quarta-feira, 7 de junho de 2017

O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA FRIA


O amor em tempos de guerra fria
O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA FRIA
Não sei exatamente quando conheci o sr. Milton Dario. Ele era do ramo de medicamentos e amigo do meu tio Ruy Mendonça. Logo soube que ele tinha umas filhas bonitas. Uma delas, particularmente, mexeu sem cerimônia, com os meus objetos internos mais profundos. Era uma morena muito inteligente, bonita, de corpo, a meu ver, que deveria ser a cópia de sua conterrânea Iracema, “a virgem de lábios de mel” de Alencar.

Gostava de conversar com seu Milton. Ele era um teórico marxista muito informado. Amigo dos Moreira, convivia com a nata do socialismo tupiniquim. Ainda hoje, Jailson Boia me diz que seu Milton teria sido o seu grande mentor. O lendário Jaime Miranda era seu interlocutor habitual. Há relatos asseverando e testemunhando ambos sentados no meio-fio, em frente à casa do meu futuro sogro, adentrando-se pelas noites. Não alcancei essa época.

Quando arrastei asas para Nadja, filha mais velha do casal Inês- Milton, esforcei-me para fazer uma espécie de média ao fingir interesse pela Intentona de 1935. Na verdade, estava de olho na bela morena de lábios de fogo. O sogro discutia alguma coisa de política. Se ele tentava me seduzir, me politizar, perdia o verbo e o tempo, já fazia tempo que conhecia o genocídio lenin-stalinista. Estava pouco me lixando se o acordo entre Hitler e Stalin era uma farsa, posto que ninguém confiava em ninguém. A exploração capitalista e a escravidão comunista se equivaliam. O paredón guevarista-fidelista ainda ressoava nos nossos tímpanos. Mas era o tipo de papo que eu não queria levar com o pai da minha paixão.

Não estava a fim de criar área de atrito. Fazia caras e bocas de indignação pelo que os sórdidos imperialistas americanos estavam tramando para o Brasil.

Mas meu negócio era outro. Dois objetivos guiavam meus instintos burgueses. Terminar o meu curso de Medicina e conquistar de uma vez por todas o coração daquela Iracema da Praça Sinimbu. Imaginem se eu queria saber se tinha sido Béria, o valet de chambre de Stalin, o grande homicida soviético. O que eu queria mesmo era manter uma atmosfera de simpatia e ter a confiança do sogrão de poder sair com aquela menina moça que definitivamente trucidara a minha adolescente e apaixonada mente. Os primeiros e os últimos pensamentos do dia eram para Nadja.

O velho Milton, matreiro de tantas guerras, driblava com maestria os patrulheiros que queriam dar palpites no namoro de sua filha mais velha, uma menina de ouro que passou a vida escolar tirando notas que o enchiam de orgulho. O novo (e único) namorado da Nadja tinha um senão que desagradava profundamente a militância. Ronald era filho do Zé Lopes, recatado médico de Bebedouro que tinha um defeito imperdoável: votava nos candidatos da antiga UDN.

Quando interrogado pelos camaradas sobre minhas posições políticas, seu Milton não se prolongava em detalhes. Simplesmente respondia que o candidato a genro era um “um liberal-democrata” e mudava de conversa. Quase cinquenta anos se foram desde aqueles interrogatórios que as esquerdas adoram fazer. Digo a vocês: em lugar nenhum do mundo eu ia conseguir namorar com uma comunistinha mais linda que Nadja. Doutra parte, ela jamais teria a seus pés um burguês que a amasse mais e melhor do que eu.

BEBEDOURO: VADIAS MEMÓRIAS DE UM VELHO SUBURBANO


Bebedouro

Vadias Memórias

De Um Velho Suburbano

Ronald Mendonça





                                                                                              I

A Ladeira do Calmon, onde me encontrava desfrutando do magnífico por do sol, estava muito diferente daquela que minhas “cansadas retinas” guardaram. Naqueles tempos, um extenso e profundo sulco marcava o barro vermelho da ladeira. Nos períodos de chuva, os carros tinham dificuldade de transitar.  Quero crer que poucos moradores hoje conhecem aquele cume como o “Alto do Urubu”. Logo abaixo, à direita de quem desce, havia uma mata rala com escassas jurubebas e algumas plantas enfezadas que serviam de esconderijo para nossas brincadeiras de “mocinho e bandido”. Meu irmão Robson e eu, por conta de um amigo, Vânio Calheiros, que morava  vizinho a este matagal, de vez em quando íamos lá brincar.
Uma das minhas lembranças da Ladeira do Calmon foi do momento em que eu enfiei o calcanhar na roda traseira da bicicleta do Val (Florival). Havíamos saído em grupo, de bicicleta, para o Catolé. Um tio materno, Manuel Góes, fazia parte. O Robson estava na garupa de sua Monark. Eu era mais leve e fiquei na garupa do  Val. Ele montava uma bicicleta Mercury,  da irmã dele, Yara Barreiros. Alguns anos mais velho, padecia de um membro inferior atrofiado, sequela de paralisia infantil. Brigão, possuía braços fortes e um tronco avantajado e havia algo de radical na sua conduta. Comigo  ele era legal.  Chamava-me até por um apelido, “Nonda”, que eu havia adquirido numa escolinha para crianças. O “Nonda” era uma referência a Epaminondas, goleiro do CSA na década de 50.
Naquela  tarde, o pessoal resolveu voltar pelo Tabuleiro. Era uma aventura.  O arrodeio  era desnecessário, posto que do Catolé alcançava-se Bebedouro facilmente, sem malabarismos geográficos. O fato é que o estouvado do Val, ao chegarmos no topo da ladeira, gritou que eu devia me segurar e pedalou ladeira abaixo. Apostava velocidade com os outros. Sua deficiência, certamente, o compelia a competir de todas as formas. Desesperado, tentei me segurar como podia. Foi nessa que enfiei o pé na roda. Ferida feíssima que demoraria a cicatrizar...
Mais acima do ponto onde eu estacionara, em direção ao Sanatório, havia  uma casa (“terreiro”) onde se dançava xangô. Muitas noites despertei sob o batuque desses rituais. Já estava taludinho quando fui assistir a uma dessas “sessões”. Os amigos, um pouco mais velhos, experimentaram do xequeté, uma mistura alcoólica, comum nos terreiros de macumba. Com relutância, o Pai de Santo permitiu que acompanhássemos o desenrolar do culto. Nunca me detive muito nessas lembranças. O que restou foram mulheres de saias compridas cantando e dançando em roda. Acho que movimentavam os braços para cima. De vez em quando uma delas “incorporava”  alguma entidade, rodava sobre si mesma e era amparada pelas companheiras. O cabelo era solto e ela desaparecia do salão de danças. Os comentários dos amigos seriam no sentido de uma suposta visita a um altar instalado em um cômodo contíguo, sob a supervisão do Babalorixá.


                                                                                              II

Mas agora está mudado. Um asfalto substituiu o barro. As adjacências da casa do meu amigo transformaram-se num conjunto residencial. O que ainda não mudou foi a bela e nostálgica visão da lagoa e a bonita fachada do “Asylo das Órfãs”.
Enquanto descia vagarosamente a Ladeira do Calmon, busquei mais retalhos da minha longa convivência no bairro. Atravessei a linha férrea e vislumbrei, à esquerda, a Igreja Batista. Não posso passar por essa construção sem me lembrar do pastor Plácido, um carrancudo cidadão, cuja simpática filha, Nancy, era amiga das minhas irmãs. Mas foi ali, sacrossanto sítio onde pastor Plácido pregava o evangelho, que o Major Bonifácio, anos antes, associar-se-ia a amigos intelectuais e amantes das profanas tragédias gregas (seu Teles, seu Anísio Costa e outros) para fundar um teatro, segundo consta no livro da escritora Ilza Porto sobre o avô Bonifácio.
A Rua José Bruno Ferrari, muito familiar, posto que lá moravam a avó Moreninha e a tia Margarida, na minha infância e adolescência denominava-se 25 de Dezembro. Hoje, via obrigatória para quem desce o Calmon, é o traço de união entre a Rua Passos de Miranda e a Praça Bonifácio Silveira. Sua continuidade na direção oeste terminava  na casa construída pelo pioneiro Jacintho Nunes Leite,  anterior e lateral à Matriz. Com o redesenho para ampliação da praça, o tráfego  em frente à igreja foi interrompido. O logradouro tornou-se um prolongamento externo do templo. Por isso, os veículos que descem pela Ladeira do Calmon com destino a Maceió não podem seguir em frente pela Passos de Miranda  até  à R. Cônego Costa, a rua principal do bairro.
Houve um tempo  em que o bonde elétrico era um dos meios de transporte mais ativos do bairro. Sem que atentasse para o fato, testemunhei os estertores desses veículos. Em Bebedouro, o bonde morreu aos poucos. Primeiro, deixou de circular na Praça Bonifácio Silveira. Depois, passaria a parar cada vez mais distante da Matriz de Santo Antonio. Seus últimos pontos finais ocorreriam nas “Mangueiras”, em frente à Vila Lilota, mansão da família Leão, hoje Clínica de Repouso Dr. José Lopes de Mendonça.
Os bondes tiveram sua época áurea. Durante as principais festas do ano, sobretudo no Natal, os bondes de Bebedouro tiveram singular importância. Com efeito, durante cerca de duas décadas, as festas promovidas pelo lendário Major Bonifácio Silveira eram o que de melhor havia de festejos na capital e, provavelmente, no interior. Descrevia-se a presença de caravanas até de outros Estados, atraídas pela criatividade e animação nos folguedos.
Quando eu me entendi de gente, havia no ar uma nostalgia, uma orfandade do Major Bonifácio Silveira. Há algum tempo, busquei conhecer melhor o mítico festeiro. Ao debruçar-me na sua história, deparei-me com outra figura que é pouco lembrada: Jacintho Nunes Leite. De fato, Nunes Leite foi um imigrante português que por aqui aportou em 1860. Apaixonar-se-ia pelo arrabalde. Naquela época, havia águas correntes claras e abundantes, como as do Rio Silva. O braço da lagoa era um manancial aparentemente inesgotável de alimentos, sobretudo do sururu. Por sinal, ainda alcancei uma pesca abundante, ali mesmo às margens da lagoa, perto da ponte. Bebedouro era um sítio de muitas fruteiras, de clima agradabilíssimo, refrescado por brisas suaves vindas do sul.
JNL era um empreendedor atento. Graças a isso, o bairro sofreria profundas transformações. A começar pela transferência do cemitério, primitivamente localizado na praça onde se situa a Matriz. Não é fácil mudar esse equipamento. Afinal, restos humanos  não podem ser tratados de qualquer jeito. Mas o fato é que o ousado imigrante promoveria a mudança. Idealizador da primeira fundição do Estado, garantiria os portões de ferro da novel necrópole.
Sob a influência de Nunes Leite, a Matriz de Santo Antonio teria nova roupagem. As paredes internas da igreja foram revestidas de azulejos de Portugal. Os velhos sinos seriam substituídos por novíssimos, confeccionados na fundição do benemérito. Com loja na R. do Comércio, JNL colocou em Bebedouro uma fábrica de vidros e, em Fernão Velho, instalaria o que viria a ser a Fábrica Carmen, de tecidos. Várias picadas seriam abertas, desde a Cambona, para permitir a circulação de bondes por tração animal, cuja concessão adquirira. Foi de sua iniciativa botar água encanada em Bebedouro e no centro da cidade.
Politicamente, JNL era influenciado pelos ideais abolicionistas. Comprava escravos e os alforriava, iniciativas que causavam incômodo aos industriais da cana de açúcar. O fato de possuir uma fundição à altura das necessidades do mercado, inibia retaliações de forma mais aberta. A casa mais emblemática do bairro foi construída por ele. Ainda está de pé, bem conservada, habitada por um dos descendentes, na Praça Bonifácio Silveira.
Com a morte de JNL, no segundo decênio do século XX, a figura impressionante de outro abolicionista reluziria: Bonifácio Magalhães da Silveira. (Não tenho dados suficientes para afirmar se essas duas grandes personalidades mantinham relações de amizade e cooperação.) Silveira era pernambucano de nascimento. Cedo transferiu-se com a família para Alagoas. Funcionário público, major da Guarda Nacional, político, escritor, memorialista, ator, era, sobretudo, um “agitador cultural”. Tratava-se, sobretudo, de um festeiro nato. Na minha infância e adolescência conheci pessoas que conviveram intimamente com o Major, como era chamado. Entre os parentes de Bonifácio da Silveira cabe destacar seus irmãos Luiz, fundador da Gazeta de Alagoas e Faustino, professor de matemática e pai da psiquiatra Nise da Silveira.
Um dado histórico notabiliza o Major além do seu pendor para organizar festas populares: ele participou com inflamado discurso das comemorações pela assinatura da Lei Áurea. Em 1938, seria convocado a integrar o comitê  comemorativo do cinquentenário dessa Lei, na condição de testemunha da História.
 O fato é que a fama de  Bebedouro como um “bairro de elite” vem dessa época.  Ainda não havia o hábito da beira mar. Com a arrumada na casa promovida pelo industrial Nunes Leite, o arrabalde despertaria  a atenção, justamente depois que o Major decidiu retirar o bairro do “marasmo”. Bebedouro sairia da condição de simples “corredor viário” em direção ao interior e passaria a ser visto como um polo de festejos, onde os folguedos eram interpretados, reinventados, e as pessoas podiam divertir-se de forma sadia, com a comodidade de transportes por trilhos (bonde e trem) e rodoviário. Não obstante, a via principal de acesso não ser calçada. Ainda havia a opção fluvial, lacustre, desde o Porto das Balsas, na Levada.
Pessoas que frequentaram as festas de Bebedouro referiram grandes dificuldades para se conseguir alugar uma casa para permanecer no bairro, durante esses períodos. Datam do segundo decênio do século XX as construções das mansões no Mutange, quando famílias mais abastadas ou erguiam esses casarões para morar definitivamente ou, simplesmente, para veranear. O carro-chefe dos festejos de Bebedouro era o Natal. O São João também era animadíssimo. Tudo leva a crer que os folguedos carnavalescos eram partilhados com o centro da cidade. Lá, havia os corsos, os bailes nos clubes sociais, os desfiles de escolas e os banhos de mar à fantasia. Era difícil mesmo competir com tanta pluralidade.
Nasci na Rua Cônego Costa, 3863, tendo o meu pai como parteiro. Aliás, todos os filhos nasceram em casa, sob a assistência paterna. Minha avó materna, Moreninha, assumia o papel de assistente.  Poucos anos depois, fomos morar vizinho ao Asilo Bom Conselho, no número 3703 da mesma rua,  num imóvel antigo do começo do século. Ficava numa calçada alta. Três casas ocupavam essa elevação. Era uma espécie de cartão postal do bairro. Havia outra  calçada alta em frente. Com essa disposição topográfica ficava evidente  que o morro havia sido cortado para permitir a continuidade da via. Ao nosso lado, à esquerda, morava um casal de idosos, Olímpia e Pedro Fernandes, uma irmã de Olímpia, Bulú, e ainda Rosália, uma negra esquisita, despenteada, queria parecer inimiga de banhos. Para completar, Rosália  falava sozinha. Na casa seguinte, meus padrinhos Adalberto Cabral, Bilinha e os filhos, Luzinha, Ilma e Albani. O rapaz, caladão,  trabalhava com o pai no alambique. Algo taciturno, circulava montado em indefectível bicicleta preta. Pedro Fernandes, com fama de namorador, era chefe da Estação. Adalberto era um senhor elegante, não muito alto, trajava sempre terno branco. Tinha um alambique de cana. Meu padrinho, impreterivelmente, no meu aniversário, presenteava-me com cinquenta notas novíssimas de um cruzeiro. Independentemente desse mimo, era um homem manso e bom.
Entre os moradores da calçada alta de frente, recordo do sapateiro Pedro e da esposa, Marinita, professora de um dos grupos escolares. Seu vizinho era uma família enorme, de onze filhos, cujo chefe da casa era marceneiro. Exatamente em frente às nossas janelas, ficava a casa de Anísio Costa e dona Áurea, ele funcionário público aposentado, pai de duas jovens, Dadá e Dena, muito gentis e alegres, gente finíssima, mais velhas que nós.
A casa de uma das esquinas da R. Cônego Costa com a Rua Passos de Miranda era ocupada pela família de Lucila Pinto Barreiros. Viúva de um descendente do arquiteto italiano Luigi Lucarini (idealizador dos prédios mais bonitos de Maceió, dentre outros o Teatro Deodoro, o Tribunal de Contas e a Associação Comercial),  Lucila tinha um cartório de registros de nascimentos. Morava com uma irmã mais velha,  Aurora, os filhos Val e Ari e as lindas filhas, mais velhas que eu. Uma delas, Yara, já citada anteriormente, foi minha professora de catecismo. Tereza Barreiros Barbosa, outra das filhas, gentil amiga, é uma das minhas consultoras para assuntos do bairro. Mais adiante, em direção ao centro, morava uma viúva com três filhos mais velhos que nós, Elba, Hebel e Ari (“Cavalo”). O jornalista Jorge Assunção ocupava o imóvel seguinte. Todas essas casas são em frente ao hospital psiquiátrico Miguel Couto. Um pouco mais para frente ficavam duas casas iguais. Numa delas moravam uma viúva e dois filhos – amigos de infância – Gilson e Maurício; na outra, o casal Viveiros, cujo filho, Otávalo, hoje conhecido psicólogo, era também nosso amigo.
Pela casa dos Viveiros transitava um córrego que cruzava a rua e ia desembocar na lagoa, depois de percorrer o terreno da Miguel Couto. Evitava-se qualquer contato com essas águas, pois, dizia-se, vinha com os refugos orgânicos do Sanatório. O córrego era o marco divisório  com o terreno vizinho cujos moradores incluíam minha primeira professora, o marido e os filhos. Finalmente, vizinho à escolinha, ficava a casa do coronel Saraiva, sombrio criador de seriemas.
São poucas as lembranças da casa onde  nasci. Das raras - é possível estar enganado-, quero crer que uma babá, generosa e espontaneamente, oferecia os jovens e fartos seios desnudos para um trabalho de treinamento muscular oral do futuro neurocirurgião. Esta moça, “negra como as asas da graúna”, muitos anos mais tarde, seria minha cliente no Hospital Universitário. Tinha uma sequela de paralisia facial.   Nas entrevistas era falante, exibida, e terminava revelando aos meus alunos que havia sido minha babá. Aguçava a curiosidade da estudantada ao relatar que eu era muito danado... Convenientemente,  evitava entrar em  pormenores “mais cúpidos”.
Na minha visão de criança, a nova casa, vizinha ao Asilo,  era grande. Certamente mais espaçosa que a anterior. Sem dúvida, mais iluminada por janelas laterais que davam para o jardim. Tinha quatro quartos e uma varanda/jardim lateral delimitada pelo paredão  do Asilo. Havia um coqueiro central e um pé de jasmim colado ao muro da frente. Eu ficava admirado como de uma árvore tão ressequida poderia brotar aquela profusão de alvas flores tão cheirosas... Minha mãe cultivava roseiras, mas as inclementes saúvas faziam grande estrago. Um pequeno portão lateral mantinha a circulação entre a minha casa e o colégio. O imóvel era alugado ao Asilo e tinha sido moradia do Monsenhor Tobias, um educador muito influente. Capelão do colégio, era gago e um emérito contador de anedotas nem sempre piedosas.
O quintal, que eu também achava grande, terminava em outro muro do Asilo. Não tínhamos, pois, acesso à lagoa, característica da maioria das casas situadas à esquerda da rua. Meu pai criava galinhas e patos, consumidos pela família que aumentava a cada ano. A preocupação dessas criações não era à toa. Naqueles dias, as mulheres no puerpério faziam uma quarentena tendo o caldo de galinha como pièce de résistance. Alguns passarinhos gorjeavam  na nossa varanda. Eram poucos, mas exigiam cuidados. Certo dia, a empregada, Maria das Neves, descuidou-se e o sofreu de estimação nunca mais foi visto. Mesmo destino tiveram dois galos de campina. Desta vez, o pai, pessoalmente, resolveu abrir as gaiolas. Inquestionavelmente, passarinhos em cativeiro não eram o seu forte. Gatos também não faziam sua cabeça.
 Um vira-lata, Rex, teria seus momentos de glória. Criado entre nós desde a mais tenra idade, era um policial miscigenado, de abundante penugem negra e extremamente desobediente. Latia com estranhos, o que parecia ser uma característica aceitável. Nas inúmeras brigas entre os irmãos, Rex se agitava, latia, rosnava e, finalmente, tentava interferir na contenda. O problema era que Rex só mordia a mim. Um detalhe nos entristecia: Rex não era tão valente nas disputas com outros cães. Certa ocasião, cobrir-nos-ia  de particular vergonha: o cão do jornalista e político JA, com quem meu pai mantinha insalubre distanciamento, deu-lhe uma montada por trás, à moda dos cachorros. O sacana do cachorro pareceu conformar-se... Por tudo,  creio que Rex não nos orgulhava. Talvez essa seja uma das múltiplas razões que me fazem manter prudente distância de todo ser que rosna, late e às vezes morde.
Nossa avó paterna, Docinha, morava conosco. O marido, meu avô, Francisco Cavalcante de Mendonça (“Chico do Brejo”), que não cheguei a conhecer, falecera aos cinquenta anos. O irmão mais novo do meu pai, Breno, era uma espécie de nosso irmão mais velho. Habitávamos o mesmo quarto, nosso tio, o meu irmão Robson, mais velho um ano e meio, e eu. Nessa época, 1953-1954, já éramos sete filhos. Desses, cinco eram meninas. Meu tio estudava no Colégio Guido onde meu pai era professor de Química.
O Asilo Bom Conselho tinha sido fundamental na vida da minha mãe, Rosinha. Nascida em Atalaia, ficou órfã do pai, Francisco Aureliano de Medeiros Cabral (um espirituoso rábula), aos quatro anos. A apertada situação financeira da viúva a impeliria a internar duas filhas no Bom Conselho: Rosinha e Margarida. Minha mãe,  Rosinha, passaria nove anos no Colégio. Foi a oradora da turma. Provavelmente, pela primeira vez, sairia do Asilo Bom Conselho uma turma com o título de “professora rural”. Até então, as meninas estudavam português, matemática, história, geografia, francês... Aprendiam a costurar, a bordar, cozinhar, lavar chão e jardinagem. Ao saírem não tinham onde trabalhar a não ser como domésticas. A opção B seria tornarem-se amantes de algum nababo até que a velhice as transformassem em peças descartáveis. O paraninfo da turma da minha mãe foi o Dr. Ib Gatto Falcão.  Uma maneira que as alunas tiveram para demonstrar a gratidão pelo seu empenho em formalizar o curso do Asilo.
Minha mãe pouco exerceu o magistério. Apesar de sua natureza mansa, os anos de reclusão entre as freiras provocariam algo de inaptidão para lidar com alunos. Faltava-lhe uma certa dose de malícia. Breve foi sua passagem como professora na Usina Brasileiro. Contou-me que numa ocasião os alunos foram queixar-se de que um deles havia lhes “dado dedos”. Eram  gestos desconhecidos, praticados num universo do qual ela não tinha a exata dimensão do funcionamento. A aplicação como aluna do Asilo, contudo, não fora em vão. Aprovada em um concurso para a LBA, livrar-se-ia das pequenas pornografias infantis. Ao casar, a LBA seria página virada. Voltaria aos estudos trinta anos mais tarde, onde concluiria, na UFal, com brilhantismo, um curso de Letras.
O que eu queria dizer é que esse vínculo, essa gratidão em relação às freiras sacramentinas, suas mães, no frigir dos ovos, perduraria intocável na alma da minha genitora. Sua professora de piano, a esquálida  Magdalena Queiroz, por exemplo, foi a mesma que ensinou às minhas irmãs mais velhas. Quando uma freira adoecia, meu pai  era escalado para cuidar com consultas e  com amostras grátis. A influência foi de tal durabilidade que minha filha Lavínea e meu filho Carlos Eduardo terminariam o curso secundário sob a égide das sacramentinas do Colégio Sacramento. É claro que outros fatores pesaram. Na época, o Colégio Sacramento era um dos melhores da cidade.
O que teria levado meu pai a morar em Bebedouro é uma pergunta que amigos me fazem. Certamente não foi atraído pelo dinheiro das “elites”. O bairro estava em franca decadência. Nascido em Pilar, de família ligada aos engenhos de açúcar,  o menino José Lopes passaria cinco anos interno num colégio religioso: o Diocesano. Ao vir de Pilar para a capital, morou inicialmente com um tio, dentista e dono de uma chapelaria no centro da cidade. Tinha onze anos. Matriculado no Colégio Diocesano, poucos meses na casa do parente produziram ojeriza de tal intensidade que decidiu pegar a balsa e fugir de voltar ao engenho paterno. Não se afinara com os tios. Eles não mais com o sobrinho. Estava decidido: não queria mais estudar. Diante da irredutibilidade em voltar à casa do tio, o caminho era o internato.
Concluído o curso secundário, em 1937, foi para Recife, onde faria dois anos de complementar e o vestibular. O foco era a Medicina. Antes de pegar o trem, o pai o advertira: “Cuidado com o chapéu novo. Quando botar a cabeça fora da janela, segure com as mãos!” Após doze horas de viagem as expectativas de uma nova realidade fariam o adolescente Juquinha, como era chamado, esquecer as recomendações. Aos anúncios da chegada a Recife dentro de poucos minutos, a curiosidade o impeliria a vislumbrar a nova cidade. Adeus, chapéu. Matriculado no Carneiro Leão, morando numa pensão para estudantes, economizar qualquer tostão para voltar para casa com um chapéu, era uma questão de honra. Ao regressar em junho, sequer ousou arriscar colocar o apetrecho na cabeça. O pai, meio desconfiado, enquanto batia suposto pó, comentaria: “Está novinho. Não usou?” Juquinha teria replicado: “É que em Recife o pessoal está abandonando esse costume”.
Foi aprovado, de primeira, no concorrido vestibular para Medicina. Sabia que não haveria uma segunda chance. Em Recife, alguns fatos foram marcantes para meu pai: 1) Convocação para servir o Exército – chegaria ao posto de cabo padioleiro – no auge da conflagração; 2) A venda do engenho, uma ferida narcísica que nunca chegou a cicatrizar completamente; 3) A doença do pai, que ele adorava, culminando com sua morte; 4) O casamento com minha mãe e o nascimento da primeira filha, Rosinete.
 Meu pai estava cursando o quarto ano de medicina e gozava férias, aqui em Maceió, quando o pai dele, meu avô, passou mal. Ele diagnosticou que seu pai estava tendo um “Edema Agudo de Pulmão”. Em casa, sem qualquer recurso, tentou uma “medida heroica”: a sangria. Cortou uma das veias do braço do pai e salvou-lhe a vida. Meses depois, novo Edema Agudo se instalaria. Não teve a mesma sorte. A morte do pai ensejaria sua baixa no Exército. O fantasma de ir para o front na Itália estava afugentado.
Finalmente formado, a decisão de morar em Bebedouro teria sido influenciada pelo fato da sogra, minha avó, casada em segundas núpcias com um fiscal de renda, morar no bairro. Além disso, não havia médicos na região. A circunstância do meu pai ter passado boa parte do curso como interno na Maternidade de Olinda foi fundamental. Mesmo levando-se em conta que os médicos eram mais bem preparados, fixar-se numa cidade de interior (Bebedouro era quase isso) sem prática em obstetrícia, aterrorizava o recém-formado.
E foi justamente isso que aconteceu. Clínico Geral, médico da Casa de Saúde Miguel Couto, chefe do Serviço de Verificação de Óbitos, meu pai era convocado com certa frequência para fazer partos em residências. Geralmente para os casos mais complicados que as parteiras não conseguiam resolver. Alguns eram remunerados. A imensa maioria, Deus os pagava. De qualquer forma, foi uma vida muito rica do ponto de vista humanitário. De manhã cedo, meu pai tinha o hábito de abrir a janela e dar uma olhada na rua. Aquela salutar mania de deixar o ar da manhã entrar na casa... Não há como afirmar que ele estranhava a fila que se formava. Eram pessoas de todas as idades, sobretudo mães com crianças nos braços. Minha mãe contava que ele a chamava e dizia: ”Rosinha, veja isso! Que quantidade de gente é essa? O que essas pessoas estão fazendo na minha porta a essa hora?”. Todos sabiam o que elas queriam. Então, o meu pai, mais uma vez, “surpreendia”. Depois de tomar um rápido café com dois ovos à la coque e de fumar um Continental sem filtro, sentava no bureau que ficava no corredor da casa, estetoscópio ao pescoço, e ia atendendo. Gavetas de amostras abertas, explicava como fazer e recomendava: “Se não melhorar, volte amanhã”. Ninguém saía de mãos vazias. O melhor da festa: tudo de graça.
Estava, há algumas linhas, em 1953-1954. Chegara, enfim, a idade de aprender a ler. A alguns metros da nossa casa, uma distinta senhora mantinha uma escolinha.  Entramos os três irmãos mais velhos, Rosinete, o Robson e eu. A professora  dava aulas em casa. Havia um oratório bonito na sala onde funcionava o curso. Uma peça de madeira anexa era o genuflexório. Creio que nos momentos de enlevo espiritual nossa mestra prosternava-se compungida. Durante as aulas, a severa educadora era partidária de técnicas pedagógicas, digamos, mais ortodoxas, premedievais, se vocês me entendem.  Era criativa. O genuflexório que testemunhava seus emocionados encontros com Nossa Senhora, recebia uma cobertura de feijão ou milho, onde os alunos (crianças de 5-8 anos) iam pagar seus pecados, expiar suas culpas, ajoelhados sobre o milho ou o feijão. Não me lembro se alguma vez fui aquinhoado. Meu irmão Robson, com certeza. Um dos mimos que recebi da minha primeira professora foi ser chamado de “Olho de Pitomba Lambida”. Tenho zero de trauma disso.
Quem não gostou de saber dessas coisas foi o nosso pai. Retirou-nos da escolinha. Não fora esse clima de terror, até gostava. Jogava bola nos intervalos. Era o goleiro. Com um pouco mais de cinco anos faria uma defesa tão espetacular que fui chamado de “Nonda”, referência ao grande goleiro Epaminondas, conforme aludi anteriormente. “Nonda” duraria mais que o “Olho de Pitomba Lambida”.
Depois que saímos da escolinha, passaríamos a estudar em casa. Minha mãe e minha avó, Docinha, tiveram a incumbência de nos preparar em leituras, cópias, ditados e nas operações aritméticas. Não demos vexames. Em 1954, aos 6 anos, meu pai nos matriculou no Diocesano. Lembro dele na sala da diretoria conversando com o Irmão Nestor, diretor do colégio. Queria um desconto nas mensalidades. Recordo de  dois argumentos. Num deles, papai dizia que era ex-aluno interno do colégio. O outro argumento referia-se ao fato de estar matriculando dois alunos. Passaria pela minha cabeça, em caso de irredutibilidade do diretor em conceder a bonificação, se meu pai iria desistir de nos matricular. Não me recordo se o desconto foi dado. Provavelmente, sim.
 O orçamento doméstico era apertado. Com o devido respeito, meu pai era um reprodutor incansável. Um dos objetivos da abundante prole (estou presumindo) seria equilibrar a quantidade de filhos homens com as filhas mulheres. Por insondáveis caprichos da natureza, a cada novo parto espirrava uma menina. Foram onze filhos, três do gênero masculino. Não possuíamos automóvel. Somente em finais de 1958, treze anos após a formatura, foi que meu pai adquiriu um Jeep, cuja placa era 53-57. Ainda hoje encontro pessoas que fazem referência a esse veículo. O que chamava a atenção era a quantidade de crianças e adolescentes. Minha irmã mais velha, Rosinete, ocupava o banco da frente. Eu e o Robson ficávamos nas “latas” laterais e quatro irmãs mais novas (Rosete, Rosilda, Rosélia e Rosaline) ficavam apertadas no banco traseiro. A coisa ficaria mais suave dois anos depois, com a aquisição de uma Rural. O velho estava prosperando.
Fomos crianças de poucos brinquedos. Aos dez anos ganhamos uma bicicleta Gulliver. Não tinha o charme da Monark, mas quebrava o galho. Numa das primeiras voltas, apostávamos corrida pelas ruas quando uma flanela amarrada no selim da bicicleta do Robson (para não manchar a roupa) escorregou e enganchou entre a roda e o “garfo” traseiro. A peça entortou com tal intensidade que os pedais não faziam mais o giro completo. Assustadíssimos voltamos para casa. Era um dia de domingo. Meu pai, que ensaiava tentar aprender a andar de bicicleta, pegou justamente a do Robson. Na primeira pedalada em torno do coqueiro descobriu a deformidade. Foi desagradável. Era uma situação que demandava levar o brinquedo de volta. Embora não houvesse “garantia” para esse tipo de encrenca, pareceu mais lógico entregar na loja para o conserto ser providenciado. Não possuíamos transporte próprio... Uma chateação. Para aumentar os dissabores, o meu pneu traseiro baixava de palmo em palmo. Acho até que ganhei uma certa musculatura enchendo até a exaustão aquele miserável equipamento.
A cada dois anos, nas férias, doutor Zé Lopes chegava em casa com um objeto enrolado debaixo do braço. A forma era arredondada e lembrava uma bola. Para desgosto da torcida, às vezes era um queijo do reino. Algumas meninas do bairro iam à nossa casa para brincar de “queimado”, “rouba-bandeira”, “esconder-peia” e outros que tais. A coisa mais rara do mundo era um amigo ser convidado para minha casa.
Na verdade, éramos instigados a ler. Pairava uma certa cultura familiar alimentando o conceito de que se não estudássemos durante as férias iríamos esquecer tudo que havíamos aprendido durante as aulas. Embora não tivéssemos  uma formidável biblioteca, líamos o que estava na estante. Recordo bem da minha irmã Rosete, mais nova do que eu um ano, mergulhada sob uma das camas, lendo Os Miseráveis, que nós, mais velhos, já havíamos traçado.
Em 1955, recebemos uma inesperada visita. Tínhamos um tio que havia saído para São Paulo, dez anos antes. Era portador de hanseníase, uma temida doença, estigmatizante, amaldiçoada até nas sagradas escrituras. O tio “paulista”, Francisco Lopes Cabral, era o irmão mais novo da minha mãe. A doença, tudo leva a crer, fora contraída de uma ama de leite com quem mantivera longa e próxima convivência, na infância. Com demorado período de incubação, a moléstia manifestar-se-ia na adolescência. Um drama. Em Maceió, havia um leprosário com bons médicos, mas a medicação parecia inócua. Com a ajuda de parentes, o simpaticíssimo Cabral partiu, clandestinamente, para tratar-se num leprosário em São Carlos, SP. Não se deu mal. Casou com uma jovem também valetudinária para a mesma doença.
Ao receber alta, seria aprovado num concurso para escriturário do IAPI, aposentando-se algum tempo depois. Meu tio, no IAPI, deu sorte e azar. Ao fazer uma radiografia de rotina, um dos médicos observou lesões que sugeriam doença crônica. Esse médico era ninguém menos que o Prof. Ricardo Veronesi, autor de livros didáticos e um dos maiores especialistas brasileiros em doenças infecciosas. Veronesi era da USP e funcionário do IAPI. Daí para a aposentadoria seria um pulo.
 Anteriormente, tio Francisco fora funcionário das Indústrias Pignatari, que tinham “Baby” Pignatari como sua estrela mais reluzente. Baby era um playboy, irremediável conquistador. Sua conquista mais deslumbrante, seria a ex-esposa do Xá da Pérsia, Soraya. Meu tio sentia imenso orgulho do patrão justamente por essas coisas. Era como se fosse ele, Francisco, quem sentia os irresistíveis aromas inebriantes emanados dos corpos em êxtase das divas que Baby levava para a cama, e o ajudavam a dilapidar sua imensa fortuna. Pignatari era a versão paulista do  estroina Guinle, do Rio de Janeiro.
Nem todos tinham essa transferência positiva com o industrial. Nosso primo, George Cabral, era um deles. Comunista juramentado, casado com Julieta, George foi para São Paulo, corrido de Alagoas. Inicialmente escondido na própria casa do sobrinho, Francisquinho, conseguiria empregar-se na Indústria dos Pignatari graças ao conceito do parente. George era muito visado. No dia em que se descobriu sua folha corrida, houve uma apoteose digna de um grande líder. Ao despedir-se,  seria demoradamente ovacionado. Faria um discurso inflamado para uma imensa plateia de funcionários reunidos no refeitório da empresa. Tio Francisquinho descrevia-nos o orgulho que sentiu daquele sobrinho impetuoso e sonhador. Seu emprego também esteve por um fio...
George e Julieta foram morar na Tchecoslováquia. Eram locutores da emissora oficial do PC.  Faziam um programa em português, onde relatavam as delícias dos paraísos comunistas, enquanto denunciavam o imperialismo americano, as atrocidades do regime militar no Brasil, a falta de liberdades, as torturas... Ao regressar, muitos anos depois, esteve em Maceió nos visitando. Estava doente. Bom de uísque, tinha angina pectoris de palmo em palmo. A cada crise, batia com a mão fechada, e com inusual força, no peito e dizia: “este porra desse coração um dia ainda vai me foder”. Parecia adivinhar. Estava separado da mulher. Saiu com meu irmão mais novo, José Lopes de Mendonça Filho, para circular e conhecer alguma coisa da vida noturna de Maceió. Seu entusiasmo pelo comunismo havia murchado. Se não me engano, voltou a trabalhar em jornais. Um filho era editor de cultura de uma sessão do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro...
Francisco Cabral, que era meu padrinho de crisma, era também um cara irrequieto. Um mascate por excelência. Vendia joias, perfumes Avon, tecidos, máquinas fotográficas, o diabo. Dizia ele que só a mulher e o menino estavam livres das negociações. Até a sogra, “dependendo da oferta” era  disponível. Viveria transitório apogeu financeiro quando foi sócio de uma empresa de ônibus, o Expresso Pernambucano. Parecia haver decolado de vez. O azar, no entanto, bateu-lhe impiedosamente à porta quando, em uma semana de infelicidades, dois de seus ônibus capotaram na inóspita “Rio-Bahia”, ainda em construção. Venderia os outros veículos para pagar as dívidas e voltaria à escala zero, mais uma vez.
Mas, naquele 1955, meu tio estava com a carga toda. Tinha trinta anos. Dera a volta por cima. Montava uma “baratinha” Mercedes, conversível, carmim e linda, carregada de brinquedos. Não sabia muito bem a idade dos sobrinhos. Era típico do seu Cabral. Ele ainda não tinha filhos ou, talvez, já houvesse adotado uma criança. Havia a suspeita (equivocada) de que a doença, ou os medicamentos –as demolidoras sulfonas – haviam-no esterilizado. O fato é que os velocípedes já não faziam a nossa cabeça, até por serem muito pequenos. Serviria para as irmãs mais novas. Traria também bonecas para as meninas e presentes para os adultos. O cara era casa cheia, bem humorado, piadista e...  namorador. Seria, por esse prisma, uma versão degradada do ex-patrão Baby Pignatari.
Aposentado do IAPI, tio Francisquinho, como nós o chamávamos, retornaria inúmeras vezes. Pressentiu que havia possibilidades de bons negócios. Era sempre uma festa. Adorava praia com chuva. Num desses passeios à Pajuçara, a Kombi, estacionada em frente ao Iate Clube, seria arrombada. Um relógio Patek Philippe foi junto de uma bermuda. Vimos o tio um pouco chateado. Duraria pouco. Foi irônico: “O José (meu pai) vive dizendo que em Maceió não tem ladrões...” Logo ele se refez e nos disse. “Nasci nu e estou vestido. Um dia eu compro outro”.
Papai adorava viajar com ele. Eram duas personalidades díspares que se completavam. Numa das viagens, estávamos no Hotel Guararapes, no Recife. A televisão - uma novidade - distrairia meus pais além do esperado, no saguão do hotel. Finalmente, vencidos pelo sono, recolheram-se. Vivi uma noite memorável. Quase sorrateiramente (meu tio preocupava-se em não aborrecer o cunhado “José”), nos mandamos para além de Boa Viagem, onde havia uma casa muito animada chamada Samburá.  Liso, seu Cabral financiaria um affaire com uma garota que lembrava a Rita Pavone, uma jovem cantora italiana que estava em evidência. No calor da paixão, um animado conjunto cantava a plenos pulmões a famosíssima “La Bamba”.
Por insondável desígnio, seu Cabral morreria em nossa casa, em 1971, aos 45 anos. Chegou de madrugada, de São Paulo, trazendo o filho adotivo surtado. Queria que ele se tratasse aqui, conosco. Ainda durante a viagem, numa Toyota Furgão, começaria a passar mal. O rapazinho estava impaciente, delirante. A  pressão arterial do tio batia na estratosfera. Era um descuidado crônico. Havia também um aperto no peito e um grande desconforto na região epigástrica. Dormira com o filho num quarto reservado para os dois. Ele e minha mãe se falaram bem cedo. Incomodado pela dor mal pregara os olhos. Minha mãe garantiu que ninguém iria fazer barulho, que ele descansasse da viagem. Deitou-se para nunca mais acordar.
Volto a 1958, ano em que ocorreu uma extraordinária guinada na vida profissional do meu pai. É que surgiu a oportunidade de uma especialização em Psiquiatria. Conforme assinalei, ao morar em Bebedouro, ele seria contratado para trabalhar na Casa de Saúde Miguel Couto. Era um hospital psiquiátrico que ficava a duzentos metros de nossa casa. O frenocômio, cuja denominação primitiva era Santa Juliana (padroeira dos loucos) pertencera ao Dr. Pedro Bernardes, que se transferira para Minas Gerais. Inicialmente, fora arrendada ao psiquiatra Mário Morceff, um migrante mineiro meio descapitalizado -mais velho que papai - que terminou adquirindo o imóvel. Consta ter sido o seu sogro, Dr. Chaves, com seus infindáveis coqueirais nos Morros de Camaragibe, o poderoso avalista da negociação.
O fato é que aqueles anos de trabalho e convivência com doentes mentais tinham lhe dado uma respeitável vivência na área da Psiquiatria. O curso patrocinado pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais, certamente, encaixava-se como uma luva aos anseios paternos. Havia alguns obstáculos. Naquele 1958 éramos nove filhos. Minha avó, Docinha, falecera dois anos antes e meu tio, Breno, assumira um emprego no Banco do Nordeste, em Mata Grande. Uma solução encontrada para ajudar minha mãe a administrar a “rebelde ninhada” foi apelar para Vovó Moreninha, que se transferiu com malas, bagagens e o marido, o “Velho Góes”, a essa altura fiscal de rendas aposentado. Foram quase seis meses de ausência. Do Rio, meu pai se esforçava para manter a casa em ordem através de longas cartas. Escrevia particularmente para cada filho e nós escrevíamos pelo menos duas cartas por mês. Para minha mãe, eram longas e apaixonadas que ela as relia solitariamente e não permitia que nenhum filho, mesmo os mais curiosos, as acessassem. Meu pai tinha um bom texto e, a despeito da carranca e de proverbial mau humor, sabia ser romântico. Eles se amavam muito.
Um tio paterno, Ruy Mendonça, que também, quando solteiro e mais jovem, tinha morado  conosco, ligadíssimo ao meu pai, também fazia uma ronda periódica para ver como as coisas estavam. As preocupações maiores eram justamente em relação aos três filhos mais velhos, máxime Robson e eu. Nos finais de semana, nosso tio nos levava para sua casa, no Farol, “para dar uma aliviada em casa”. Ruy Mendonça tinha excentricidades, as gastronômicas eram uma delas. Depois de almoçarmos uma montanha de comida, ele nos convidada ao pós-pasto. Geralmente bananas. Ele próprio, um glutão sacramentado, impelia-nos a comer algumas bananas anãs, à guisa de sobremesa. Dentre suas preocupações, constava a com nosso pai,  que ao retornar, não nos encontrasse magros, abatidos, sinalizando, talvez, que havíamos passado necessidades na sua ausência. Decididamente, um excêntrico, aquele nosso tio.
Apesar de toda vigilância, durante os meses de ausência paterna, tivemos mais folga para “maloqueirarmos” pelo bairro. Começamos a nos entrosar mais nas peladas, nas andanças ao banho do Né Fragoso, nos jogos de ximbra, peões, e até em alguns jogos de azar apostando castanhas (compradas). Luiz Rijo,  amigo do meu tio Manuel Góes tinha uma roleta viciada e nos “roubava” os trocados que conseguíamos adquirir, nem sempre por meios lícitos, em casa. Nesse aspecto, nossa mãe não era tão diligente, posto deixar algumas moedas dando sopa sobre os armários.
Aos sábados, Bebedouro tinha uma feira muito animada. Com 10-11 anos, minha mãe me encarregava de comprar farinha e mais algumas pequenas coisas. O segredo consistia em ir no final da feira, quando os comerciantes baixavam os preços. O que eu conseguia de abatimento ia para a “caixinha” pessoal...
Na infância e adolescência, nunca tivemos dinheiro fácil. Na época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson e eu recebíamos, cada um, cinco cruzeiros. Desses, sobrava apenas um cruzeiro. Não era  suficiente para o lanche. Levávamos no bolso um pão, cujo recheio variava da manteiga com açúcar ao doce batido de banana. Raramente queijo. Não nego que ficava me lambendo quando via as filas, na hora do recreio, para comprar sanduiche na cantina dirigida pelo Irmão Silvino, tendo como balconista um garoto um pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”. (Esse rapaz, era uma das “crias” do colégio. Estudava à noite, na Escola Padre Champagnat, educandário gratuito que os maristas mantinham no próprio colégio. Anos mais tarde, “Cabeleira” seria o dono da cantina no novo Colégio Marista, da Av. Antonio Brandão, no Farol).
Não raramente, gastávamos o dinheiro do transporte para comprar um daqueles sanduiches de mortadela, regado a uma Crush, que ao paladar dos meninos que éramos, tinham o sabor do néctar e da ambrosia. Estarmos lisos em pleno meio-dia na Praça dos Martírios, esperando uma carona, não era um grande drama. Era difícil não passar alguém com destino a Bebedouro. Aguardávamos no início da General Hermes. Nossas esperanças de não voltarmos a pé para casa, concentravam-se, sobretudo, nos caminhões  vazios, dirigidos por conhecidos do bairro. Na curva, para entrarem na General Hermes, reduziam consideravelmente a velocidade, permitindo que galgássemos a carroceria. Ficamos craques: jogávamos nossas bolsas, segurávamos na grade e apoiávamo-nos nos pneus (em movimento lento). Logo estávamos sorridentes, vitoriosos, na carroceria exclamando: “Chame”. 
Certa feita, coincidiu de minha mãe presenciar essas manobras. Ficou estarrecida com o que viu, o perigo que nos espreitava. Talvez Deus naquela época nos protegesse mais.
Havia uma certa decepção materna quando,  crianças ainda, regressávamos com o pão amassado e intacto no bolso, que ela embalara com carinho. Por que não confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas almas suburbanas por não termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar aquele pão crioulo maltratado, desenxabido, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos humilhava um pouco. Talvez por isso, compensássemos nossa quase “tragédia financeira” sendo ótimos alunos.
 Com efeito, durante os primeiros anos de colégio não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a estudar à tarde. A boa memória nunca nos abandonou.  À noite, sabíamos que iríamos enfrentar o doutor Zé Lopes, nem sempre no seu melhor fair play. Com ele não havia mais ou menos. Ou as lições estavam na ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos muito cedo) só depois de repetir “timtim por timtim, até o fim”. Ainda havia aquelas poesias quilométricas que nos cabiam decorar para recitá-las nas sessões do grêmio...
Volto agora ao primeiro dia no Colégio Diocesano. Depois da etapa do chororô paterno, encaminhamo-nos eu, meu irmão Robson e meu pai até a sala do Irmão Pedro, um “velhinho” que era o mestre de classe do segundo ano primário. Os conhecimentos de casa foram testados e aprovados. O casulo estava se abrindo. Não lembro se já tinha usado calça comprida. O sapato era especial, feito por um sapateiro, sr. ML, um cidadão prenhe de caretas esquisitas,  que frequentava o consultório do velho. No bico e no salto eram colocadas  chapas de metal. Havia a crença de que o sapato duraria mais... Um entrevero marcaria o primeiro dia de aula. Dois acanhados matutinhos num colégio grande causavam um certo impacto. Talvez por isso, o pai resolveu nos apanhar dentro do colégio, na sala de aula. Seguimos então para a porta principal. Meu pai na frente, o Robson atrás. No meio, eu. De repente, ao atravessarmos o campo de futebol (com os tradicionais oitizeiros) um menino me calçou. Um provocador. Acho que foi a última vez que ele cometeu essa gracinha. O Robson agarrou o camarada e em dois segundos ele estava no chão, com o Robson armando-se para aplicar uns corretivos. Toda aquela malandragem precocemente apreendida da molecoragem bebedourense eclodiria. Não fora a interferência de papai, que ao virar-se, deparar-se-ia com aquela cena tragicômica, o nasal do menino iria ser detonado.
Em agosto de 1954, fomos para o colégio e demos com os burros n´água. O presidente Getúlio Vargas havia se suicidado com um tiro no peito, na véspera. Coincidentemente – ou até por causa disso?- um senhor, Sr. Freire, que morava numa mansarda vizinha à Lilota, foi encontrado morto no seu sítio. Meu pai foi chamado. Ele era chefe do Serviço de Verificação de Óbitos. Algo não o convenceu de que a causa mortis tinha sido por um “colapso” ou coisa semelhante. Convidaria o colega e compadre Mário Morceff (segundo papai, um homem curioso), e ambos foram dar uma batida no sítio do falecido. Não chegaram a se surpreender quando encontraram uma embalagem aberta de um poderoso formicida...
A Copa do Mundo de 1954 teve episódio que me marcou. As dores da derrota para o Uruguai, em 1950, no Maracanã, eram uma ferida narcísica do tamanho do Brasil. (Em 1950, tinha dois anos. Mesmo assim, de tantou ouvir falar consegui decorar a escalação do time: Barbosa, Augusto e Juvenal; Eli, Danilo e Bigode; Jair, Zizinho, Ademir, Friaça e Chico.)  Em 1954, o Brasil voltaria a disputar uma Copa do Mundo, desta vez na Suíça. Era um bom time. Castilho, Pinheiro, Didi, Zizinho, Índio... Zezé Moreira era um aplicado técnico adepto da valorização da defesa. Era um conceito que predominava. O paroxismo desse esquema tático estava materializado no célebre “ferrolho suíço”, rigidamente empregado pelos donos da casa. Por infelicidade, tivemos que enfrentar o temido “escrete húngaro” de Puskas & Cia, a equipe mais forte do certame.
Lembro-me do meu pai, solitário, ouvido colado ao rádio Philips, no domingo que decretaria a desclassificação do Brasil. Enquanto tentava ouvir, três ou quatro cervejas lhe faziam companhia. De quando em vez ouvíamos um palavrão de descortesia à mãe do árbitro. O placar final seria de 4 x 2 a nosso desfavor. Passada a euforia, meu pai derrubaria um medonho “bezerro” no quintal.
Nosso pai bebia pouco. Não tinha sequer o hábito de religiosa cervejinha aos sábados, a não ser quando acompanhava os colegas no Bar Colombo. Nessa época, trabalhava-se aos sábados, em meio expediente. Acho que o presidente Juscelino encamparia a “semana inglesa”, de cinco dias. O fato é que havia um grande amigo, Cláudio Sarmento, médico e compadre de papai, que vinha de Porto Calvo doido para tomar umas. Era um dos mais assíduos companheiros do velho. Até certo ponto.
 Dr. Cláudio era filho de um usineiro, Demócrito Sarmento. Começara os estudos de Medicina no Recife, na mesma turma do meu  pai, mas, abonado, conseguiu transferência para Salvador. Viver na Bahia “de Todos os Santos e de todos os pecados” era seu sonho. Era uma excelente companhia, sobretudo porque não falava. Numa época em que os restaurantes e bares “familiares” fechavam cedo, não se fazia de rogado. Continuava a cervejada no meretrício. Caladão, parecia ouvir e refletir sobre o que se lhe diziam. O folclore em torno do seu nome geraria histórias curiosas. Dizia-se, por exemplo, que ele, numa farra,  só abria a boca em momentos muito especiais. Um desses momentos era quando alguém da mesa perguntava: ”Vamos pedir outra cerveja, doutor Cláudio?” Ao que ele respondia: “É bom!”
Longe do perfil de um puritano, meu pai cumpria rígidos horários. Não aguentava beber muito. Contudo, pelo menos duas vezes ao ano convocava os amigos Cláudio Sarmento, Ivon Sotero, Walter Souza e seus irmãos Francisco, Ruy e Breno para uma buchada. Embora houvesse  outras opções (minha mãe cozinhava bem), le plat de résistance era mesmo a buchada. Os carneiros eram presentes dos pacientes. Chegavam magros e eram conduzidos ao sítio da Casa de Saúde Miguel Couto, onde meu pai era médico, para uma engorda.  
Havia um ritual consagrado. O meu tio Ruy chegava em nossa casa bem cedo. O carneiro já estava lá, seguro pelo Zé Nunes, funcionário da Miguel Couto e muito ligado ao meu pai. O animal levava umas duas pauladas na cabeça e ficava meio bambo. Às vezes convulsionava. A seguir, era pendurado, de cabeça para baixo, numa linha do telhado da lavanderia que ficava fora do corpo da casa. Depois disso, era sangrar, retirar o couro e esquartejar o bicho. Cuidados especiais para não lesionar as tripas. A minha mãe se encarregava da buchada e do assado. Dias adoráveis. Havia um “Sangue de Boi”, outros vinhos melhores, muita cerveja e comida até umas horas.
 Costumeiramente, nossos almoços festivos terminavam em discursos (até eu, um fedelho, era convocado) e um show particular, à capela, propiciado pelo cantor aposentado Walter Souza. Houve uma época em que o jornalista Marcus Vinicius, o Ícaro, da coluna social da Gazeta de Alagoas, comparecia. Aí,  era desmantelo. O Ícaro tinha um vozeirão e um repertório vastíssimo. De vez em quando, discretamente, tomava um gole de aguardente e mordia, à guisa de tira-gosto, indefectível cenoura crua.
 Acho que minha paixão pela música nasceu naquelas tardes fagueiras ouvindo velhas canções. Nervos de Aço,  Nancy, Pajuçara, “onde o mar beija as areias com mais alma e mais amor”, eram peças obrigatórias, numa homenagem ao dono da casa. Ataulfo Alves, Ari Barroso, Pixinguinha, Noel, Pires Vermelho, Orestes Barbosa/Sílvio Caldas... Seu Walter era alucinado pelo Orlando Silva, até o imitava um pouco (que eles não me ouçam).
Às vezes a cerveja acabava. Tínhamos uma geladeira Clímax média. Seria motivo de excitação familiar quando ela foi instalada. Antes dela, nossa água potável provinha de um filtro. Nunca tivemos quartinhas, diferentemente da casa da avó Moreninha. Acho que o velho achava a quartinha menos higiênica. Bem, mas quando faltava cerveja, meu pai me dava o dinheiro, eu levava os cascos vazios numa cesta  de feira e ia ao Ponto Final, cem metros da nossa casa, do mesmo lado. Descia a calçada alta pela escada oposta à nossa, dava mais umas passadas e entrava no bar. Território ainda inexplorado, proibido mesmo, enquanto esperava no balcão, olhava de soslaio e sentia que era alvo de curiosidade. Mais de uma vez ouviria alguém comentar, “hoje o doutor tá na farra”. Era compreensível. Jamais vi meu pai numa mesinha de bar em Bebedouro. As expressas recomendações paternas eram no sentido das cervejas estarem geladas, contidas em casco escuro.  É que havia outra opção, o casco verde. Às vezes, retornava repetidamente, com igual missão.
 Tio Francisquinho Mendonça, um dos irmãos do meu pai, era médico. Quando o meu avô paterno faleceu, minha avó e os filhos reuniram-se em uma só residência. Tio Francisquinho era um homem seriíssimo. Embora “na dele”, circunspecto, sempre nos tratou divinamente.  Casado com Gasparina Calheiros Wanderley, foi morar na Rua 16 de Setembro, bem perto do cinema Ideal. A velha falta de dinheiro nos perseguiu a vida inteira. Havia um agitado comércio de revistas em quadrinho nas cercanias do cinema. Entre os irmãos, o empreendedor era o Robson. Mas a gente precisava de um certo capital inicial. Tínhamos as passagens (ainda circulava bonde), os ingressos e algum refugo de revistas. Muitas vezes, quem garantiu o capital de giro foi o nosso  tio Francisquinho. Naquela época, o casal ainda não tinha filhos.
 A mais velha, Soraya, hoje médica e casada com o procurador Arecippo, nasceria cerca de 10 anos após o casamento. Depois viriam Serginho e Simone. Sérgio W. de Mendonça é juiz federal e Simone advogada. Tio Francisquinho  era muito legal, atencioso, mas duro na queda. Vivia também seus apertos financeiros. Enquanto estudava Medicina era desenhista da CER (Comissão de Estradas de Rodagem). Olhávamos pela brecha da fechadura e o víamos sentado numa cadeira de balanço, no fundo do corredor, com um livro no colo. Entrávamos, pedíamos a bênção, bebíamos água e depois dávamos a “facada”. Nem sempre funcionava. O tio rezava na mesma cartilha do doutor Zé Lopes.
Acho que foi nesse mesmo período que Bebedouro passaria por uma sacudida com a chegada do Padre Fernando Iório Rodrigues, substituindo o velho pároco, padre Belarmino. Iório daria uma nova vida ao bairro. Sua influência foi além dos umbrais da Matriz de Santo Antonio. As homilias tinham a grife do intelectual diferenciado. Renovaria a participação dos fiéis nas associações, Congregação Mariana, Filhas de Maria, Cruzada Eucarística... Um alto-falante reverberaria além da Praça. Procissões ocupavam as ruas nas comemorações sacras. Nessas alegorias destacava-se a figura  de Domingão, um agigantado negro enfatiotado, fita azul ao pescoço, símbolo da piedosa Congregação Mariana. Os inelutáveis trejeitos do sacristão Argemiro integravam o espetáculo. Padre Fernando não parava de puxar os hinos com abaritonada voz. Era também costume ouvirem-se, a partir da Matriz, hinos de exaltação à pátria e ao Estado nas efemérides oficiais. Deve-se ao Padre Iório, depois consagrado bispo de Palmeira dos Índios, a criação do Ginásio Santo Antonio. Modesto, mas de basilar importância.
Anualmente, durante alguns anos, o Irmão Venceslau (supervisor da Ordem Marista) percorria os colégios maristas em busca de vocações. Nas salas de aula, havia a distribuição de um papel em branco onde os alunos respondiam o que desejam ser. Havia a opção “indeciso”, justamente a que assinalei. Tinha dez anos e estava concluindo o primário. Convocado pelo Ir. Venceslau, expliquei que o “indeciso” queria expressar a dúvida entre ser médico ou irmão marista. No ano seguinte, novamente Venceslau estava em Maceió. Repeti a resposta. Acho que enfatizei maior tendência para a religiosidade. À noite, o irmão marista foi na minha casa falar sobre o meu desejo. O cara pegou na palavra. Minha mãe ficou feliz. Surpreso e, talvez, meio decepcionado comigo, o pai me disse que “desconhecia aquele meu desejo de vestir saia”, cruel referência à batina que os maristas ainda usavam.
 Mesmo assim, em janeiro de 1960, antes de completar doze anos, depois de rápido beijo no rosto, estava num trem a caminho do Recife, especificamente do Juvenato N. Senhora da Conceição, em Apipucos. Duraram exatos 30 dias minha vocação religiosa. No meu regresso, meu pai expressaria menos satisfação do que eu esperava. Segundo ele, efetivamente não queria que eu fosse “padre”, no entrementes, levando em conta as despesas com a viagem e com o modesto enxoval, eu deveria ter aproveitado, no Seminário, aquela oportunidade de crescimento intelectual, em vez da “maloqueiragem” de Bebedouro, “que não levava a lugar nenhum”.
Independentemente das opiniões paternas, com Fernando Iório os Natais reviveriam um pouco o lendário Bonifácio Silveira. Pastoris animadíssimos marcariam aqueles memoráveis dezembros. Efervescente adolescente, investiria parte das minhas parcas economias convocando “em cena” uma simpática primeira pastora do azul, para fixar na blusa que recobria suas incipientes protuberâncias    notas de um cruzeiro. Os hormônios já começavam a impor  transformações no corpo e na alma  do ex-seminarista. Despedia-se o tempo da inocência.
Durante muitos anos, o transporte coletivo de Bebedouro era uma tragédia. Enquanto o Farol e a Pajuçara eram servidos por uma frota de primeira qualidade, nosso bairro era castigado por refugos. Na época em que não havia calçamento, em diversas ocasiões, tivemos que mudar de ônibus porque o que nós viajávamos atolava no lamaçal por elementar falta de potência. Muitos coletivos eram munidos de um pedaço de madeira preso na alavanca da marcha. A função era apoiar no tablado para evitar que “saltasse de marcha”. Um dos proprietários (havia vários), por conta dos sucessivos enguiços no seu veículo, ganhara o sugestivo apelido de “Arroela”.
Aos poucos, esse item foi equacionado. Os irmãos Calheiros (Ernande, Pedro, Bonifácio), durante um certo período, dominaram o segmento oferecendo ônibus mais bem cuidados, com  mais segurança e conforto. Também coincidiu com a conclusão do calçamento, velha aspiração, que teve no lendário coronel Lucena Maranhão, eleito prefeito de Maceió, um grande realizador. Tenho a impressão de que Maranhão faleceu antes da conclusão das obras.
Nas folgas, principalmente nas férias, nossa vida era bater bola. Na época das frutas, em dezembro, eventualmente, aventurávamos saltar muros de sítios para roubar mangas e cajus. A Granja Conceição era um dos nossos sonhos de consumo com seus  carregados pés de jambo. Temíamos o irascível vigia, um velho indócil cujo apelido dizia tudo: “Jararaca”. Subir em árvores não era nosso pendor. Lá em cima, olhava para baixo e era tomado por certo pavor. As poucas vezes em que tentei subir num coqueiro tive que amargar um belo arranhão na barriga. Mesmo assim, havia quem dissesse que “os filhos do Dr. Zé Lopes eram os piores maloqueiros de Bebedouro”. Por vezes, chegava algum estranho na nossa casa reclamando que havíamos invadido seus sítios. Disposto a arcar com os prejuízos, embora chateadíssimo, meu pai perguntava se os filhos dele estavam sozinhos. E se ele (o reclamador) já tinha ido na casa dos outros pais...  Apesar dessas ressalvas, a coisa não saía barato para nós. O velho não compactuava com esses tipos de traquinagens dos filhos.
A partir de um dado momento ficaria proibido  jogar num largo atrás do Mercado. Havia muita reclamação dos moradores. Vidraças eram quebradas, palavrões impublicáveis eram ditos sem a menor cerimônia. Em torno desse amplo espaço, várias famílias tradicionais tinham suas residências. As famílias Graça e Liberal/Pessoa eram de lá. Do outro lado, tendo o Beco do Camelo como referência, ficava o Grupo Alberto Torres e a casa do sisudo doutor Paulo Omena, dentista e chefe de uma família numerosa. Sem favor nenhum e sem deméritos para as demais garotas do bairro, suas filhas eram lindas.
Descobrimos, então, uma clareira bem no coração da “Mata dos Leões”.  O “Sete Lobão” era um campinho horrível, rigorosamente decadente. Irregular, em forma de bacia enladeirada, tinha um chão áspero,  que mesmo para os nossos grosseiros solados, de pés acostumados a ficar descalços, produziam desagradável queimação noturna, pelo desgaste da planta dos pés. Verdadeira lixa. Mas foram rachas inesquecíveis. Durante muito tempo joguei de goleiro. Posição ingrata, sobretudo porque a bola era de borracha. As mãos ardiam. Pior quando pegava em cheio no corpo...
Desenvolvia-me a olhos vistos. Aos 14 anos tinha praticamente o tamanho que tenho hoje. Já conseguia tocar no travessão. Cheguei a titular do Juventus e até disputei algumas partidas pela segunda divisão, no campo do Mutange. Jogamos em Capela, São Miguel, Utinga, Fernão Velho, Atalaia... Eles davam o dinheiro suficiente para pagar a condução.
À medida que as responsabilidades aumentavam como goleiro, crescia a angústia dos entardeceres. É que a miopia em um dos olhos criava um grande problema com a queda da luminosidade. Certo dia, no campo da Usina Uruba, estávamos com uma vantagem apertada no placar quando o juiz (local) deu uma “patriotada” marcando uma falta, no mínimo duvidosa, bem perto da grande área, frontal. Já fazia algum tempo que o sol declinara. Via sombras. Fechada a barreira, o sujeito resolveu chutar em minha direção. Vislumbrei uma sombra escura aproximando-se. Só podia ser a bola. Encaixei-a. Mergulhei por sobre a rala grama e demorei-me deitado escondendo a bola, ganhando tempo. Enquanto isso, meus companheiros cercaram o árbitro exigindo o final da partida. Fui ovacionado. Saí quase carregado. Seria a última vez que joguei de goleiro. Passei a ser centroavante, posição que já ocupava no time de baixo (“segundo quadro”).
As disputas futebolísticas entre os times de Bebedouro geravam tensão. Havia rivalidades que iam além das quatro linhas. Basicamente eram cinco times: Bebedourense/Juventus, da “turma da Praça”; Santa Cruz, do Flechal; Bandeirantes, da Chã; Abrantes, da Rua do Banheiro e Vasco da Gama, do Calmon e adjacências. Curiosamente, tidos como a “elite” do bairro, nosso time era o único a não possuir campo próprio. Também jogávamos contra times de outros bairros, do vizinho Bom Parto e do Prado... Havia, sim, mútuos preconceitos entre os que moravam antes e depois da estação.
Surtos de tentativas de movimentos intelectuais podiam ser vistos. Hoje revistos. Uma geração anterior à minha – exatamente aquela do meu tio Breno Mendonça, certamente estimulada por iniciativas semelhantes em outros bairros (e até no próprio Bebedouro, na época de Bonifácio Silveira), criaria O Idealista. O semanário -pelo menos essa era a intenção- abrigaria produções literárias daquela juventude e de pessoas mais velhas dispostas a colaborar com artigos, poesias, contos etc. O hoje juiz aposentado Hamilton Carneiro, junto com os irmãos Alves de Oliveira, Breno Lopes de Mendonça, os irmãos Ferreira de Mello, os irmãos Bezerra, meu pai, o padre Fernando, o jornalista Jorge Assunção e outros tantos davam suas canetadas. Tempos depois, Jorge Assunção fundaria um jornal que circularia muitos anos, O Hoje.
Hábitos interioranos estavam profundamente arraigados. Seu Né Fragoso, por exemplo, percorria toda Maceió montado numa charmosa charrete puxado a égua. Pequenos rebanhos de vacas leiteiras do seu Graça e do vereador Zeca Ferrari costumavam percorrer as ruas pelo menos duas vezes por dia. Diariamente, as temidas seriemas do coronel Saraiva também davam passeios em busca de alimentos e banhos. Não acho justo dizer que carroças sinalizavam nosso atraso. Ainda hoje elas continuam sendo utilizadas como meio de transporte de materiais de construção. Contudo, um dos carroceiros  chamava a atenção: o Zé Camelinho, apelido pouco generoso para alguém que tinha uma medonha deformidade nas costas. Trabalhava para seu Né Fragoso. Nas festas do 29 de junho era barman. Tinha um fair play incrível. Era desumano o que fazíamos com aquele coitado.
Entre os tipos populares, já citei o negro Domingão, um cara imenso, piedoso membro da Congregação Mariana. Voz de cantor de soul, suposto gigantismo sexual despertava risos maliciosos na meninada. O coveiro Camelinho era uma figura sinistra, medonha. Atemorizava as crianças e causava mal estar nos adultos.
Um pescador, Antonio Caiçara, que tinha um dos membros inferiores amputado era alvo preferencial das brincadeiras. O deficiente nem sempre estava sóbrio. Iracundo, brandia sua muleta e agitava-se com impropérios ao ouvir, “Caiçara, eu vou?”. Nunca soube a causa de tanta irritação por uma frase tão banal.
 Seu Augusto tinha uma quitanda muito surtida. Morava na mesma casa do seu empório. Era um sujeito meio agalegado, fortão, com vários filhos cujos nomes iniciavam com a letra G. Havia algo de rude. Dizia-se que gostava de tomar umas cervejas no Bar do Relógio, na Praça dos Palmares. Seu tira-gosto era uma dúzia de ovos, ou mais. Ovos duros com muito sal.
Seu Joaquim, o açougueiro, trabalhava sem camisa. Não era tão delicado, abstraindo suposto prazer culinário por sapos e rãs,  nada mais havia de notável. Afinal, alguém cuja função é destrinchar costelas, fêmures e pescoços está isento do dever de  ser terno, meiguinho...
O advogado Antonio Leite e sua esposa, d. Sinhá Leite, formavam um dos casais mais antigos do bairro. Leite era filho do pioneiro Jacinto Nunes Leite, referido em páginas anteriores. Morava na mais emblemática casa de Bebedouro. Tinham um filho, Ricardo Leite, que ainda hoje ocupa a residência avoenga. Lateralmente, de ambos os lados, como extensão da bela residência, havia um pomar, quase um sítio, onde abundavam cajueiros que carregavam bastante. Eram um desafio aos “maloqueiros”. Houve uma época em que batíamos bola na própria Praça B. Silveira. Acho que o logradouro estava sendo preparado para mais uma reforma...
 O que quero dizer é que a bola caía no sítio de Antonio Leite. Lá havia vigia e cachorros. Ambos indóceis. Às vezes, meio de má vontade, cara trancada, o vigia devolvia a bola. Outras vezes, o sujeito remanchava e alguém ia bater na porta da casa e apelar aos próprios donos. Nas minhas memórias, o velho advogado era um homem tranquilo. Quero crer, de compleição franzina. Dona Sinhá era altiva. Sua vaidade estava presente nos maxilares, inescapavelmente ruborizados por algum carmim. Dizia-se que ela, às vezes, poderia ser autora de algum comentário mais acerbo. Alguém acrescentava: D. Sinhá nunca falou mal de Doutor José Lopes... De fato, papai receitava pessoas da sua família, havia recíproco respeito. Eventualmente, Sinhá Leite ia na nossa casa simplesmente para jogar conversa fora com mamãe. Ocasionalmente, o casal nos presentava com algumas dezenas de amarelados cajus.
Figura de destaque na comunidade, Zeca Ferrari era compadre do meu pai. Descendente de italianos, talvez houvesse um quê de escárnio  no seu jeito. A esposa, D. Dolores, fora professora de desenho e francês da minha mãe, no Bom Conselho. Uma senhora alta, bonitona, distintíssima. Ferrari era dono de uma padaria e de umas “vaquinhas” e também vereador pelo PTB. Consta ter havido um aborrecimento – entre o médico Zé Lopes e o padeiro - por conta de um apoio que meu pai teria dado a um seu adversário. As preferências políticas de meu pai (mesmo discretas, embora firmes) nem sempre agradavam aos getulistas. Jorge Assunção foi outra personalidade de destaque no bairro. Sua mãe, cliente do meu pai, morava quase em frente a nós. Foi secretário de governo do Muniz Falcão. Por motivos semelhantes ao do padeiro, estremeceria seu relacionamento com o médico de sua genitora.
O seu Audálio era funcionário público, da Assembleia, se não me engano. Cara bexiguenta, havia quem jurasse que era um mentiroso compulsivo. Franzino, enquanto falava, tinha o hábito de suspender as próprias calças usando os cotovelos numa coreografia um tanto ridícula. Dona Helena Pires, sua esposa, era uma dama. Moravam em frente ao Mercado, numa das primeiras casas depois do trilho. Helena  nunca engravidou. Era diretora e professora de uma conceituadíssima escola de datilografia. Marcaria época. Ao final do curso, rotineiramente, convocava professores de altíssimo nível para participarem da banca. Monsenhor Tobias era um dos mais requisitados, o que conferia ao graduado  um sabor todo especial.
Falo de mentirosos compulsivos e me chega a figura do sargento Antonio. Não sei sua origem. Mas o militar aportou no bairro trazendo na bagagem uma série de histórias que pareciam um tanto fantasiosas. Dizia-se ex-combatente. Era verdade, posto que uma vez por ano vestia uma farda e participava de desfiles  como herói de guerra. Inúmeras vezes eu o vi levantando a boca da calça para mostrar cicatrizes adquiridas nos campos de batalha, na Itália. Conceituava-se que ele seria todo remendado de platina...
As novas atribuições paternas não influiriam tanto nos cuidados com os filhos. O velho Colégio Diocesano, da Rua do Apolo, mantinha uma caderneta vermelha onde eram coligidas as notas das provas mensais. Mas também havia folhas destinadas ao registro das atividades semanais, onde constavam dois itens: Comportamento e Aplicação. Certa vez, um de nós chegou com um acachapante e temerário “cinco e cinco”. Ou seja: “cinco em Comportamento” e “cinco em Aproveitamento”. Não era  tarefa das mais amenas encarar o velho com semelhantes notas. A palmatória ainda funcionava bastante.
Contudo, nosso pai ficaria injuriado mesmo com o “cinco em Aproveitamento”. Destarte, na própria caderneta, endereçaria um comentário em que expressava seu desacordo com a avaliação. Digamos que se resignava com o “cinco em Comportamento”, mas considerava descabida  a perda de pontos referentes aos conhecimentos (aplicação). Havia a absoluta certeza de que os filhos iam com as lições aprendidas de “trás pra frente e da frente pra trás”. Na semana seguinte, constaria um “10” em Aproveitamento, seguido de irônico ponto de interrogação. O “frade” não apreciara os “considerandos” paternos
Não saberia dizer se foi esse mesmo irmão quem andou se excedendo e puxado as orelhas do Robson. O fato é que o velho foi ao colégio tomar satisfações. Não aceitou as ponderações do agressor. Encerraria a questão aconselhando o Irmão a não repetir o gesto. Faria um adendo: se quiser puxar orelhas de meninos desobedientes, que tratasse de ter filhos.
Anos depois, já mais maduro, ele retornava à Clínica pela Fernandes Lima, quando tomou um susto ao visualizar nosso irmão mais novo, Zé Filho, (José Lopes de Mendonça Filho),  montado numa bicicleta emprestada. Zé Filho fora impedido de assistir aula. Esquecera-se de levar a caderneta. Por isso, estava voltando para casa para apanhá-la, conditio sine qua non. Injuriado, aboletaria o garoto e a bicicleta e foi ao colégio, àquela altura, já na Av. Antonio Brandão. Seria um diálogo áspero. Afinal, meu pai deixara, pessoalmente, o garoto de cerca de dez anos, na porta do colégio. E se o garotinho fosse atropelado...
Em determinadas momentos, não havia meias palavras. Logo nos primeiros dias de Diocesano, nosso pai nos instruiu sobre quaisquer tentativas de abusos sexuais, da parte de quem quer que fosse. Tolerância zero para  alisadinhas em bunda, exibições de órgãos sexuais ou assemelhados. A orientação era defender-se a todo custo, valendo-se de chutes, pedaços de paus, pedras, facas, punhais... O diabo...
Por uma terrível coincidência, no ano que entramos no Diocesano, um tal de Irmão Barreto seria transferido abruptamente. Esse sujeito tomava conta de um dos internatos e fora denunciado por prática de abuso sexual contra um dos internos... Um escândalo apenas parcialmente abafado.
Cursava pela segunda vez a quarta série primária. Repetia o ano por falta de idade para ingressar no curso ginasial. Era um dos melhores alunos da turma. Num dado momento, não sei se por inveja, passaria a ser hostilizado por um garoto cerca de dois anos mais velho. Era um menino forte (eu era magro), do sertão, que todas as vezes que passava por mim me dava um encontrão com o ombro. Sentia-me encurralado. Literalmente amedrontado. Ao mesmo tempo, o ódio ia crescendo dentro de mim. Ainda que o meu irmão Robson fosse meu fiel escudeiro, e eu o achasse muito valente (e ele era mesmo), evitei chamá-lo para me ajudar. É que o sertanejo era  tão forte que eu temia que o Robson não fosse páreo para ele. Um belo dia, na calçada em frente ao campo de basquete, o sujeitinho esbarraria em mim, de propósito. Não tive dúvidas: enfiei-lhe a mão no focinho com tal determinação que ele bambeou. Os dedos marcariam sua cara acaboclada. Ao recuperar-se, tentou revidar. Usei a tática do boxe. Com os punhos cerrados, mantive a guarda alta, mantendo-me longe do alcance dos seus braços. Logo chegaria a turma do deixa-disso. Como castigo, passamos algum tempo de pé, depois dos relatos de praxe. Um santo remédio. Nunca mais tentou nada. Nas provas, rastejava-se pedindo auxílio para as questões. Eu ensinava. Jamais confiei piamente que ele iria se conformar com o terapêutico tabefe.
Substituto do Dr. Paulo Netto (que fora assassinado) como médico do colégio, duas vezes por ano, o tesoureiro do Marista ia acertar as contas com meu pai.  Visita noturna, o Irmão aproveitava e “fazia a nossa cama”. Era uma ave agourenta. Ar enigmático, mal nos cumprimentava. Parecia sentir prazer em encher a cabeça do nosso pai de abobrinhas. Temíamos suas inconfidências. Nem sempre se deu bem. Relatava, por exemplo, que nos trancávamos nas privadas (fétidas) para fumar, fato que papai não se impressionava. Além dessas supostas transgressões, o cara nos descrevia como hostis, beligerantes... Segundo o tesoureiro, tínhamos (grosseiros suburbanos) o mau hábito de insultar os “meninos Fulano  e Beltrano”, quem sabe, garotos mais educados que nós, filhos de um advogado famoso. O velho ficava mordido com essas insinuações que sugeriam depreciação de suas crias. No fundo, talvez quisessem dizer que ele não era tão diligente como pai. Não se conteve e perguntou ao “frade” qual era a idade desses “meninos” que ele tanto protegia. O Irmão ficou meio sem jeito e terminou admitindo que eles eram mais velhos...
A partir dos quatorze/quinze anos, estudava de manhã e à tarde fazia as vezes de secretário/recepcionista do meu pai, no seu consultório, na própria Clínica. Desde 1962 fomos morar na Lilota. Ao mesmo tempo em que os andares inferiores, foram ocupados pelos pacientes. Seria uma prolongada convivência que nunca nos incomodou.
A “Vila Lilota” era uma imponente mansão construída durante a Primeira Guerra Mundial, sobrevivente da “Era de Ouro” do Bebedouro do Major Bonifácio da Silveira. Estilo amouriscado, fora habitada por D. Iaiá Leão. Ela era uma das beneméritas do Asilo das Órfãs. As freiras retribuíam a generosidade levando as alunas para animarem festejos na própria Lilota.
Minha mãe, dentre outras, sob a vigilância das religiosas,  fazia parte desses corais que, nos Natais, enchiam de maviosidade e juventude os salões aristocráticos da mansão. Nos devaneios mais fantásticos, mais de uma vez, a adolescente Rosinha quedava-se a admirar as pinturas das paredes do belo salão, as escadas de “mármore de Carrara”, os lindos vitrais, o corrimão da escadaria, e os requintados lustres, deixando-se conduzir pelos sonhos, antevendo-se dona daquela joia arquitetônica...
Com a morte de Iaiá, a casa ficara vazia, não obstante bem cuidada por um prestimoso funcionário, seu José de Lima. Dois anos antes, houvera marcante transformação na nossa família. Com a confiança e a formalidade de um diploma de especialista na mão, meu pai dedicava-se cada vez mais à Psiquiatria. Já não fazia partos. Seu canto de cisne como parteiro foi em casa, em 1960, partejando a filha caçula, Maria de Fátima. Durante anos a fio, sempre que tinha oportunidade, ele descreveria as dificuldades desse nascimento. Entusiasmava-se. Nomeava a apresentação do concepto e as manobras obstétricas que tivera que realizar para o êxito do procedimento. Mãe e filhas salvas e sadias. Um relato emocionante.
Como queria dizer, em 1960, meu pai instalou uma pequena clínica psiquiátrica na Av. Major Cícero de G. Monteiro 2079, no Mutange. A fama de bom psiquiatra e de zeloso dono de hospital cresceu rapidamente. Em pouco tempo, a Clínica de Repouso chegaria ao limite de sua capacidade: quarenta pacientes. Urgia mudar-se. Foi quando surgiu a opção  de compra da  Lilota. A bem da verdade, um projeto quase impossível. Depois de idas e vindas, os serviços psiquiátricos prestados a graduados funcionários da Usina Leão, seriam fundamentais no êxito da negociação. A utopia de minha mãe realizara-se.
Em Bebedouro, nem só do Clube 29 de Junho vivia a rapaziada. Incursionávamos pela Chã e o Flechal. Estendíamos nossos tentáculos até Fernão Velho e Rio Largo. Pessoalmente, sentia muita dificuldade de aproximar-me de uma garota. Embora tímido,  ganhei, imerecidamente, diga-se de passagem,  fama de abastado (e de garanhão). Era visto com desconfiança pelos pais das mocinhas, que recomendavam manter distância desse “perigoso e rico playboy”. Suas cabeças eram povoadas pela falsa impressão de que só queríamos nos aproveitar das indefesas donzelinhas...
Aos poucos, Bebedouro ia ficando para trás. Deixaríamos de frequentar o Clube 29 de Junho, com seus animados bailes de Carnaval, com suas quadrilhas puxadas pelo polivalente Né Fragoso, onde pintariam as primeiras paqueras. Ficamos indelevelmente marcados por essas lembranças. O Bar Ponto Final, o “Bar do Dito”, em frente à Praça, tradicional reduto da boemia, onde “esquentávamos” com algumas doses de “rabo de galo”, seria substituído. Passamos a participar das festas de Carnaval da Fênix e do Iate. Era outro departamento. Dos discos de Claudeonor Germano, no 29 de junho, tínhamos o celebrado cantor ao vivo, sob a frenética musicalidade da orquestra Marajoara do Recife. No Iate, eram os  famosos Fausto e Passinha que comandavam. Show de bola.
Não obstante, continuava um bicho do mato, arredio, tímido, desconfiado. Sem convivências diárias com as burguesinhas do Farol e da Pajuçara, também tive inibições na hora das danças e das paqueras. Ficava mais à vontade nos cabarés de Jaraguá. Cheio de moral pelos serviços prestados na Clínica, o velho, depois de muitas cantadas, deixava que eu dirigisse sua Rural. Havia uma rota: Bar do Chopp, onde encontrava colegas do colégio, regado a Ron Montilla, e lá pras onze horas o puteiro de Jaraguá. Confesso que nem sempre “chegava às vias do fato”. Começava a ter o critério de seleção. Até por não exagerar na bebida. Ou seja, as mulheres feias e sem graça continuavam feias e sem graça.
Ao iniciar os estudos na Medicina, divorciei-me quase completamente do meu querido bairro. A diáspora, na verdade, fazia já algum tempo que começara. Os amigos de infância, a maioria com mais idade que eu, já não tinham tempo. Muitos não continuaram os estudos. Biu Bala, um emérito driblador, perdeu-se na poeira da estrada.  Nunca soube o exato destino de Mané Castanha, um dos maiores lentes da ximbra. Certa vez, por sinal, Mané Castanha, cujo tamanho nada tinha a ver com sua idade, acertou-me no nariz um murro que me faria sangrar alguns dias. “Negro Gil”, irmão do “Negro Béu”, também tem destino ignorado. Zadir Moreira, o maior craque do nosso time, foi trabalhar na Petrobrás. Alavacir Martins, primo do Zadir Moreira, também mais velho, deixaria a convivência diária para trabalhar.  Péricles, cuja estatura reduzida não chegava a interferir tanto no seu inquestionável pendor como ponta direita, era comerciário e morreria cedo. Provavelmente por complicações relacionadas a recalcitrante hipertensão arterial. Outro hipertenso na vida adulta, Gilson, apelidado de “Pau Vestido” pela magreza, tornou-se excelente vendedor de “A Radiante”.  Titular absoluto como volante, sempre foi um batalhador. Ainda garoto, morando com o avô, de raquíticas posses, tinha um carro de mão que o ajudava a ganhar trocados transportando bagagens a partir da estação. Mais tarde, montaria sua própria loja de calçados, na Rua do Sol, e ainda um restaurante para almoços comerciais, também no centro.
Recebi boas orientações de como me posicionar no gol com o Gerson (Gereba). Ele  já chegou em Bebedouro praticamente adulto, mas integrou-se rapidamente. O futebol, digo mais, o esporte, tem essa característica de reunir pessoas. Gereba chegaria a ser goleiro titular do CSA. Revezava-se com Batista, um atleta de fraca saúde, mas talentoso.  Carregava um defeito terrível para quem aspira fazer carreira nessa posição: reduzida estatura. Conduzido pelo Gereba, treinei nos juvenis do Mutange, nos tempo do Ivon Cordeiro. Envergonhado, evitei contar que tinha problemas visuais. Subitamente larguei os treinos, até pelo fato de haver outros bons goleiros treinando, como o Luiz França e o galego Guido, que não tinham queixas visuais.
Os irmãos Evaristo, filhos do seu João do SAEM, continuaram estudando. José Evaristo, João e Jaime formaram-se em engenharia. Jairo, outro irmão, é coronel reformado da PM. José Evaristo é da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. João, além de engenheiro, é coronel da PM. Jaime é professor da Ufal e escritor e casou com uma amiga de infância, Salete Lamenha. Uma das filhas do casal foi minha aluna na Ufal. Jadete, outra filha do seu João,  é médica. Foi aluna aplicadíssima na Ufal.
Encontro com certa frequência Jonas Pessoa, frequentador de caminhadas na orla. Era volante do time. Hoje destacado empresário. Klebel Loureiro, o ponta esquerda do time, quer parecer que os anos não passaram para ele. Continua com a mesma fisionomia. Quis o destino que nossas famílias se cruzassem num casamento de minha sobrinha com um seu neto.
O galego Severino “Boca de Chuteira”  quando foi morar em Bebedouro, vindo dos sertões, nunca tinha jogado bola. Apaixonou-se pelo futebol. Já era um pequeno comerciante e, portanto, ganhava dinheiro. As más línguas diziam que um amigo recebia grana para ensiná-lo a chutar, driblar, fazer “pontinhos”... Com raro talento, em pouco tempo o galego tornou-se titular do nosso time. Dificilmente era driblado. Raçudo, com invejável preparo físico, contabilizava nunca haver feito um gol. Ninguém é perfeito. Com mais de setenta anos, soube recentemente que o Boca de Chuteira continuava a rachar com a saúde de touro reprodutor.
Alexandrão também aportou em Bebedouro por obra do destino. É que o pai dele, Dr. Meuse Lopes, era agrônomo e foi ser administrador da Granja Conceição. Ele, (Alexandre) e o irmão, Mário Jorge, rapidamente se entrosaram na turma, graças, mais uma vez, ao futebol. Era altão, um pouco lento, mas sua simpatia pessoal o levaria a titular do nosso time, como quarto zagueiro. Formou-se em Odontologia, como o avô, o famoso Hipólito Lopes. Xandrão tinha belas irmãs aloiradas que nunca foram vistas circulando pelo bairro.
 Luiz Rijo, filho de um militar reformado da PM, tinha inteligência privilegiada,  foi estudar Geologia no Recife (os tempos da roleta tinham passado). Sua irmã, Diva Rijo, era psiquiatra. Ambos irmãos morreram precocemente.
 Geoberto Espírito Santo, bisneto do Major Bonifácio Silveira, foi criado com esmero pelos avós, José Ovídio e d. Isaura. Os deliciosos rachas no seu quintal ficaram na história. Reinava sozinho na residência avoenga. Além do futebol entre frondosas fruteiras de cajaranas e buracos de caranguejos, era aficionado por time de botão. Foi meu colega de turma no Diocesano/Marista. Era um bom armador. Jogou pelo juvenil do CSA. Se não me engano, disputou partidas no time principal. É um conceituado engenheiro. Tinha vários irmãos. Da minha geração eram duas meninas muito bonitas, Gina e Geodete e um irmão, George, hoje reformado da Marinha de Guerra do Brasil.
Joãozinho, filho do seu Vicente (vizinho de outro amigo, Ciço Papagaio e do seu Antonio, meu alfaiate), cujo apelido era João Bobo, é a prova inconteste de que quem vê corpo não vê cabeça. Gordinho desde sempre, tendendo a balofa, garotinho de 10 anos, apreciava jogos infantis com uma vizinha deficiente visual. Surpreenderia a todos quando, ainda garoto de 16-17 anos, conseguiu entrevistar o Pelé, em Recife, no intervalo de um jogo, do Santos, se não me engano. Ficamos boquiabertos com a esperteza do João. Tornou-se combativo político de esquerda. Foi vereador. Era um jornalista muito querido. Adotaria o sobrenome de Freitas Neto. Sua morte, num acidente de avião em Cuba, foi muito sentida.
Mauro Guedes era afilhado do meu pai. Seu genitor, José Sabido, tinha uma venda muito sortida. Esbanjava prosperidade. Morreu precocemente, se não me engano de uma complicação da febre tifoide. Mauro foi  vereador.  Entusiasmou-se pelas corridas de jegue, folguedo que o Major Bonifácio prestigiava. Há quem diga que sua ascensão como político teria sido em decorrência dessas brincadeiras. Foi meu aluno na Escola de Ciências Médicas. Goza de prestígio como clínico, com consultório popular na antiga venda do pai, em Bebedouro.
Manuel Góes, meio-irmão de minha mãe, fez carreira como bancário. Formou-se em Psicologia. É um saudosista como eu. De vez em quando nos encontramos. Habitualmente, objetos internos são revolvidos, muita vez de forma pouco confortável para ambos. Não sei se já comentei antes, mas o Mané me levou algumas vezes ao baixo meretrício, em Jaraguá, sob o consentimento  tácito do meu pai. Posso dizer que ele me ensinou o caminho das pedras (e do pecado). Chegávamos cedo. Sabia-se que antes da “zona” abrir, as mulheres circulavam displicentemente pelos corredores dos prostíbulos. Pagavam-se preços, digamos, mais justos. Mané Góes bebia pouquíssimo. Com um copo de cerveja já passava mal, botava pra vomitar... Um vexame. Ainda tinha a ressaca no dia seguinte. Além do parentesco muito próximo, essas características, quero crer, aos olhos do meu pai, faziam do cunhado a companhia ideal para os verdejantes filhos.
Os irmãos Carnaúba, filhos do comerciante Genésio Carnaúba (o primeiro a colocar um posto de gasolina no bairro), são profissionais de alto nível. O velho Carnaúba era um pouco irritadiço. Lula (Luiz Carnaúba), seu filho, sempre foi diferenciado, culto, estudioso... Até Um pouco chato. Não  é, pois, por acaso que hoje é um dos mais brilhantes procuradores de Justiça. Genésio, mais velho, desde cedo interessou-se pela fotografia. Teve no famoso Japson Almeida um mestre e conselheiro.  É consagrado fotógrafo.
Um grande amigo de infância foi o José Renaldo Lins. Tomava conta da venda do avô, seu Jacinto. Esse estabelecimento, na esquina da 25 de dezembro com a Passos de Miranda, era um ponto de encontro antes de partirmos para os rachas no Sete Lobão. Renaldo estudou no Marista. Ainda hoje não sei a razão do apelido “”Megatério”, que os colegas de colégio o batizaram. Era ruim de bola. Ele e o irmão, Renan.
 Antonio Luna também era comerciante. Trabalhava da venda do pai. Mais velho, evitava o pândego, fazia grupo com o Mané Góes. Casou com uma bebedourense, Jacione, e foi advogado do Grupo Sococo.
Vadinho Saraiva era um goleador nato, em rachas. Canhoto, chute fortíssimo, adorava ficar na banheira colado ao goleiro adversário. Qualquer descuido ele marcava. A irmã, Edinha Saraiva, era amiga das minhas irmãs. De vez em quando, na nossa casa, eu me envolvia nas brincadeiras coletivas em que ela participava. É casada com o João Evaristo.
Os irmãos Motta, filhos do seu Motta da padaria e de Dona Zelma, também tornaram-se profissionais destacados. Meu estimado amigo Marcelo Motta, conhecidíssimo na cidade, um grande craque do passado, hoje gozando de merecida aposentadoria, foi zeloso funcionário da Câmara Municipal de Maceió. Marcos Motta, mais novo, é médico, urologista do HU. Ambos grandes figuras, simpaticíssimos.
Paulo Omena, filho do odontólogo homônimo era mais ligado ao Mané Góes, meu tio. Tinha muitos irmãos. Família de gente bonita, sobretudo as recatadas irmãs, as lindas Marias e Luzia. Paulo Omena é engenheiro em Recife. Contraiu núpcias com uma moça do bairro, descendente de Jacinto Nunes Leite. Frederico e Francisco eram cunhados do Paulo Omena, também descendentes do pioneiro. Fred foi juiz de Direito e faleceu recentemente. Casou com a Luzia, também já falecida, irmã do Paulo Omena.
Meu tio-irmão, Breno Mendonça, a quem devoto especial carinho, depois que se aposentou do Banco do Nordeste, foi aprovado em concurso para Advocacia da União, função que ocupou até quando a saúde permitiu. Breninho é o decano da nossa família, dos Lopes de Mendonça. É uma pessoa admirável,  que serve de exemplo a todos nós.
Meu irmão Robson, creio, afastou-se antes de mim. Não era tão ligado ao futebol. Jogávamos muito, às vezes só nos dois, em casa, na varanda quase sem plantas, de ”rebatida”, ou então disputávamos partidas alternando as posições. Uma vez, um era o goleiro e o outro o chutador e vice-versa. Por ser um ano e meio mais velho, os interesses, num dado momento, não coincidiram. Por pouco tempo. Senti o peso da responsabilidade aumentar quando ele foi aprovado, de primeira, no vestibular de medicina.
Minha irmã mais velha, Rosinete, casou cedo. Sua convivência no bairro não teve a mesma intensidade que a minha. Dançou pastoril, foi da Cruzada Eucarística... Mas o doutor Zé Lopes não era partidário de filhos na rua, sobretudo as meninas. Em 1960, estudando no Colégio Sacramento, seria convocada a secretariar nosso pai, função, aliás, que seria ocupada por quase todos os irmãos, sucessivamente. As irmãs mais novas que o trio mais velho – Rosete, Rosilda, Rosélia e Rosaline, e mais velhas que o “segundo grupo”, (formado a partir do nascimento do Zé Filho) também tiveram uma convivência apenas razoável em Bebedouro. Aos onze anos estudavam em “colégio de Maceió” e aí tudo mudava: novas amigas, outros interesses, outras cabeças... Algumas garotas do bairro frequentavam nossa casa. Havia jogos de queimado, rouba-bandeira etc. A meu ver, nossos pais, certamente pela quantidade de filhos circulando em casa, impacientavam-se com mais crianças barulhentas. Não sei se estou sendo injusto...
À guisa de recordações, voltei a Bebedouro  poucas vezes, para matar saudades no tradicional racha de Ano Novo, nas dependências do balneário do seu Né Fragoso. É com grande tristeza que registro  que seu disputado banho acabou. A límpida água deixou de escorrer. Há quem diga que o desmatamento à montante decretou a oclusão dos delicados mananciais que alimentavam a “piscina do  velho Né”.
A separação não quis significar menosprezo. Sirvo meu bairro, meus amigos de infância e seus familiares como médico. Carrego na alma responsabilidades intransferíveis. Tento mimetizar (sem o seu carisma) os trabalhos comunitários que voluntariamente meu pai fazia. Esforço-me por retribuir, como gratidão e respeito, os inolvidáveis momentos vividos naquele recanto, que me viu nascer, crescer e até ser feliz.

Maceió, 06 de maio de 2014