domingo, 23 de junho de 2013

Quem é você pra derramar meu munguzá


UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA



"Quem é você pra derramar meu munguzá ?

Ronald Mendonça
Médico e membro da AAL.


Com os versos de Tareco e Mariola, do cantor Flávio José, na cabeça, e o visual nas ondas de manifestações que ora vergastam o país, alguns depoimentos têm chamado a atenção. São mensagens em tabuletas improvisadas que sintetizam as razões de estar-se ali. Às vezes, são minibiografias que dispensam explicações orais. Bem diferente daquelas modorrentas marchas pela paz que matavam de rir bandidos e governantes.

Palmirinha está dando o ar da graça. Colado ao peito, exibe uma cartolina com os dizeres: “Nasci em 1931, vi duas guerras mundiais, sobrevivi durante a ditadura. Acreditem. Não é só por 0,20. Tenho 82 anos.” Velhinha simpática, serena, bochechinhas proeminentes, a fisionomia lembrando a da atriz Eva Tudor.

Nessas passeatas que acuam os governos, também chamou a atenção do escriba dois barbudinhos à Lenin, foto de Lamarca na camiseta regata e quepes lembrando Che. Com efeito, a trocar beijocas, mantinham, a quatro mãos, um cartaz cuja principal referência era o golpe militar de 1964. Apontavam-se como “colaboracionistas” daquele período o ex-presidente FHC e o enjoado José Serra... Tirante a celebração amorosa, ali estava, talvez, a motivação para as presenças, digamos, leninistas-lamarquistas.
Vale tudo. Partidos políticos que têm tudo a ver com os momentos de dificuldades que o país vive, sem sucesso, tentaram desfraldar suas bandeiras. Queriam marcar presença como se não tivessem responsabilidades com o desmantelo: inflação ascendente e a velha corrução a pleno vapor. Internamente, festeja-se (?) uma Copa de gastos suspeitíssimos, enquanto no exterior o país é alvo de chacotas.
Palmirinha está certa ao dizer que não é pelos 0,20 da passagem que está nas ruas. De fato, companheira, há coisas mais graves. O súbito enriquecimento dos companheiros seria uma delas? Teriam sido as despesas astronômicas com os estádios o combustível que desalojou a octogenária da cadeira de balanço? Antes, quem sabe, o desconforto das ruas a sofrer o constrangimento de assistir vovô Antonio Fagundes esfregar-se, na novela, numa mocinha com idade de ser neta dele.
A boa velhinha deve ter ouvido dos netos que Lulinha Júnior esfregou-se no “gênio da lâmpada”, coincidentemente, durante o governo do seu papá. Só o Criador poderia transformar o porteiro do zoológico num milionário proprietário rural.
Quer-se crer que d. Palmirinha, acompanhou o julgamento do mensalão. Milhões de reais desviados dos cofres públicos para o partido da ética garantir poder. Palmira deve ter ficado arrasada por ver que seus ídolos não morreram de overdose, mas tiveram morte moral. Dirceu, Genoíno (Quoque Brute?), Silvinho Land Rover, Delúbio (nosso Pitágoras), Erenice Guerra e pimpolhos, Palocci... Maluf e Lula no mesmo palanque... Aposentada do INSS (?), talvez tenha sido naquelas tardes a descoberta de que os nobres parlamentares brasileiros recebiam 15º salário.
Sem apontar uma razão específica que leva Palmirinha às ruas, atrevo-me, no entanto, a corrigi-la. Nascida em 1931, jamais poderia ter visto duas guerras mundiais. Em compensação, sobreviveu a duas ditaduras: a de Vargas e a militar.
Quanto ao casal homoafetivo, também há de se rever equivocada afirmação. No afã de esculhambar, descuidou-se da honestidade factual ao apontar os exilados FHC e José Serra como adesistas ao golpe de 1964. Nada disso, contudo, tira o romantismo desse lindo encontro de almas que se dão."

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Hipócrates radioativos entre espíritos zombeteiros


UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

HIPÓCRATES RADIOATIVOS ENTRE ESPÍRITOS ZOMBETEIROS

RONALD MENDONÇA

MÉDICO E MEMBRO DA AAL

Convocado às pressas pelo saudoso Dr. Ib Gatto Falcão, encontrei-o indignado. Acabara de saber que o Hospital Universitário da Ufal era alvo de escusos interesses que estariam, à socapa, envidando esforços junto ao Inca (Instituto Nacional do Câncer), para sabotar a doação de um aparelho de radioterapia. O "Gigante das Alagoas" já providenciara expedir dura carta aos órgãos responsáveis. Para ele, eu poderia ajudar divulgando o fato na imprensa. Dias depois, o mestre estava aliviado. O HU receberia seu equipamento.

Preferiria escrever minhas memórias fincadas em Bebedouro. Ocorre que, há alguns dias, à guisa de suposta defesa de sua especialidade (cuja honra não fora questionada), o presidente da Soc. Bras. de Radioterapia, Robson Ferrigno, em artigo publicado nessa Gazeta de Alagoas, utilizou o argumentum ad hominem como tática. Em bom português, gratuitamente, o cara pisou na minha língua.

RF obstipou-se com o metafórico "basta saber ler". Mais grave do que a dislexia é a sua falta de intimidade no uso escrito do vernáculo. Com efeito, em torturante texto ginasiano, ferindo de morte a boa norma estilística, o autor revelou abissal despreparo na arte de escrever. Cipoal de canastrismo literário, produzir artigos para jornais, decididamente, não é sua praia.

Tendencioso e arrogante, Ferrigno distorceu os pontos de vista do meu ensaio. Contrariando as evidências, criou uma ilha da fantasia para sua especialidade. Inutilmente nega sua impessoalidade. Denega os óbvios protocolos pré-estabelecidos. Define-se como um ser dotado de aguçada sensibilidade, de refinados conhecimentos... Um paladino da Saúde Pública. Talvez, um Hipócrates na versão radioativa.

Muito longe da panaceia, diga-se de passagem, ninguém disse que a radioterapia era desimportante. Quase sempre, é complementar. Com frequência, paliativa. Ela não gera doentes para si. Concluídas as sessões, os sobreviventes voltam às clínicas de origem. Simples assim. Isso chateia? Mude de ramo. Ou então, continue a projetar-se numa imagem etérea de angústia e dor para consumo público. Mas, pense bem antes de chutar o pau da barraca. A remuneração é atraente. Aporrinhações com pacientes não existem. O melhor: não se investe um centavo em aparelhagens. Ou seja, risco zero!

Apesar do ridículo texto de Ferrigno, quer-se inferir excruciante sofrimento anímico. Estaria explicada, pois, a apologética cultura antiestresse de "inadiável premência em relaxar nos finais de semana": um bom teatro, se possível, jantar no Fasano regado a Dom Pérignon. Fechando a noite, entre macios lençois, o doce aconchego ao regaço da mulher amada, que ninguém é de ferro.

Nesse ambiente de anacoretas, de franciscanos sacrifícios pessoais, impertinentes perguntas não querem calar: o manual da radioterapia preceitua aplicações em defuntos:? Será que espíritos (zombeteiros, com certeza) dos doentes persistem, indistinguíveis, vagando pelos corredores, malassombrando a boa fé dos isótopos radioativos?

sábado, 1 de junho de 2013

PARAI, COVEIROS, PARAI !

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA



PARAI, COVEIROS, PARAI!
Ronald Mendonça
Médico e Membro da AAL

O menino Camelo, cujo pai tinha sido o coveiro do novo cemitério de Bebedouro, herdaria o gosto pelo mister paterno. Nascido lá pelos anos 15 ou 20, do século passado, Camelinho, como era conhecido, conduzido pelo pai, frequentava os saraus do Major Bonifácio Silveira, lendária figura do bairro. Logo cedo foi introduzido nos mistérios e na arte do coveirismo.
Estudou a liturgia do cargo. O pai foi taxativo: “uma das coisas menos recomendáveis num coveiro é ter ar de felicidade. Se quiser meu cargo tranque o focinho”. Obediente e disciplinado, ria pouquíssimo, mais das vezes sem mostrar os dentes, podres é bom que se diga. Espécie de noblesse oblige, concluiu que um bom coveiro tem dever moral e ético de ser triste. O próprio Major Bonifácio, sempre de bem com a vida, costumava repetir para os amigos mais taciturnos: “não me venha com essa cara de coveiro (ou de Camelo)”.
Camelinho tornar-se-ia um expert. Não se conformava com o semblante, cada vez mais amarelado. Sua roupagem lembrava um corvo. Como a ave, tornou-se curvado. Uma figura medonha para as crianças e sinistra para os adultos. No dia a dia, cruzar com este homem sinalizava mau agouro. Além do aspecto, o odor era terrível.
Foi introduzindo arte. Excelente pedreiro, selecionava os melhores tijolos; ele os queria sem defeitos. Afiava a colher com que iria misturar a argamassa. Treinava o melhor golpe para os recortes do tijolo. Sabia exatamente de quantas peças iria precisar. Fechava o óstio do túmulo meticulosamente.  Um Michelangelo.  Às vezes chorava.
Em seus delírios, considerava-se a estrela dos sepultamentos. Caprichando no visual, antevia prazeres.  Um deles,  era de ouvir discursos. Pelo nome do defunto, já sabia se ia pintar orador.Leitor de jornais, conhecia os melhores. Pausadamente, acariciava o tijolo, alisava a massa com a ternura dos enamorados, aguardando a frase: “Parai, coveiros, parai!”.
 Adorava particularmente dois: Guedes de Miranda e Rodriguez de Mello. Aprendeu muita mitologia grega (Caronte, Hades, Olimpo...) com doutor Guedes, admitia. Até ouvir doutor Ib Gatto, achava que só os advogados sabiam fazer discursos.  Não foram poucas as vezes em que os soluços do coveiro, de tão altos, interromperam a fala do orador.
Aos sábados, altas horas da noite, esgueirava-se sombrio até o Ponto Final, quiosque frequentado pela boemia bebedourense. Quase escondido, trocava figurinhas com o “Tio Dito”, o barman. Entre um freguês e outro, inteirava-se dos moribundos mais graves, futuros clientes. Se padre Belarmino já aplicara a extrema unção, eram favas contadas...

Não raramente ficava meio alto. Tentava se aproximar de grupos. Desabafava. Achava-se merecedor daqueles momentos de lazer. Afinal, sua atividade era muito estressante. Ele sofria muito...   “Só muita vocação. Imagine, meu querido Dito, lidar diariamente com a morte é terrível”