sábado, 13 de outubro de 2018

LUTAS ARMADAS


LUTAS ARMADAS
RONALD MENDONÇA
Quando A Luta é armada faz vítimas de ambos os lados. A desvantagem dos que tentaram trocar a ditadura militar de 1964 por uma comunista era grande. Foi mais um equívoco de avaliação do comunismo na gana pela instalação de uma ditadura. Prestes, em 1935, cometeria o mesmo erro. Mas, a partir de 67-68, garotos da classe média identificaram-se com o charme revolucionário de Che Guevara. Virou o sonho de consumo da meninada, estranhamente  fascinada por um repugnante criminoso sanguinário, mas que divulgava frases de efeito. Um detalhe: o comunismo na Europa já dava sinais de esgotamento. O mundo queria dançar e cantar com liberdade e os países comunistas amputavam esse direito das pessoas.
 O fato é que, aqui no Brasil, tudo concorria para a Luta Armada não dar certo. Alguns garotos da minha adolescência embarcaram nessa fria. Inicialmente, mera curiosidade, reuniões secretas, de repente estavam de armas na mão fazendo sequestros, roubando bancos, invadindo residências, planejando envenenar a caixa d´água do quartel... Dias atrás conversei justamente  com o Beltrão e o Verçosa. Eu falei exatamente isso. Foi um mergulho fundo demais para quem queria tão somente discordar, desafiar e nadar. Penso que muitos arrependeram-se. Até porque o paraíso socialista não existe.
Antes dessa decisão ensandecida, houve uma dissidência nas hostes  comunistas. O próprio Prestes desaconselhara a luta armada, mas havia um Marighella, destemido, diria até irresponsável na sua coragem.... Do nada, despontaria um incendiário Lamarca, capitão desertor, apaixonando-se por Iara Iavelberg, uma psicóloga paulista...
Quando um cara pega em armas, vai para a clandestinidade e participa de guerrilhas, de confrontos com forças numérica e estrategicamente superiores já sabe o que o espera. Certamente não é a glória. Brincar de comunista com um livro de Marx debaixo do braço, no Bar do Chopp, é uma coisa , fazer parte de um bando armado comandado por um desertor surtado é outra. Lamarca levaria a sonhadora burguesinha judia ao trucidamento. A eclipse da guerriha do Araguaia ocorreria com a delação de Genoíno.
Desculpe, Prof. Marcelo Bastos. Os que pegaram em armas sabiam de tudo isso. Havia, além do mais, uma população que apoiava o regime militar. O julgamento sumário de um tenente, capturado como refém  do grupo de Lamarca, morto cruelmente a coronhadas, deu o tom de violência de ambas as partes. Nesses embates não havia orquídeas. Herzog e Fiel foram mortes terríveis...
Li um livro que os amigos de Manoel Lisboa (estudante de medicina da Ufal) escreveram. O Lisboa descrito (que eu não conheci) era ódio da cabeça aos pés. E avisava aos companheiros: "se eu for preso vou ser morto. Não delatarei".
 Estendi-me muito, amigo. Perguntei por vc., na  Pata. Ah, quanto a Bolsonaro, não há clima para intervenção militar. Ou ganha no voto ou bota o rabo entre as pernas e volta pra casa. O povo já o escolheu. Na linguagem chavão comunista, o povo é "reacionário". Quanto a Haddad, o mínimo que se pode dizer: um grande pulha! Abraços

quinta-feira, 11 de outubro de 2018


ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Ronald Mendonça

Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção mal-assombrada, resquícios do que fora um dia uma monumental barbearia. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e até de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram à idade adulta.
 Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Mané Barbeiro ficava todo cheio quando o renomado festeiro marcava um corte. Chegava na hora aprazada, cumprimentava a todos e ao seu Mané dedicava-lhe uma saudação especial: “Ó grande fígaro!”
Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor.
Contudo, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da tricotomia. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão.
O tempo passara rápido, Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas do Major Bonifácio Silveira.
 Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra, enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer unhas. Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, e aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João, mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica, tratava os clientes nos cascos.
 Fora essa herdeira que pusera tudo por água abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo misturado aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se. Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita , formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro. Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal, mesmo sem trabalharem, E o mais estranho, invejavam os irmãos que davam duro na barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela.
O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a falência, matara-se com Nitrosin.

Maceió, 2018