sexta-feira, 18 de maio de 2018

ANJO ALADO DAS BALIZAS

Anjo Alado
(De Ronald para o neto Caio)

Ah! meu querido Cainho
Que insana pressa em crescer
Apesar desse tamanhão que está a completar-se
Você nunca mudou.
Trocava as plumas a cada ano
Mas ficava igual
Bonito e generoso
O seu avô o reconheceria entre milhões.
Contrariando o meu desejo
A numeração do seu tênis o denunciava...
Assim como a das camisas
Sua coragem no retângulo enredado
O arrojo nas bolas rasteiras...
Nada o assustava
"Chute mais forte, vô, eu não sou mais criança...
O estilo elegante logo compôs o perfil alongado
Pernas compridas num corpo esbelto
Mãos avantajadas.
Os braços são como asas
Agora, distante do saudoso velho avô
Voa e encanta o Velho Mundo
Como um anjo alado das balizas.
ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA
Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção "mal-assombrada", resquícios do que fora um dia uma monumental  barbearia. Altas horas, noctívagos e outros seres noturnos relatavam costumar ouvir estranhos ruídos, talvez soluços, gemidos e até, quem sabe, sorumbáticas gargalhadas. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e depois de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. No barato, dez crianças chegaram à idade adulta. Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e  D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província. Vivia-se, no bairro de Bebedouro, aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto impetuoso reprodutor. Contudo, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião. Como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da tricoplastia. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, não descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão. O tempo passara rápido, as crianças cresceram com um ritmo que desagradou ao fígaro bebedourense.Queria-os sempre crianças... Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas. Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos, Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra, enfim, uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta filha especializara-se em fazer unhas.  Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, ouvindo lorotas de senis. Aparecia na "catedral" apenas às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza. Preferira ser subalterna ao Pai João,  mas atrás desse "complexo de vira-lata" estava a certeza do ganho garantido na empresa familiar, mesmo sem produzir. Uma outra ficara no caixa e na parte administrativa. Incompetente, relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica e alcoólatra tratava os clientes nos cascos. Fora a incúria dessa herdeira que pusera tudo por água abaixo. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas prosaicas lâminas de gilete. Os  alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom encardido, mal-lavados e mal-cheirosos. Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os pés e pernas dos ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo  misturado aos fétidos excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se. Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar regularmente o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra. O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar moralizar a empresa. Um antigo sociólogo, certa feita , formulou uma hipótese sobre as causas do desastre da barbearia. Segundo ele, o fato de alguns dos filhos do Seu Mané terem botado anel de doutor no dedo fizeram-lhes  envergonhar-se da barbearia. Quer-se crer que se envergonhavam do pai barbeiro. Por outro lado, esses próprios doutores pretendiam manter uma retirada mensal, mesmo sem trabalharem, E o mais estranho,  invejavam os irmãos que davam duro na barbearia e ganhavam algum trocado, garantindo ainda uma parca clientela. O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velório do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a falência, matara-se com Nitrosin.