Obnubilado, admitiria o Paraíso é 80% político e 20%  técnico”. Morto, não tinha como retificar.
Ouso conjecturar o que Cristo pensou quando olhou para os lados e viu que estava com a escória do mundo. “Pai, tudo bem que eu sabia que o meu destino estava sacramentado. Mas precisava ser perto de dois cabras de peia? Graças a Deus, digo a Ti, estou vazando. Não consigo, Pai,  ver-me numa Papuda,  tendo que conviver com facínoras dessa estirpe. Aprenderia coisas tão terríveis que não teria coragem de repeti-las nem na frente de Maria Madalena. Antes uma boa morte....”

Os textos sagrados registram que um deles pediu arrego. A este foi dada a garantia de que não estaria só quando mudasse de endereço. O outro escroque era um nojo. Arrogante, havia feito um curso de guerrilha no deserto.  Não obstante as provas inequívocas de sua participação nos esquemas de safadezas, pretendeu arremessar seus julgadores à ferocidade do opróbio popular. Consta que ao subir à cruz acusou-os de fazerem o jogo dos bem-te-vis, numa referência a uma corrente partidária que usava a simpática ave como símbolo. Dizendo-se mal  das pernas, antes de cumprir a pena, faria várias avaliações. Até Dr. Lucas (mais tarde,  um conhecido evangelista) teria integrado a junta médica. O sujeito tinha saúde de vaca premiada.