domingo, 9 de dezembro de 2018

TARRAFA E A COOPERATIVA BOA PESCA


TARRAFA E A COOPERATIVA BOA PESCA
RONALD MENDONÇA

No Bebedouro da minha infância, situado na Rua Cônego Costa, perto da emblemática ponte e da estação ferroviária, havia um terreno baldio com cerca de vinte metros de frente e não sei quantos de profundidade. Os fundos desse terreno davam para o mangue e consequentemente para o braço da lagoa Mundaú, cuja aparente mansidão lambe o lado austral do bairro. Aquele pedaço de terra que nos meus tempos de menino frondeava uma formidável castanheira, fora sede de dois empreendimentos que movimentavam a saúde financeira do arrabalde. Durante algum tempo um posto de gasolina ali pontificava, tendo como proprietário o dinâmico Genésio Carnaúba, sisudão, no seu medonho bigode, não obstante um grande empreendedor. Algum tempo depois, uma outra atividade ali florescera: um entreposto de caranguejos e sururus.
O entreposto de crustáceos, segundo relatos orais e apócrifos de antigos bebedourenses, tentava modelar-se nas cooperativas. Havia um líder quase lendário, um velho pescador mal-criado que tivera um dos membros inferiores amputados. Cordial, quase humilde, de quando em vez agitava-se, sobretudo depois que ingeria algumas lapadas da “aguardente de cabeça” do alambique de seu Cabral, meu padrinho de vela. Cabral era um senhor de uma distinção de lorde. Morava na mesma calçada alta onde habitávamos. Até hoje, tento encontrar uma justificativa plausível, patrocinada pela direção do Colégio Bom Conselho, para a demolição desse acidente geográfico (a calçada alta), um dos cartões postais do bairro.
Como estava a relatar, o pescador “Tarrafa”, cujo nome era Antonio, ao embriagar-se causava vexames na família e nos moradores. Vernizes de política faziam-no um caricatural Lênin de bengala e muletas. Era nessas horas que a molecoreba o provocava:”Tarrafa, eu vou?” O deficiente altercava – “Pra minha muleta pequena, venha!” As provocações continuavam: “Tarrafa, eu vou?” O pobre homem apelava –“Para o C de sua mãe, pelanco de corno, vá!” E a procissão seguia, o velho à frente bêbedo, como um Cristo desfigurado carregando e sendo carregado pelas suas toscas órteses de madeira lavrada, seguido por impiedosos garotos, tais quais as turbas enfurecidas que xingavam o crucificado do Monte Calvário.
Poucos sabiam que aquele velho cambaleante e decadente, desmoralizado na sua embriaguez, um dia já havia liderado um movimento societário, cooperativista que durara cerca de sessenta anos. Nos seus eitos solitários, montando uma canoa à vela, singrando com ímpar elegância e lepidez a lagoa Mundaú (muitas vezes, adentrando-se em mar aberto), ao ver o desperdício dos frutos enterrados nas lamas da laguna, idealizou e fez nascer um dos maiores e mais duradouros empreendimentos do bairro de Bebedouro.
Fácil não teria sido. Pescadores, sururuzeiras e outros que tais escutavam suas preleções com desconfiança. Como humildes pescadores enfrentariam os grandes conglomerados pesqueiros, que àquela altura já abarrotavam mercados e feiras com seus produtos congelados, vindos dos mares de Santa Catarina e até das frias águas do Mar do Norte e dos mares Barent. O audacioso e sonhador Tarrafa, ainda com o cabedal físico intacto, mostrava-lhes mapas. Certo dia chegou a levar um globo geográfico iluminado por dentro. Os candeeiros teriam se apagado e a voz tonitroante cuja imagem iluminada pelo globo metamorfoseara o agigantado pescador, assemelhando-o a um Moisés planificando a fuga do Egito.
O terreno existia. Genésio abrira mão, depois de desistir do posto de combustível. Como paga, semanalmente, algum fruto da lagoa era entregue em sua residência, à leste da Matriz de Santo Antonio.
O velho Tarrafa era um intuitivo. Pouca leitura, muitas vezes lia só os comentários iniciais e já desvendava mistérios que grandes inteligências levavam décadas para compreender. Num passe de mágica, a fome acabara entre os pobres da orla lacunar. Na época do defeso, o respeito pelo ambiente, que lhes dava sustento e educação aos filhos, era minuciosamente respeitado. Frigoríficos acumulavam víveres para os tempos de recesso na pesca. Como chefe desse clã, Tarrafa também prosperava. Família de muitos filhos, aos poucos, o velho líder foi cedendo às demandas familiares. Chegaria a dar o seu próprio posto de comando a uma das filhas, acreditando num potencial que se derretia em contato com ar.
 A irresponsabilidade da filha iniciou o processo de autodestruição. Os cooperados já não recebiam pelo que produziam. Os contratos de abastecimento das redes hoteleiras e hospitalares foram suspensos pela falta de compromisso da irresponsável e incompetente dirigente. O velho Antonio Tarrafa mantinha contratos pétreos com os barzinhos da orla, em franca expansão turística. Até Marechal Deodoro, nossa antiga Madalena do Sul, desistiu de participar da Cooperativa Boa Pesca, denominação aprovada pelo Conselho Diretor da empresa. Os gordos goiamuns e as patas de uçá perderam a qualidade, exalavam odor amoniacal, muitas vezes eram entregues congelados, mas deteriorados. Os pescados passariam a ser devolvidos com admoestações. Magros e desenxabidos, os comerciantes buscaram os velhos fornecedores da Bahia e de Sergipe. Outros empreendedores, de olho no sucesso da Boa Pesca, invejavam e torciam pelo fracasso.
Tarrafa, ainda com as duas pernas voltaria ao mar aberto. Resolvera salvar a empresa com algo espetacular. Já havia decidido: a filha irresponsável e truculenta, que havia posto no seu lugar, seria defenestrada. Munido de uma dúzia de garrafas da Azuladinha de Coruripe atravessou cautelosamente a Barra Nova.
Já saíra de casa meio chapado. Era uma noite tenebrosa que meteria medo em qualquer um, menos no velho Tarrafa. Uma meiota da Azuladinha já havia sido devorada quando algo monstruosamente grande e escuro, celeremente, aproximou-se de sua frágil embarcação. Num último lampejo, pensou estar diante daqueles monstros marinhos cujas histórias ouvira na infância mas que nunca dera fé.
Tarrafa daria por sí muitos dias depois. Estava no Pronto Socorro Municipal, na Rua Dias Cabral. Ninguém, nem o próprio, sabia dizer como chegara vivo e sangrando na Praia do Sobral. Uma das pernas estava esfacelada, faltavam-lhe partes, talvez mordidas de peixes. A lenda quis dizer que Tarrafa fora salvo montando algum velho peixe marinho amigo e solidário, que o pusera no dorso e o jogara no Sobral. O poderoso peixe teria afastado os predadores do mar.
Endividada, desmoralizada, o epílogo da Cooperativa Boa Pesca era inescapável. Tarrafa arrastou a sua dor enquanto pôde. Num dia de maré alta, humilhado, desprender-se-ia das muletas e saltou para a morte nas turvas e turbulentas águas sob a sua querida ponte, onde milhares de vezes ali quedava-se para assistir a morte temporária e crepuscular do avermelhado sol poente.